A situação do Censo Demográfico de 2020 é alarmante. Na posse da nova presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o ministro da Economia determinou um corte drástico no orçamento da pesquisa. A meta deveria ser cumprida de qualquer maneira: por meio da redução do questionário, das entrevistas, das contratações. Em meio ao tumulto, sugeriu-se que o IBGE até mesmo vendesse suas instalações para custear o Censo. E finalizou o ministro com uma máxima obscurantista: “quem pergunta demais vai descobrir o que não quer”.
Mas será mesmo que o Censo tem perguntas demais? Será que cortes nos questionários promoveriam a economia almejada? Quais os impactos disso sobre o planejamento das políticas públicas no Brasil? Essas são as perguntas que neste breve ensaio nos propomos a responder.
O Censo pergunta demais?
Censos não são apenas contagens populacionais. Historicamente, as finalidades eram primordialmente fiscais (para prever a arrecadação de impostos) e militares (aventando o potencial número de recrutas). O primeiro Censo feito pelo IBGE foi em 1940. Mais ainda no século 19 houve recenseamentos no Brasil. Com a complexificação das sociedades vieram desafios — e os Censos evoluíram.
No Brasil, justamente em razão da necessidade de investigar mais quesitos, em 1960, a pesquisa se desdobrou em duas: o “Universo” e a “Amostra”. O Universo é de fato o que costumamos entender como o Censo: um questionário aplicado a todos os habitantes. A Amostra é uma pesquisa mais detalhada, porém aplicada apenas a uma fração da população (cerca de 10%). Com o surgimento da pesquisa amostral, o questionário do Universo foi bastante reduzido, e a investigação aprofundada de diversos temas pode ser realizada sem que o custo da pesquisa se elevasse sobremaneira. Ressaltamos que nem todos respondem ao questionário completo: indivíduos que não estudam, por exemplo, saltam todo bloco de quesitos sobre educação — e assim por diante.
Número de quesitos nos questionários do Universo e da Amostra (1950-2010)
Em tempo, é importante também notar que o número de perguntas no Brasil não destoa muito dos padrões internacionais: Inglaterra (57), Austrália (60), Canadá (60), Itália (82), Alemanha (43), Irlanda (47). A possibilidade de reduzir o Censo está diretamente ligada à disponibilidade de fontes alternativas de informações.
Censo, insubstituível
Que alternativas existem? Os Rais (Relatórios Anuais de Informação Social), de responsabilidade do Ministério da Economia, são um registro contínuo de todo o mercado formal de trabalho. Não abarcam, contudo, os empregados informais, conta-própria e empregadores — nem pessoas desempregadas ou fora do mercado de trabalho. Os Censos da Educação Básica e Superior, levados a cabo pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), acompanham alunos ao longo do tempo. No entanto, assim como a Rais, cobrem apenas populações e temas específicos.
Ainda que somássemos o Registro Civil e essas outras pesquisas, não teríamos a mesma cobertura temática e populacional do Censo Demográfico. A Pnad (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios), realizada pelo IBGE, é a fonte de informação mais completa para períodos intercensitários. No entanto, por ser amostral, não garante representatividade detalhada para unidades subnacionais.
Os Censos são a principal (e frequentemente única) fonte de informação sobre inúmeras características do perfil dos municípios brasileiros. Por isso, é fundamental na distribuição dos recursos da União para os entes federados, orientando as quantias a serem alocadas pelo Fundo de Participação dos Estados, pelo Fundo de Participação dos Municípios e também pelo Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica. A distribuição de vacinas e vagas nas escolas dependem do Censo! Os Censos nos permitem ainda estudar características intramunicipais: distritos, bairros e até quarteirões, o que é essencial para a definição de políticas de habitação, transporte, infraestrutura e para a alocação de serviços e atendimentos. Nossos Censos Demográficos são insubstituíveis.
Quanto é possível economizar?
O orçamento inicial do Censo de 2020 era de R$ 3,4 bilhões. Mas cifras nacionais são sempre medidas na casa dos bilhões. O orçamento previsto para as pastas de Saúde, Educação e Segurança Pública somam, em 2019, R$ 228 bilhões. Para termos uma comparação, uma revisão recente mostra que custos do Censo Americano de 2020 podem ultrapassar US$ 15 bilhões (quase R$ 60 bilhões, a preços correntes). Nosso Censo é barato.
Ainda assim, quanto seria possível economizar por meio da redução dos questionários? Façamos aqui um breve exercício, a partir das informações disponíveis no relatório sobre a Metodologia do Censo Demográfico. O Censo de 2010 custou cerca de R$ 1,4 bilhão (em torno de R$ 2,4 bilhões, em valores atuais). No entanto, desse montante, apenas R$ 223 milhões se referiram ao pagamento por questionário aplicado. A maior parte dos custos está ligada à gigantesca operação logística posta em curso.
