O gasto social multiplica o crescimento: o incremento de 1% do PIB nos gastos com educação e saúde, por exemplo, gera crescimento de 1,85% e 1,70% do PIB. Mas por causa da injustiça tributária, 56% do valor dos gastos sociais voltam para o Tesouro na forma de tributos: os beneficiários das políticas sociais são também seus principais financiadores.
Eduardo Fagnani
Fonte: Brasil Debate, com Plataforma Política Social
Data original da publicação: 05/02/2016
A política social brasileira tem papel estratégico como força motriz do crescimento. Os direitos introduzidos pela Constituição Federal de 1988 e as políticas sociais posteriores exigiram grande esforço para mobilização de recursos. Atualmente, o gasto social (três esferas de governo) representa 25% do PIB. Em função dessa dimensão, a política social pode contribuir em duas poderosas frentes, para incentivar o crescimento econômico. A primeira é fortalecer o mercado interno de consumo de massas.
A segunda é ampliar os investimentos na expansão da infraestrutura para enfrentar as deficiências estruturais na oferta de serviços públicos de boa qualidade.
Mercado interno de consumo de massas
Um dos vetores do ciclo recente de crescimento foi a melhoria da renda das famílias que impulsionou o mercado interno (FAGNANI E FONSECA, 2013). Entre 2002 e 2014, mais de 25 milhões de empregos formais foram criados, a taxa de desemprego caiu para menos da metade (de 12,3% para 5,5%) e o salário mínimo real cresceu mais de 70%.
A renda das famílias também foi ampliada pelas transferências de renda da Seguridade Social (cerca de 40 milhões de benefícios diretos, 2/3 dos quais equivalentes ao piso do salário mínimo) e dos programas de combate à pobreza extrema. A impulsão da renda das famílias ampliou o consumo popular, impulsionando os investimentos privados para ampliar a oferta, gerando um ciclo virtuoso de geração de mais empregos e impulsão das receitas governamentais.
A melhoria das contas públicas reduziu as restrições para o financiamento das despesas sociais. O Gasto Social Federal (GSF) per capita experimentou aumento real de quase 60% entre 2004 e 2010 (passou de R$ 2.100,00 para R$ 3.325,00). O principal item de ampliação do gasto social consistiu nas transferências de renda da Seguridade Social. Mas eles também foram impulsionados, na expansão da oferta de serviços sociais (CASTRO E OUTROS, 2012).
O gasto social tem efeitos multiplicadores sobre o crescimento. Incremento de 1% do PIB nos gastos com educação e saúde, por exemplo, gera crescimento de 1,85% e 1,70%, respectivamente, do PIB. Em função da grave injustiça do sistema de impostos, 56% do valor dos gastos sociais voltam para o caixa do Tesouro na forma de tributos: os beneficiários das políticas sociais são também seus principais financiadores (CASTRO, 2013).
Investimento na Infraestrutura Social
A segunda frente de contribuição da política social para o crescimento é o investimento em infraestrutura social. Nesse caso, há reais possibilidades de se enfrentarem deficiências estruturais na oferta de serviços públicos de boa qualidade. Como se sabe, apesar dos progressos, as marcas da crônica desigualdade social brasileira não foram apagadas.
Além da injusta distribuição da renda, da secular concentração da riqueza agrária e urbana, da injustiça tributária, da crônica heterogeneidade estrutural do mercado de trabalho, o acesso aos bens aos bens e serviços públicos continua desigual entre regiões e classes sociais. O desafio é universalizar a cidadania social para o conjunto da sociedade, incluindo os mais pobres.
As políticas universais apresentam lacunas e vazios de oferta de serviços. Uma nação desenvolvida assegura oportunidades educacionais a todos os grupos que a compõem. Mas, no Brasil, além das conhecidas insuficiências ligadas ao ensino e ao aprendizado, destaca-se a inadequação física das escolas.
Neto, Ribeiro, Karuno e Andrade (2013) propõem uma escala para analisar a infraestrutura das mais de 194 mil unidades de ensino básico no Brasil, públicas e privadas: elementar, básica, adequada e avançada, de acordo com a qualidade da infraestrutura. Concluem que somente 0,6% das unidades de ensino possuem infraestrutura “avançada”, com recursos como laboratório de ciências e dependências que atendam estudantes com necessidades especiais. Na posição oposta, 44% das instituições de educação básica foram classificadas na categoria “elementar”.
No caso da saúde, a Constituição da República consagrou o Sistema Único de Saúde (SUS) como público e universal. Mas, desde os anos de 1990, o Parlamento e os três entes federativos do poder Executivo não priorizaram investimentos na ampliação da oferta pública de serviços, especialmente, nos sistemas de média e alta complexidade.
Diversos segmentos da população não têm acesso adequado aos serviços de saúde. O SUS surgiu como antítese da política privatista adotada pela ditadura militar, mas a democracia brasileira não foi capaz de barrar a mercantilização do setor (VIANA E OUTROS, 2013).
Nos últimos anos, a assistência social passou por profunda mudança de paradigma, qualificando-se como direito de cidadania. Não obstante, a consolidação do Sistema Único de Assistência Social-SUAS ainda convive com enormes desafios. Dentre eles destaca-se o de transcender os benefícios monetários, avançando na ampliação da oferta de bens e serviço públicos. Em outras palavras, o desafio é transformar os brasileiros pobres em cidadãos, o que exige esforços e investimentos no sentido de ampliar a oferta de serviços para as regiões e populações não atendidas.
