Por que precisamos discutir uma legislação sobre direitos humanos para empresas nesta eleição

Uma carta endereçada ao candidato Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera as pesquisas de intenção de votos para presidente, pede compromisso com uma pauta que não aparece de forma explícita no programa de nenhuma candidatura presidencial nas eleições de 2022: a elaboração de um marco legal que determine a responsabilidade das corporações em relação aos direitos humanos em território brasileiro. 

“A proteção das e dos brasileiros das violações dos direitos humanos produto da operação das empresas é um tema urgente para a construção de um Brasil justo e sustentável, e estamos certos de que esta proposta poderá avançar e ser aprovada se contar com o apoio efetivo do futuro Presidente da República”, diz a carta.

A menos de um mês da eleição presidencial, esse é mais um dos temas-chave da vida da população que não figura na boca dos candidatos melhor posicionados. Os impactos negativos decorrentes das atividades de grandes empresas afetam cada vez mais pessoas. Economistas, militantes e pesquisadores de diferentes áreas alertam para um nível de desigualdade crescente e sem paralelos. A Oxfam, uma organização não governamental, calcula que um novo bilionário surja a cada 33 horas, e os 2.668 bilionários do mundo controlam quase 14% do PIB global.

Nessa esteira, o documento pede compromisso dos candidatos em relação ao projeto de lei (PL) 572/2022, que cria a Lei Marco Nacional sobre Direitos Humanos e Empresas e estabelece diretrizes para a promoção de políticas públicas sobre o tema.

“Ainda que possua legislação esparsa sobre proteção ambiental, trabalhista e demais direitos fundamentais, o marco legal em vigor possui lacunas significativas na regulação da atuação empresarial no território brasileiro e na reparação das vítimas”, diz a carta.

Assinam o documento o Centro de Direitos Humanos e Empresas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Teto (MTST) e as organizações não governamentais Amigos da Terra Brasil e Terra de Direitos. 

“Fizemos esse projeto a muitas mãos. Foram mais de 100 entidades que participaram, um projeto que na verdade foi construído com e pelos movimentos sociais e eu tenho orgulho de ser coautora com mais três parlamentares”, disse ao Joio Fernanda Melchionna, que assina o projeto de lei ao lado de Áurea Carolina (PSOL-MG), Carlos Veras (PT-PE) e Helder Salomão (PT-ES). O PL foi encaminhado ao Congresso Nacional em 14 de março deste ano, data em que é celebrado o Dia Internacional de Luta contra as Barragens. 

Em abril, o Conselho Empresarial Brasileiro pelo Desenvolvimento Sustentável (CBDS), associação que reúne 80 grupos empresariais com atuação no país, divulgou uma carta aberta às candidaturas presidenciais com pontos “que não podem deixar de ser observados dentro de um plano estratégico para colocar o Brasil como protagonista da nova economia verde global”.

O conselho é integrado por uma variedade de grupos empresariais que engloba multinacionais como Amazon e Microsoft, redes de supermercados (Assaí, Carrefour), empresas do ramo de alimentos e bebidas (Ambev, Nestlé, Danone, JBS, Marfrig, Cargill), agronegócio (Amaggi), mineração (Vale), setor de energia (Neoenergia, Norte Energia, Eletrobrás) e bancos (Itaú, Santander, Bradesco).

Na carta, o conselho que representa a “agenda verde” do setor empresarial destaca como compromissos internacionais a serem seguidos pelo Brasil os parâmetros de Empresas e Direitos Humanos da ONU, que apontam a necessidade de elaboração de normas específicas e a adoção do Plano Nacional de Ação sobre Empresas e Direitos Humanos.

Apesar de fazer menção a esses princípios orientadores, o documento não cita o projeto encaminhado ao Congresso Nacional e, nas linhas de ação propostas às candidaturas presidenciais, não sugere nenhuma medida concreta a ser adotada pela futura gestão. 

As duas cartas elaboradas no contexto eleitoral refletem a distância entre o que as empresas estão dispostas a fazer em relação ao tema e o que as vítimas de violações das corporações apontam como necessário em relação ao tema.

Não existe hoje no país nenhuma legislação que determine a conduta das empresas no caso de violações de direitos humanos. Exemplo disso é a dificuldade de acesso à reparação por parte das populações atingidas pelas empresas Vale, Samarco e BHP Biliton, responsáveis pelo rompimento das barragens de Fundão, em Mariana (MG), em 2015, e da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), em 2019.

