A Porta(ria) está aberta. É preciso derrubá-la, sob pena de matar a dignidade do trabalhador e renascer a coisa.
Renata Cabral
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 24/10/2017
E há tempos nem os santos têm ao certo a medida da maldade
Há tempos são os jovens que adoecem
Há tempos o encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
E só o acaso estende os braços
A quem procura abrigo e proteção…”
– Legião Urbana
Em 13 de maio de 1888 foi sancionada a Lei Áurea (Lei Imperial nº 3.353), que extinguiu a escravidão no Brasil. Em 16 de outubro de 2017 foi publicada a Portaria 1.129/2017, do Ministério do Trabalho e Emprego, que redefine o conceito de escravidão, dificulta, ou praticamente extingue a real possibilidade da sua fiscalização e dá ao Ministro do Trabalho o poder único de decidir quais os infratores flagrados submetendo trabalhadores a condições análogas à de escravo farão parte de lista divulgada à sociedade.
Porta aberta, portanto, para a legalização da escravidão no Brasil e revogação da Lei de 1888. Em conta aritmética, retrocedemos, portanto, 129 anos! 2017, a propósito, tem se mostrado um ano de viagem ao tempo, viagem ao passado, resgatando o que de pior tivemos em nossa história.
Sob o falso e suposto discurso de “modernização” das leis trabalhistas entrará em vigor em novembro próximo a Lei nº 13.467/2017, que subverte toda a ordem legal trabalhista construída no país e corroborada pela Constituição de 1988.
Agora, a Portaria 1.129/2017, que viola o 149 do Código Penal e as Convenções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho, cria inúmeras dificuldades administrativas para a prevenção, fiscalização e punição desse mal, de que ainda padecemos.
A ilegalidade é flagrante quando se verifica do texto da Portaria que para se definir trabalho escravo deverá ser comprovado o cerceamento da liberdade de locomoção do empregado-escravo.
Ora, tanto o Supremo Tribunal Federal como a Corte Internacional de Direitos Humanos reconhece, há tempos, que a escravidão contemporânea existe quando presentes os atributos de propriedade nessa relação, reduzindo o trabalhador a conceito de “coisa”. Nesses termos, na maioria das vezes, na “coisificação” do trabalhador não se vislumbra o cerceio direto da liberdade de locomoção. A “coisa” pode, em tese, se locomover, mas, não recebe salário pelo trabalho exaustivo que presta, o faz em condições degradantes, tendentes ao esgotamento físico e mental, sem condições mínimas de saúde, higiene ou segurança.
De 1995 a 2015 foram libertadas da escravidão no país nada menos do que 49.816 (quarenta e nove mil, oitocentas e dezesseis), dados apresentados pela ONG Repórter Brasil.
Esse trabalho só foi possível graças à fiscalização de auditores fiscais do trabalho, Ministério Púbico do Trabalho, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal. Os números são alarmantes e comprovam a prática odiosa em nosso país, que deixará de ser efetivamente fiscalizada a partir da vigência dessa Portaria ilegal e desumana.
A própria Procuradoria-Geral da República já recomendou ao Ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, a revogação da referida Portaria, por vício de ilegalidade. Se não for revogada o MPF ingressará com ação judicial nesse sentido.
Mas, há mais! No Projeto de Lei Orçamentária – PLOA de 2018 não há, como nos anos anteriores, rubrica específica voltada ao combate do trabalho escravo. Portanto, teremos uma Portaria que ilegalmente traz novo conceito de trabalho escravo, que praticamente impossibilita a fiscalização e também não haverá orçamento para tanto. Estamos de volta a 1887!
Viveremos em nova era, o presente do passado ou o passado do presente, onde a nova relação de emprego/trabalho, inspirada em tempos trágicos, legaliza a escravidão.
A Porta(ria) está aberta. É preciso derrubá-la, sob pena de matar a dignidade do trabalhador e renascer a coisa.
Enquanto a revogação não vem, a Ministra Rosa Weber suspendeu, em 23/10/2017, por decisão liminar, monocrática e ad referendum do Tribunal Pleno do STF os efeitos da Portaria Escravagista. A decisão foi proferida nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 489.
E “para dizer que não falei das flores”, a Rosa faz acontecer.
Renata Cabral é Advogada sócia na banca Crivelli Advogados.