Por anos tornou-se moda desprezar sua importância. É hora de encerrar seu declínio de quatro décadas.
José Álvaro de Lima Cardoso
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 23/03/2023
Não existe país soberano sem a presença de indústria desenvolvida, princípio que vale para situações de paz, assim como em eventuais conflitos. A indústria é também fundamental na geração de emprego e renda, inclusive de melhor qualidade. Segundo estimativa da Confederação Nacional da Indústria, para cada 1 real produzido no setor, se gera 2,63 reais na economia como um todo. É fácil compreender que a alavancagem de valor na indústria significa a movimentação da cadeia produtiva como um todo: comércio, setor de pesquisa, serviços em gerais, transporte, logística, infraestrutura, e assim por diante.
A cadeia estruturada pela indústria, pode ser exemplificada pelo ramo petroquímico, área da química encarregada dos derivados de petróleo e sua utilização na indústria. A indústria petroquímica transforma petróleo bruto em uma gama enorme de produtos como gasolina, gás liquefeito de petróleo (GLP), querosene, óleo diesel, nafta petroquímica, solventes, asfalto, dentre outros. O petróleo, além de fonte de energia essencial, é utilizado como matéria prima para mais de 3.000 bens industriais. É fácil constatar que a cadeia de produção de derivados do petróleo gera emprego e renda em todo o processo produtivo. Essa característica, com especificidades, vale para todos os ramos industriais.
Indústria significa também desenvolvimento da tecnologia. A política de venda de refinarias de petróleo e exportação do combustível cru é também prejudicial ao país porque restringe as possibilidades de desenvolvimento da pesquisa e tecnologia. Se a Petrobrás é hoje uma gigante na exploração de petróleo em águas profundas e ultra profundas, e referência mundial na área, é fruto do desenvolvimento de tecnologia regular e de alto nível. A descoberta do pré-sal é resultado de esforços contínuos em pesquisas, em um padrão extremamente elevado, situação rara em países subdesenvolvidos.
A crise gravissima da indústria de transformação no Brasil deveria ser enfrentada como prioridade pelo governo Lula. Em tabela elaborada pelo DIEESE, com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), constata-se que, em 74 anos, desde 1947, a participação da indústria para a formação do PIB (Produto Interno Bruto) no país foi a menor da história em 2021, apenas 11,3%. Em 1985, ápice da industrialização no Brasil, a participação da indústria no PIB era de 35,9%, segundo a tabela mencionada. Desde a recessão iniciada em 2014, o Brasil assiste o número de indústrias cair.
Há uma relação direta entre desenvolvimento da indústria e renda per capita, que é um indicador fundamental de potencial de um país, para a distribuição de renda. O golpe de Estado de 2016 foi também contra o desenvolvimento nacional e, portanto, contra a indústria nacional. A fúria de Michel Temer e Bolsonaro para entregar as refinarias de petróleo e outros ativos a preço de banana é um sintoma da natureza dos golpistas, contra o desenvolvimento nacional. Pode-se dizer o mesmo em relação à entrega da Eletrobrás no ano passado.
Nesse ambiente, entre 2015 e 2020, foram extintas 36,6 mil fábricas, o que equivale a quase 17 estabelecimentos liquidados diariamente (dados da Confederação Nacional do Comércio, CNC). Essa dinâmica, além de decorrer do processo mais estrutural de desindustrialização do país, está ligada diretamente ao golpe. Tanto é verdade que até 2014 o número de fábricas crescia, apesar da perda de importância da indústria de transformação no conjunto da economia.
Dada a importância da indústria para o desenvolvimento nacional e a complexidade do tema, o país deveria ter estratégias de longo prazo, envolvendo todos os segmentos importantes da sociedade. Os motivos para a retomada do desenvolvimento industrial são vários:
1) Não há registro na história do país que tenha chegado ao desenvolvimento econômico e social sem uma generalizada industrialização e um forte e ativo Estado nacional. Mesmo economias que utilizaram mais as exportações de produtos primários para elevar a sua renda per capita (como Austrália e Canadá), antes atravessaram períodos de elevada diversificação industrial, elemento essencial das suas estratégias de desenvolvimento;
2) Existe uma relação empírica e conceitual entre o grau de industrialização e a renda per capita, tanto nos países ricos, quanto nos subdesenvolvidos, como mencionado acima;
3) Há uma associação estreita entre o crescimento do PIB e o crescimento da indústria manufatureira. A dinâmica da economia brasileira nos últimos anos, mostra o fenômeno: o PIB apresentou queda, em boa parte, porque a indústria de transformação recuou drasticamente, criando um círculo vicioso;
4) A produtividade é mais dinâmica no setor industrial do que nos demais setores. É a indústria que puxa o crescimento de produtividade da economia;
5) O avanço tecnológico que se concentra no setor manufatureiro tende a se difundir para outros setores econômicos, como o de serviços ou mesmo a agricultura. Os bens com maior valor adicionado produzidos pela indústria incorporam e disseminam maior progresso técnico para o restante da economia.
Nos países desenvolvidos, que em alguns casos se desindustrializaram, a indústria nacional já cumpriu o seu papel no desenvolvimento econômico, colocando a renda per capita da população em patamar elevado. Ao se desindustrializar, o Brasil está perdendo, gradativamente, a sua maior conquista econômica do século XX. Entre 1930 e 1980, a economia brasileira cresceu a elevadas taxas (6,8%, entre 1932-1980) baseado no chamado “processo de substituição de importações”, com fortes incentivos estatais à industrialização através das políticas cambial, tarifária e fiscal.
Caberia neste momento um vigoroso projeto nacional, que possibilitasse a retomada da indústria do país. O conjunto de medidas encaminhadas ou anunciadas pelos governos golpistas, a partir de 2016, debilitou ainda mais a indústria: além da venda de estatais estratégicas e entrega de parte do pré-sal, houve achatamento do mercado consumidor interno via arrocho salarial, regressão em décadas na regulamentação do trabalho, esvaziamento do BRICS, fragilização do Mercosul. Tudo isso dificultou em muito a possibilidade de crescimento de uma indústria robusta no país.
Claro, a implementação dessas políticas não foi um equívoco, mas um projeto dos governos a partir do golpe de 2016. A destruição da indústria, e a transformação do Brasil num fornecedor de commodities baratas para os países centrais, não são efeitos colaterais, ou “erros”, da política econômica desenvolvida desde Michel Temer, e sim parte constitutiva de um projeto de recolonização do Brasil. Apesar de o governo Lula estar cercado por tubarões, temos a oportunidade agora de reversão dessas políticas e da construção de um projeto nacional.
José Álvaro de Lima Cardoso é economista, doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, supervisor técnico do escritório regional do DIEESE em Santa Catarina.
Excelente.