O IBGE paga valores diferenciados por questionário aplicado, a depender das características de cada localidade: distância, facilidade de acesso, etc. Estimamos que, em média, um entrevistador tenha ganhado nas áreas urbanas R$ 8,55 por cada questionário da Amostra e R$ 3,33 por cada questionário básico. Nas áreas rurais, os valores foram de R$ 10,16 e R$ 3,93. Se anulássemos por completo a pesquisa amostral, aplicando apenas o brevíssimo questionário do Universo, o custo das entrevistas cairia para algo em torno de R$ 185 milhões. No orçamento total, isso representa uma redução de, no máximo, 2% a 3%. Uma economia irrisória e com consequências tremendas. A presidência do IBGE certamente conhece esses números.
Alternativas mais eficazes poderiam viabilizar redução de custos como, por exemplo, convênios com municípios e estados para levar adiante campanhas de sensibilização e para facilitar o transporte e a chegada aos domicílios recenseados.
Uma construção coletiva ameaçada
Até a criação do IBGE, na década de 1930, a realização dos Censos havia sido irregular e intermitente. A instituição representou uma intensa profissionalização da estatística, implementando procedimentos técnicos de excelência, validados no mundo inteiro. Assim, conquistou razoável autonomia frente a partidos e governos.
Tal autonomia, no entanto, não foi sinônimo de distanciamento face às questões sociais. Até recentemente, a elaboração do Censo de 2020 vinha sendo conduzida de modo amplo e democrático, com consultas aos usuários das informações e reuniões com a Comissão Consultiva do Censo Demográfico. Contudo, a pressão para cortar gastos tem fechado o processo, legando-o à mão de pretensos “especialistas” indicados por hierarquias mais elevadas da instituição e do governo.
Técnicos do IBGE reportaram a visita de certa pesquisadora do Banco Mundial que chegou a recomendar que a pesquisa do Universo fosse substituída por uma pesquisa amostral com 9.000 domicílios! Ora, o Brasil possui 5.570 municípios: em média, menos de dois questionários completos seriam aplicados em cada um. O fiasco dispensa comentários ulteriores.
A saída recente foi a indicação do economista Ricardo Paes de Barros para formular uma versão “enxuta” do questionário. PB, como ele é conhecido, possui exímia capacidade técnica e reconhecida reputação profissional. A qualidade do seu trabalho e de sua equipe está fora de questão. No entanto, a inclusão ou exclusão de quesitos no questionário não é apenas um processo técnico; é fruto de demandas sociais.
Determinados problemas sociais apenas passam a ser analisados e considerados quando há dados sobre eles. E não raro são grupos específicos, concernidos por essas questões, os responsáveis pelas sugestões de temas e questões. Certamente, questões técnicas e orçamentárias serão sempre as fronteiras. Porém, a elaboração do questionário do Censo não é apenas um ofício metodológico. E vale reforçar: o eventual enxugamento do questionário contribuiria quase nada para a meta de corte proposta.
O obscurantismo e o apagão estatístico
Se uma árvore cai na floresta e ninguém está perto para ouvir, será que faz um som? Se alguém passa fome ou frio, sem qualquer testemunha, será que vai ser atendida pelas políticas públicas do Estado? A resposta à primeira indagação, filosófica, dificilmente será definitiva. Mas a resposta à pergunta correlata, socialmente orientada, é bastante conhecida: não atuamos sobre aquilo que ignoramos. Os Censos Demográficos cumprem uma função cognitiva vital: acessam aquilo que nossa experiência individual dificilmente poderia tanger. Furam nossas “bolhas” informacionais e dão status de existência ao que jamais poderíamos enxergar. São instrumentos de governança de sociedades complexas e fundamentais para um país de proporções continentais, como o nosso.
No entanto, recentemente testemunhamos ao Ministério da Educação considerando interromper a avaliação da alfabetização infantil, ao ministro da Economia declarar que o Censo pergunta demais e ao presidente da República rechaçar a metodologia internacional de cálculo das taxas de desemprego. A adoção dessas posições obscurantistas nos ameaça de um “apagão estatístico”, em que resultados são substituídos por tuítes e pelo senso comum — e em que pesquisas correm o risco de serem dilaceradas ou não ocorrer.
Os Censos nos permitem uma visão para além dos enclaves construídos pelas desigualdades e pela extensão dos nossos grupos sociais imediatos. Nos permitem escutar árvores que caem a milhares de quilômetros, e fomes e misérias que ainda são vividas em inimagináveis recantos. São um instrumento de construção de nossa realidade; mas que têm sua realidade, agora, ameaçada.
Fonte: Nexo
Texto: Rogério Jerônimo Barbosa e José Szwako
Data original da publicação: 21/04/2019