Se vingar, o sindicato de Bessemer vai entrar para a história como a primeira representação coletiva fundada ao longo dos 25 anos de existência da gigante tecnológica.
Carlos Juliano Barros
Fonte: UOL
Data original da publicação: 16/03/2021
No próximo dia 30, os Estados Unidos vão conhecer o resultado de uma aguardada votação que vem mobilizando astros do futebol americano, estrelas de Hollywood e até o recém-empossado presidente Joe Biden. No fim do mês, será enfim anunciada a decisão dos quase 6 mil funcionários de um armazém da Amazon na cidade de Bessemer, no Alabama, sobre a criação de um sindicato para negociar melhores condições de trabalho com a empresa.
Os estoquistas se queixam do ritmo intenso de catalogação e despacho dos produtos vendidos pela líder mundial de comércio eletrônico – no ano passado, as vendas da Amazon bateram recordes e alcançaram impressionantes US$ 386 bilhões. Para garantir que o corpo dê conta do recado, dicas inusitadas são compartilhadas em fóruns do Facebook, como vestir meias de compressão e tomar o anti-inflamatório Ibuprofeno entre os turnos. Também sobram reclamações sobre os protocolos de saúde adotados pela empresa durante a pandemia.
A big tech fundada por Jeff Bezos refuta as críticas e afirma que, além de garantir benefícios, paga uma remuneração básica de US$ 15 por hora, o dobro do salário mínimo vigente no Alabama. Numa cruzada sem precedentes, a direção da Amazon tem se empenhado em convencer seus empregados a votarem contra a iniciativa. A estratégia vai da convocação de reuniões, passando pela colagem de cartazes nas paredes do depósito, ao disparo de e-mails e torpedos com mensagens contra a criação do sindicato – um intermediário desnecessário, segundo a empresa.
Lideranças dos trabalhadores acusam a Amazon de agir até para reduzir a duração do sinal vermelho de um semáforo no entorno do armazém de Bessemer, onde funcionários param seus carros por alguns instantes, com o objetivo de impedir a panfletagem e o boca-a-boca.
O próprio presidente americano chegou a dar um pito em público na companhia. “Vou ser claro: não cabe a mim decidir se alguém deve ou não se filiar a um sindicato. Mas vou ser ainda mais claro: isso também não cabe ao empregador. A decisão é apenas dos trabalhadores”, disse Biden. Atletas da NFL, a liga de futebol americano, e artistas de cinema têm sido mais efusivos ao manifestar apoio aos funcionários da Amazon. Se vingar, o sindicato de Bessemer vai entrar para a história como a primeira representação coletiva fundada ao longo dos 25 anos de existência da gigante tecnológica.
Atualmente, a Amazon tem cerca de 1,3 milhão de funcionários espalhados pelo planeta. Entre janeiro e outubro do ano passado, informa o New York Times, a companhia admitiu 427 mil pessoas no mundo todo – o maior número de contratações já feitas por uma empresa americana em um único ano. Com a quebradeira generalizada do setor de serviços e a explosão do e-commerce na pandemia, o sistema de logística da Amazon absorveu um verdadeiro exército de desempregados.
Mas o que está em jogo nessa acanhada cidade de 26 mil habitantes do Alabama, encravada em uma paisagem degradada pela extração de carvão, calcário e minério de ferro para a siderurgia, não é o surgimento de apenas mais um sindicato – algo ordinário até os anos 1970, quando Bessemer era um polo industrial relativamente vibrante.
O movimento dos funcionários da Amazon é mais uma prova do quão urgente é discutir a relação entre trabalhadores e plataformas de tecnologia concebidas sob o catecismo do Vale do Silício, avesso a regulações do Estado e pouco afeito ao diálogo com quem pega pesado no batente. A greve mundial dos motoristas da Uber, em maio de 2019, e o brasileiríssimo Breque dos Apps em julho do ano passado já haviam cantado essa bola.
A mobilização em Bessemer também pode implodir uma análise que virou lugar-comum: entidades que representam os interesses de trabalhadores são instituições paradas no tempo e já não fazem mais sentido na economia digital contemporânea. Isso se explicaria por fatores estruturais, como a queda da participação da indústria no PIB global e o desaparecimento das massas de operários em virtude do avanço tecnológico. E também se justificaria por razões culturais, como a popularização da cultura do empreendedorismo.
Na prática, convenhamos, não existe muita diferença entre o operário apertando parafuso na linha de montagem – perdão, mas não há como dispensar o clichê da referência a Chaplin em “Tempos Modernos” – e o funcionário da Amazon escaneando centenas de produtos por hora no armazém de Bessemer. Aliás, só esse depósito no Alabama tem praticamente o mesmo número de empregados demitidos das três fábricas fechadas em janeiro pela Ford no Brasil.
E, a essa altura do campeonato, fica cada vez mais difícil comprar o discurso de que quem ganha a vida trabalhando para as gigantes de tecnologia possui qualquer vestígio de empreendedorismo – mesmo que tenha liberdade para recusar algumas tarefas ou flexibilidade para programar o próprio expediente.
É no mínimo legítimo – para não dizer necessário – criar entidades capazes de representar os interesses de funcionários de uma companhia que avança em velocidade vertiginosa e responde por um dos maiores quadros de funcionários do planeta.
Por outro lado, há um consenso de que o movimento sindical precisa se reinventar e criar um novo arsenal de ferramentas para representar uma categoria com a qual não está acostumado a lidar e que não para de crescer no mundo todo – o chamado “precariado” digital. Se for exitosa, a mobilização de Bessemer pode lançar as bases para organizações semelhantes planeta afora.
Carlos Juliano Barros é jornalista e mestre em Geografia pela USP.