Relatório aprovado em agosto de 2021 por uma comissão externa da Câmara dos Deputados aponta falta de participação dos atingidos nas negociações e a ausência de consulta prévia para que as reparações atendam ao modo de vida das comunidades em relação ao rompimento da barragem em Brumadinho. O diagnóstico se repete no relatório apresentado em junho deste ano pela comissão externa destinada a fiscalizar a repactuação do acordo referente ao rompimento da barragem em Mariana.

O que existe hoje no Brasil são apenas diretrizes voluntárias, que contam com a boa vontade das corporações para sua implementação, como o Decreto nº 9.571/2018, editado durante o último da gestão de Michel Temer, que institui Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos.

“Um decreto de cima para baixo, aprovado sem nenhum debate com a sociedade civil, não houve participação nenhuma”, aponta a coordenadora do Homa – Centro de Direitos Humanos da Universidade Federal de Juiz de Fora, Manoela Roland. 

Criado em 2012, o centro acadêmico de pesquisa e extensão integra o grupo de trabalho sobre empresas e direitos humanos brasileiro, formado por organizações da sociedade civil. “As obrigações contidas nesse decreto não se aplicam às empresas, que podem inclusive ser premiadas com selos e certificações se cumprirem as medidas, que são voluntárias.”

Para o advogado do Coletivo de Direitos Humanos do Movimento dos Atingidos por Barragens, Leandro Scalabrin, a pandemia de covid-19 escancarou a falta de compromisso das empresas em relação à proteção dos trabalhadores. “Não vimos nenhuma empresa estabelecer voluntariamente normas que restringissem o seu funcionamento.”

Ele cita como exemplo a exposição ao contágio de trabalhadores em frigoríficos na região Sul do país. “Eles não só não diminuíram como aumentaram a produção. E não era para alimentar o povo brasileiro, era para exportar carne de frango, carne de gado, aproveitando um aumento na demanda internacional, matando pessoas no Brasil.” Reportagem do Joio mostrou que, logo no começo da pandemia, cidades pequenas que sediam frigoríficos tinham índices de infecção e mortes bem acima da média nacional.

O decreto da gestão Temer segue as mesmas diretrizes citadas pela carta dos empresários. Os Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos foram criados pelo professor John Ruggie (1944-1921), representante especial sobre o tema nas Nações Unidas. Aprovados em 2011, estabelecem a devida diligência em direitos humanos para as corporações, processo que consiste em identificar, prevenir, mitigar, monitorar e prestar contas sobre os ricos e os impactos da atividade empresarial nos Direitos Humanos. 

O relatório de avaliação sobre os dez anos de implementação dessas diretrizes, elaborado em 2021 pelo Grupo de Trabalho sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU, aponta que, para se tornarem efetivos, esses princípios devem ser acompanhados de políticas nacionais que determinem sanções para empresas que violarem os direitos humanos. O documento destaca que o “aumento das medidas obrigatórias irá, sem dúvida, acelerar a aceitação e o progresso” em relação à implementação dessa política.

O grupo de trabalho composto por especialistas independentes aponta no relatório a persistência dos abusos empresariais em todas as regiões e destaca como desafio para essa agenda o acesso à reparação por parte das vítimas e a responsabilização das empresas pelas violações cometidas.

“Onze anos depois da adoção dos princípios orientadores, podemos dizer que os esforços do setor privado com os compromissos de melhores práticas corporativas não são suficientes”, disse ao Joio a atual presidente do grupo de trabalho da ONU, Fernanda Hopenhayn, advogada e pesquisadora uruguaia que vive no México, onde fez mestrado sobre estudos latino-americanos pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM).

“Precisamos de um tratado internacional, de leis nacionais normativas, instituições fortes e um estado que faça o seu trabalho como ente regulador e também como garantidor dos direitos humanos. O Estado tem que realmente regular a atividade das empresas no seu território, além de ter responsabilidades extraterritoriais. Por isso é importante ter leis nacionais, mas que também possam ser utilizadas internacionalmente, como a lei francesa.”

Contexto internacional

A França foi o primeiro país a aprovar no Congresso uma lei nacional sobre o tema, a Lei de Vigilância (Lei 399/2017), que determina que as corporações com mais de 5 mil funcionários são responsáveis em relação a violações de direitos humanos e ao meio ambiente em suas cadeias produtivas, incluindo suas filiais pelo mundo.

