A principal dificuldade econômica para a maior parte da população não é fruto da pandemia e já vinha de mais longe.
Fernando Maccari Lara
Fonte: Sul 21
Data original da publicação: 27/12/2021
Acredito que não corre o risco de soar exagerado alguém que avalie como desastrosos os anos recentes no Brasil, do ponto de vista socioeconômico. Não bastasse uma forte recessão em 2015/6, seguida de uma lenta recuperação no período 2017-19, tivemos a pandemia e com ela uma nova recessão associada, no período mais recente 2020-21. Além dos efeitos concretos desse estado de coisas, o brasileiro ainda teve que conviver com a postura anticientífica de suas autoridades. Como ponto positivo, talvez um tanto soterrado e esmaecido no complicado ambiente, podemos lembrar que apesar de tudo a oposição à vacinação não se fez sentir assim tão fortemente no Brasil. A população, em sua grande maioria, não deu ouvidos ao obscurantismo, nesse particular. Assim, o processo acabou avançando bastante e tornou a questão da pandemia algo menos crítico do que há alguns meses.
Mas e na conjuntura econômica? O que de mais importante podemos destacar para caracterizar o ano de 2021, que logo estará encerrado? Aqui o que se pretende é ajudar o interessado no tema a ampliar seu horizonte de tempo e ver a recuperação da crise da pandemia em 2021 dentro de um período mais amplo: 2015-21. Parece importante chamar a atenção para o fato de que a pandemia foi grave e que, no geral, as condições prévias estão sendo restabelecidas. Mas também se quer ressaltar que a principal dificuldade econômica para a maior parte da população não é fruto da pandemia e já vinha de mais longe.
Do ponto de vista do PIB, levando em conta a série das contas nacionais trimestrais do IBGE, constata-se que a economia brasileira alcançou já no primeiro trimestre de 2021 o nível de produção pré-pandemia, do quarto trimestre de 2019. Nos dois trimestres seguintes, entretanto, verificaram-se duas pequenas contrações que sinalizam para um arrefecimento da recuperação. O ano de 2021 deve ser visto assim como aquele em que de fato completou-se o famoso “V” da recuperação da crise da pandemia, mas também no qual já se pôde perceber uma leve reversão cíclica. Como podemos compreender esse movimento? Com a renda algo sustentada pelos importantes auxílios governamentais concedidos, o primeiro impulso de recuperação se deu pela própria liberação progressiva das atividades econômicas. Ainda que a partir de certo momento este processo tenha ganhado força por passar a estar acompanhado também do avanço da vacinação, a retomada da atividade pela simples retirada das restrições de oferta alcançou um limite a partir do qual o crescimento da economia voltou a ser, como é o normal, limitado pela expansão da demanda. Com os movimentos de preços atuando fortemente para conter uma diversificação do consumo ao longo do ano, e sem qualquer projeto de promover crescimento econômico de parte da política econômica, a recuperação aparentemente bateu no teto, passando a depender de novas e ainda inexistentes fontes de dinamismo.
Do ponto de vista do mercado de trabalho, o dado mais positivo parece ter sido a queda da taxa de desemprego, que havia alcançado 14,9% em setembro de 2020 e caiu para 12,6% em setembro de 2021, de acordo com a PNAD do IBGE. E aqui está um ponto sobre o qual se pode começar a colocar esse ano recente em perspectiva. Não se pode ter dúvida de que essa redução da taxa de desemprego – ao mesmo tempo em que revela aspectos importantes desta conjuntura recente – não é suficiente para reverter uma situação de natureza mais estrutural do mercado de trabalho e que já vigorava desde bem antes da pandemia, por efeito da recessão de 2015/16. Para efeito do contraste que se quer destacar, comecemos por citar que a taxa de desemprego do período 2012-2014 foi em média de apenas 7,2%, portanto mais de 5 p.p. menor do que a atual. Então, de fato, é verdade que algumas das ocorrências da pandemia sobre o mercado de trabalho têm sido revertidas. Mas também é verdade que elas apenas nos trazem de volta a uma situação anterior que estava longe de ser considerada favorável.
Para ficar apenas em mais alguns números mais gerais e ilustrativos, observemos o comportamento do número absoluto de pessoas ocupadas e alguns indicadores simples sobre a composição dessas ocupações. Antes da pandemia, o pico do número de pessoas ocupadas havia sido registrado em dezembro de 2019 e correspondia a 95,5 milhões. Com a crise esse número desabou para 82,5 milhões em agosto de 2020, voltando a subir desde então, e alcançando 92,9 milhões de pessoas ocupadas em setembro de 2021. Considerando-se o perfil das ocupações recuperadas nestes últimos 12 meses para os quais se dispõe dos dados, pode-se bem formular a hipótese de que se trata muito mais de uma retomada de atividades econômicas visando gradualmente voltar a sustentar dessa forma as condições de subsistência – na perspectiva de minguarem e eventualmente desaparecem os importantes fluxos monetários decorrentes dos auxílios governamentais concedidos – do que propriamente uma recuperação do mercado formal de trabalho. Basta ver que das 9,5 milhões de ocupações acrescidas nos últimos 12 meses, pouco mais de 7 milhões estão nas categorias de empregados sem carteira, empregados domésticos e empregados por conta própria.
