Flávio Comim
Fonte: Zero Hora
Data da publicação original: 10/08/2014
O mundo é desigual. Uma parte dessa desigualdade é boa. É o que dá cor à vida e nos faz únicos e diferentes. Mas outra parte da desigualdade é ruim, quando representa um passado que impede o futuro de acontecer e nega oportunidades iguais às pessoas. Somos desiguais também em nossas opiniões sobre as desigualdades. Alguns de nós acreditam que as desigualdades de oportunidades (principalmente as econômicas) são um custo necessário para manter nossos sistemas produtivos lubrificados. Outros veem nessas desigualdades uma característica inaceitável de nossas sociedades. É muito difícil pensar de modo imparcial, distante de nossos interesses e preconceitos, sobre todos os tipos de desigualdade na sociedade, porque nossa razão é escrava de nossas reflexões fragmentadas, que são resultantes de uma amálgama de conhecimento intuitivo que acumulamos a partir de nossas experiências e circunstâncias pessoais.
Thomas Piketty, professor da Paris School of Economics, publicou este ano um “tour de force”, O Capital no Século XXI, sobre o papel da desigualdade de renda e de riqueza na configuração da estrutura social em que vivemos. Não se viu um livro de economia que tenha causado tamanho furor nesses últimos tempos. O prêmio Nobel Paul Krugman nomeou-o de “o mais importante da década”. Outro Nobel, Robert Solow, qualificou-o como “uma contribuição poderosa”. A revista inglesa The Economist chamou-o de “guia definitivo sobre a desigualdade”. Inúmeras resenhas foram escritas sobre o livro. Isso não significa que ele ficou isento de críticas (como a do jornal inglês Financial Times, que o criticou por suas séries históricas), muito pelo contrário; apenas ilustra o fato de que Piketty tocou o “dedo na ferida”, especialmente em um contexto pós-crise de 2008.
Segundo ele, devemos tentar entender, de modo sistemático e metódico, a desigualdade não apenas de renda (que é gerada ao longo de um ano) mas de riqueza (acumulada historicamente), pois encontramos na tensão entre essas duas linhas distributivas uma dinâmica de classes, de interesses e de mecanismos institucionais que impactam na constituição das estruturas sociais e no modo como a política se materializa em nossas vidas.
O método usado por Piketty é simples: primeiro, trata do marco teórico (no caso, centrado em duas leis fundamentais do capitalismo, que relacionam a desigualdade ao crescimento econômico e ao retorno do capital) e depois a busca por evidências (principalmente na história econômica da Europa e Estados Unidos, desde o século 18) que confirmem suas hipóteses. Nessa trajetória, ele procura mostrar que a desigualdade motivada pela reprodução da riqueza pela riqueza (principalmente do capital herdado que busca valorização na esfera financeira) está na origem dos problemas econômicos e políticos contemporâneos.
De fato, a desigualdade da distribuição da riqueza é bem maior do que a da renda. No mundo, os 10% no topo da distribuição da renda do trabalho recebem normalmente 25% a 30% da renda total, enquanto os 10% mais ricos na distribuição de riqueza têm sempre mais do que 50% do total. Apenas números? Não, segundo ele, pois estamos falando de uma luta intergeneracional que se sobrepõe à luta de classes e que pode afetar o próprio futuro do capitalismo.
Vejamos alguns outros números. Pensemos primeiro na renda. Se o salário médio nas sociedades mais iguais (como nos países Escandinavos) é de R$ 6 mil por mês, os 50% mais pobres ganham R$ 4,2 mil reais, os 10% mais ricos ganham R$ 12 mil e os 1% mais ricos ganham R$ 30 mil. Por outro lado nos países mais desiguais (como nos Estados Unidos), os 50% mais pobres ganham apenas R$ 3 mil, os 10% mais ricos ganham R$ 21 mil e os 1% mais ricos ganham R$ 72 mil. Essas diferenças são fundamentais no tipo de vida que as pessoas podem levar nessas sociedades, escondendo algumas vezes formas de discriminação de gênero ou de raça.
Quando passamos para a distribuição de riqueza, vemos uma concentração ainda maior. Na maior parte dos países europeus ricos, a riqueza média do cidadão é de R$ 600 mil por adulto. Como os 50% mais pobres nessas sociedades têm apenas 5% da riqueza, isso equivale a um patrimônio de R$ 60 mil. Por outro lado, os 10% mais ricos, que têm 60% de toda a riqueza, possuem patrimônio em média de R$ 3,6 milhões (em que os 9% mais ricos têm uma riqueza de R$ 2.4 milhões e o 1% mais rico ultrapassa os R$ 15 milhões). Interessante observar que os mais ricos entre os ricos não acumulam riqueza via ativos imobiliários, mas sim via ativos financeiros. No final, a riqueza é ainda bem mais concentrada do que a renda.
Em 1987, havia 140 bilionários no mundo, que juntos tinham US$ 300 bilhões de riqueza. Em 2013, tínhamos já 1,4 mil bilionários, que possuem US$ 5,4 trilhões, quase quadruplicando sua participação na riqueza privada do mundo no período.
Durante todo o livro, Piketty mostra certa incredulidade em como “os vencedores” da hierarquia social conseguem convencer “os perdedores”. Ele argumenta como a justificativa de que altos salários podem ser explicados por diferenciais de produtividade não possui embasamento empírico e chega perto, segundo ele, de “uma construção puramente ideológica”. Ele questiona ainda o significado de “classe média” e de como o poder econômico se reproduz socialmente.
Assim, se ele estiver certo, somos dominados – sim, dominados, diz ele – por 0.1% dos mais ricos no mundo que nos fazem acreditar, com base nas migalhas que nos deixam – sim, ‘migalhas’, ele usa essa palavra – que estamos muito bem como classe média e como pobres. Para ele a riqueza é tão concentrada que nós não temos nem ideia de como ela se reproduz.
Podemos, assim, viver “felizes”, em um mundo desigual, admirando aqueles que nos oprimem.
Flávio Comim é professor do Instituto de Economia da UFRGS.