A lei permitiu que, pela primeira vez, uma rede de supermercados francesa fosse levada a um tribunal de seu país por desmatamento de terras na Amazônia. Responsável pelas redes Pão de Açúcar, Assaí e Extra no Brasil e pela rede Éxito na Colômbia, o grupo Casino Guichard-Perrachon foi alvo de uma ação protocolada em março de 2021 por onze organizações ambientais francesas e de povos indígenas do Brasil e da Colômbia na cidade de Saint-Étienne, sede da corporação, após a divulgação de um relatório inédito elaborado pela ONG Repórter Brasil, que aponta problemas socioambientais da cadeia da carne.

Segundo dados divulgados pela ONG francesa Sherpa, o grupo teria comprado regularmente carne de frigoríficos abastecidos com gado de 592 fornecedores culpados pelo desmatamento de pelo menos 50 mil hectares entre 2008 e 2020. Um relatório do  Centro para Análises de Crimes Climáticos (CCCA – Center for Climate Crime Analysis –, na sigla em inglês) divulgado em junho deste ano aponta que os responsáveis pelo desmatamento são produtores que fornecem gado a três unidades controladas pela JBS em Rondônia que abastecem as redes de supermercados do grupo Casino. Parte desse rebanho é criado de forma ilegal dentro da Terra Indígena Uru-eu-Wau-Wau no estado. 

A primeira audiência sobre o caso ocorreu em 9 de junho deste ano no Tribunal Judiciário de Paris. Holanda, Noruega e Alemanha também elaboraram legislações de devida diligência das empresas em matéria de direitos humanos e meio ambiente em suas cadeias produtivas. Essas movimentações levaram a União Europeia a elaborar a primeira legislação regional sobre o tema. 

Apresentado em fevereiro deste ano, o documento com as diretrizes sobre devida diligência corporativa determina que os países-membros do bloco devem obrigar as empresas a identificar, prevenir e mitigar violações de direitos humanos e do meio ambiente em suas cadeias produtivas. Caso aprovada pelo Parlamento Europeu, a proposta terá dois anos para ser implementada.

O processo de elaboração do documento teve início em 2020, após a publicação de um estudo elaborado pela Comissão Europeia que revelou a ineficácia das medidas adotadas pelas empresas sobre a devida diligência.

Na região da América Latina e Caribe, a legislação brasileira é a primeira a entrar em discussão no parlamento. A presidente do Grupo de Trabalho da ONU ressalta que o texto brasileiro é mais amplo em relação às leis existentes hoje no mundo sobre o tema. “É bem especial o que está acontecendo no Brasil, não tem muito precedente de uma lei escrita em conjunto pelos congressistas com a sociedade civil, mais ampla que somente a devida diligência”, avalia.  

Ela aponta o período eleitoral como um momento fundamental para o compromisso da classe política em relação ao tema, que não pode estar fora da agenda de direitos e garantias de nenhum governo.

“É muito importante ter compromissos claros da classe política e dos candidatos num processo eleitoral com essa agenda”, diz Hopenhayn. “Se falamos de direitos dos povos indígenas, quilombolas, tem a ver com a atividade empresarial nos territórios. Estamos falando dos direitos ambientais, o direito à água, à saúde, ao trabalho digno. Tudo isso tem a ver com a atividade empresarial, indiscutivelmente.”

Compromisso eleitoral

Hoje, no Brasil, o atingido pela mineração ou por uma hidrelétrica em Goiás não recebe os mesmos direitos que a população atingida pela mineração ou por uma hidrelétrica no Pará ou por uma barragem na Bahia ou no Rio Grande do Sul. “Por isso a necessidade dessa regulação nacional prevista no PL, dos conceitos de quem é reconhecido pelo Brasil como atingido e quais são os seus direitos, coisa que não existe em nenhum outro país do mundo e não existe hoje na legislação brasileira”, ressalta Leandro Scalabrin.

O PL 572 tem um capítulo voltado exclusivamente para dispor sobre os direitos de pessoas e comunidades atingidas. “Isso significa colocá-las no centro da discussão, como agentes das políticas que o projeto implementa e não só como objetos dela”, destaca Melchionna.

O acúmulo de movimentos e organizações que trabalham essa temática ao longo dos anos deu o tom do projeto brasileiro. “São obrigações diretas para as empresas, que preveem o protagonismo dos possíveis atingidos e atingidas nos territórios, desde o planejamento da atividade, como direito até de se opor àquele projeto”, enfatiza Manoela Roland.

Após tramitar por duas comissões – Direitos Humanos e Minorias (CDHM) e Trabalho, de Administração e Serviço Público (CTASP) –  o projeto de lei está agora na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviço (CDEIS) sob relatoria do deputado Otto Alencar Filho (PSD-BA).