Voltando uma vez mais o olhar para o nosso horizonte de tempo mais longo, é notável o fato de que esse número absoluto de pessoas ocupadas registrado em setembro de 2021 seja bastante equivalente ao que se registrava logo antes do início da recessão de 2015/2016: em setembro de 2014, a PNAD registrava 92,4 milhões de pessoas ocupadas. Um mesmo número de ocupações registrado em um intervalo de sete anos já parece demonstrar a falta de dinamismo do processo. Mas há que se observar também uma importante mudança de composição ao longo do período. Em setembro de 2014, 40,7% das ocupações eram empregos formais e 22,7% eram ocupações por conta própria. Uma inversão praticamente simétrica entre esses dois percentuais ao longo do período trouxe a parcela dos empregos formais para 36% (redução de 4,65 p.p.) e a parcela das ocupações por conta própria para 27,3% (aumento de 4,63 p.p.) em setembro de 2021.
Esses dados certamente não esgotam as diversas questões relevantes do contexto do mercado de trabalho. Mas nos ajudam a ilustrar o ponto que aqui se quer ressaltar: o desempenho da economia brasileira ao longo de todo o período 2015-2021 foi muito ruim, sem precedente histórico. Conforme se observou, o desemprego é hoje expressivamente mais alto, o número absoluto de pessoas ocupadas similar, e a composição das ocupações sugere uma menor capacidade de mobilização e organização da força de trabalho. E tudo isso ocorreu principalmente em função de uma performance econômica absolutamente insuficiente ao longo de todo esse período, contrastando invariavelmente com as expectativas otimistas insistentemente renovadas. Completamos os dados estatísticos selecionados para ilustrar nossos argumentos com a informação de que, considerando o acumulado de quatro trimestres até setembro de 2021, o PIB brasileiro ainda encontra-se 2,5% abaixo do que havia sido registrado em 2014. Ficando claro assim que a pandemia bem pode ter agravado, mas não foi ela que causou a enorme subutilização da força de trabalho, associada a uma expressiva precarização das condições socioeconômicas da população. A escalada das ocupações por conta própria, associadas às novas formas de exploração do trabalho por plataformas, configuram uma nova realidade para a utilização da força de trabalho nas economias capitalistas periférica, com consequências sociais e políticas ainda não completamente tão evidentes. Para uma conjuntura de mais curto prazo, essa condição precisa ser considerada como algo mais estrutural. Mas ela não deve ser considerada definitiva, imutável ou irreversível. Pode-se alterá-la, ainda que não rapidamente e sim pelo retorno de um crescimento econômico robusto, com geração persistente de vínculos formais de trabalho. A recuperação recente não teve qualquer capacidade de reverter esse problema.
Seja como for, não devemos nos enganar a respeito, por mais dura que possa ser a constatação: no pós-pandemia, a situação econômica do Brasil continua algo crítico em termos de uma nação que almeja qualquer avanço do seu bem-estar material. A pandemia afetou a praticamente todos os países do mundo, mas o Brasil já vinha de um péssimo desempenho e não teve em suas autoridades bons gestores da nova crise. O saldo geral tende a ser o aumento da desigualdade e uma coleção de resultados ruins em diferentes comparativos internacionais. Deixando a pandemia para trás, voltamos ao antigo normal em que havia uma dinâmica insuficiente de crescimento econômico e de geração de ocupações. O ano de 2022 será, portanto, fundamental para o debate e a avaliação crítica da performance desse período mais longo, não apenas da pandemia. Se desastrosa foi a realidade econômica do período 2015-2021, deve fazer parte do debate a apreciação sobre as diretrizes de política econômica adotadas e a validade factual das narrativas que lhe davam sustentação. Ainda que vozes críticas tenham se levantado desde o primeiro momento da adoção da postura de austeridade na política fiscal, em 2015, poucos foram os espaços que se abriram nos grandes veículos de comunicação para esta linha de argumentação a para a problematização a respeito das reformas de orientação neoliberal.
Conforme se observou no início do texto, a população em sua maioria não deu ouvidos ao obscurantismo no que diz respeito à adesão à vacinação contra a Covid-19. Podemos cogitar que alguma parte importante desse resultado deva ser atribuído à grande valorização e espaço que durante a pandemia receberam, nos meios de comunicação tradicionais, os pesquisadores e profissionais da área da saúde sempre a orientarem a população nesta direção. Se espaço similar tivesse sido concedido ao longo dos últimos anos para a exposição das conexões entre a performance macroeconômica e a agenda neoliberal adotada, é muito provável que a população pudesse estar também bem mais disposta a vacinar-se contra aquilo que está na raiz dos atuais problemas econômicos.
Fernando Maccari Lara é economista, Doutor em Economia pelo IE/UFRJ.