O secretário de Políticas Sociais e Direitos Humanos da CUT, Ismael Cesar, diz não ter nenhuma ilusão de que ele seja aprovado ainda este ano.“A correlação de forças não é favorável aos trabalhadores com uma maioria de parlamentares comprometidos com as grandes empresas. Mas a ideia é criar musculatura, organizar audiências públicas ainda esse ano e ganhar o apoio da sociedade civil para que, aí sim, na próxima legislatura, com outro Congresso Nacional, um outro presidente, a gente possa pautar na agenda este PL.”

Candidata a um novo mandato nas eleições deste ano, Melchionna ressalta a importância de pautar o tema para além dos postulantes à Presidência. É preciso olhar para as candidaturas que formarão a nova composição do Congresso Nacional a partir de 2023.

“Nós temos um Congresso extremamente conservador, ligado aos interesses das grandes empresas. É preciso ampliar a pressão de fora para dentro do Parlamento para defender um projeto desse tipo, pegando casos concretos, porque, afinal, foram vários casos de violação sistemática de direitos humanos para exploração da mão de obra e devastação ambiental.”

O que está em jogo para o Brasil de 2023

O governo chileno de Gabriel Boric assumiu durante as eleições de 2021 o compromisso de discutir uma lei de devida diligência e tem avançado nesse processo. Poucos dias antes da posse de Boric, em março deste ano, a gestão de Sebastian Piñera apresentou uma revisão do Plano Nacional de Ação, o PAN, que vai na contramão dos esforços para avançar em relação ao tema.

“A participação da sociedade civil não teve incidência na elaboração do PAN 2. Pelo mesmo motivo, consideramos que o plano aprovado para o período 2022-2025 carece de legitimidade social indispensável para assumir a problemática que pretende abordar”, denunciou a Plataforma Chilena da Sociedade Civil sobre Direitos Humanos e Empresas, em junho deste ano.

O comunicado da plataforma sugere um processo de participação e consulta a ser realizado no segundo semestre, para que o governo de Gabriel Boric “conte com um plano trienal cuja duração coincidirá com a de sua gestão”, além de destacar “como uma medida fundamental” a ser incorporada no plano a apresentação ao Congresso de um projeto de lei de devida diligência de empresas em matéria de direitos humanos.

O Brasil caminha para um cenário parecido após as eleições de outubro. Com a previsão de ser apresentado em dezembro de 2022, o plano elaborado pela pasta da ministra Damares Alves tem potencial de ser um cavalo de Tróia para o próximo governo, a depender do resultado das urnas.

Os planos de ação nacionais começaram a ser criados a partir de 2015, paralelamente à discussão de um tratado internacional nas Nações Unidas, que teve início em 2014 com a resolução 26/9 e a criação de um grupo de trabalho específico para isso.

Na região, Colômbia, Chile e Peru adotaram planos nacionais. Além do Brasil, México, Guatemala e Argentina têm planos hoje em elaboração. Da perspectiva do Homa, que acompanha o processo de avaliação dos planos na região, essa política tem se mostrado ineficaz, devido à baixa participação social e por não prever obrigações diretas para as empresas.

“Continuam dentro da lógica do voluntarismo, não tem sanção. Não têm uma metodologia participativa com relação a atingidas e atingidos por violações, tem um déficit de participação intrínseco a esses planos”, destaca Manoela Roland. 

“É um contexto político inegável de tornar claro o discurso de violação aos direitos humanos, de passar a boiada, de relativização de alguns marcos normativos considerados exemplos mundialmente.”

A iminência da apresentação de um PAN com as digitais de Jair Bolsonaro mobilizou a sociedade na elaboração do PL 572/22, que se coloca como um marcador sobre o tema para as eleições de outubro.

O apoio ao projeto de lei em detrimento de um plano nacional sem participação da sociedade, pode dar o tom de um governo mais favorável à proteção aos direitos humanos, além de acenar com o compromisso de limitar a atividade exploratória de empresas transnacionais no país. Manoela Roland considera que o texto apresentado ao Congresso tem um efeito “pedagógico e ilustrativo” de oposição à atual gestão e pode demarcar uma transição de retorno à defesa dos direitos humanos no país. 

“O apoio ao projeto, até para o aperfeiçoamento dele, ou pelo menos a produção de um Plano Nacional de Ação que tenha a influência desse texto, seria muito importante, um termômetro positivo da retomada de uma agenda pró direitos humanos de qualquer governo que venha assumir o poder.”

Fonte: O Joio e o Trigo
Texto: Leandro Melito
Data original da publicação: 14/09/2022

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