A mobilidade urbana nunca contou com políticas nacionais baseadas na cooperação dos entes federativos e portadora de recursos financeiros na magnitude dos problemas que se acumularam desde a década de 1950, em decorrência da rápida urbanização do país. Entre 1950 e 1974, o setor esteve ausente da agenda federal. Em 1975 o governo federal foi obrigado a se posicionar ante a questão, em decorrência da violenta revolta popular. A crise econômica dos anos de 1980 limitou as possibilidades de financiamento do setor nesta década.
A partir de 1990, caminhou-se no sentido da privatização e concessões para a iniciativa privada, dos serviços de alta capacidade. Somente na década passada foram retomados os esforços para a formulação de nova política para o setor. Mas esses avanços são insuficientes para enfrentar o crônico déficit estrutural. A situação é particularmente crítica nas regiões metropolitanas que, ao contrário da experiência internacional, não dispõem de sistemas de alta capacidade, como metrô e trens metropolitanos.
O Brasil nunca contou com efetiva Política Nacional de Habitação Popular que fosse portadora de recursos financeiros e institucionais compatíveis com a magnitude dos problemas crônicos acumulados desde meados do século passado. O ponto em comum da experiência da ditadura militar e dos governos democráticos (1985-2012) é que as sucessivas políticas se mostraram inacessíveis às famílias situadas nas classes de rendimento mensal familiar per capita inferior ou igual a três salários mínimos.
A gravidade desta constatação é evidente, se consideramos que mais de 80% das famílias brasileiras auferem rendimento mensal familiar per capita igual ou abaixo de três salários mínimos. Da mesma forma, note-se que 84% do déficit habitacional existente no País diz respeito às famílias situadas nessa faixa de rendimento. Esta crônica incapacidade é efeito da ausência de um arranjo institucional baseado na cooperação entre esferas de governo e na reduzida utilização de recursos subsidiados do Tesouro Nacional, dos estados e dos municípios. Prevaleceu – e ainda prevalece – o uso de fontes de financiamento presididas pela lógica do retorno financeiro.
A agenda de desenvolvimento deve enfrentar o fato de que o Brasil nunca contou tampouco com políticas nacionais de saneamento ambiental que fossem portadoras de recursos financeiros e institucionais compatíveis com os problemas estruturais agravados desde meados do século passado (FAGNANI, 2005).
Até meados dos anos 1960, esses serviços eram preponderantemente prestados pelos governos municipais. O regime militar (1964-1985) instituiu o Plano Nacional de Saneamento – Planasa (1971), um modelo centralizador, que impedia aportes de recursos fiscais subsidiados. Com a crise econômica dos anos da década de 1980, o sistema foi financeiramente encilhado, abrindo as portas para as privatizações nos anos de 1990.
Com a criação do Ministério das Cidades em 2003, caminhou-se no sentido de enfrentar esse quadro crônico. Não obstante, atualmente 40% da população total não tem acesso adequado ao abastecimento de água; 60% não tem domicílios com esgotamento sanitário satisfatório – do total de esgoto coletado, apenas 39% recebe algum tipo de tratamento e o restante é despejado no mar, nos rios e a céu aberto – e 40% não dispõe de manejo de resíduos sólidos urbanos (HELLER, 2013).
Em suma, estes são apenas alguns exemplos de como o investimento poderia ser impulsionado, não apenas para ativar a demanda agregada e, portanto, o crescimento, mas também para corrigir mazelas crônicas na oferta de serviços públicos de boa qualidade, voltadas para a construção de uma sociedade mais homogênea.
Reformas estruturais para ampliar a cidadania social
Combater as desigualdades do acesso aos serviços sociais e universalizar a cidadania requer reforma tributária que promova a justiça fiscal. Também será preciso rever a política de desoneração de impostos (25% da receita governamental deixa de ser arrecadada em função de isenções tributárias), bem como restabelecer os mecanismos de financiamento assegurados pela Constituição da República e desfigurados pelas autoridades da área econômica, desde a década de 1990 (a Desvinculação das Receitas da União (DRU) e a captura de recursos do Orçamento da Seguridade Social são casos exemplarmente lastimáveis).
A Constituição de 1988 fortaleceu as bases federativas no país. Não obstante, esse pacto federativo foi desestruturado nos anos de 1990. A União agiu prontamente para reforçar as suas receitas. O endividamento de estados e municípios cresceu em decorrência das altas taxas de juros praticadas (mais de 40% ao ano em alguns períodos), ao mesmo tempo em que esses entes passaram a assumir novas responsabilidades no campo social.
A superação das desigualdades do acesso aos bens e serviços sociais também requer que se enfrentem os processos de mercantilização que foram difundidos a partir de 1990 pelos três níveis de governo para diversos setores, com destaque para a saúde, o saneamento, o transporte público, a assistência social, a previdência e o ensino superior.
Assegurar serviços públicos de boa qualidade também requer o fortalecimento da gestão estatal, enfraquecida pelo avanço de diversos mecanismos de gestão privada que cria duplicidades, fragmentação e dificuldades para assegurar um padrão de eficiência.
Não existem perspectivas favoráveis para a superação desses problemas, sem o resgate da política e da democracia. A crise afeta todos os partidos políticos e o poder legislativo dos três entes federativos, submetidos à mercantilização do voto. Também não existem perspectivas favoráveis para a superação desses problemas, sem o reforço do papel do Estado.
Da mesma forma, os pressupostos teóricos que dão substrato ao tripé macroeconômico (câmbio flutuante, superávit fiscal e metas de inflação) não convergem para esse objetivo. Após a crise financeira internacional de 2008, o “tripé” passou a ser questionado inclusive por instituições como o Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial que representam o establishment, da ordem ideológica, econômica e política global.
Interdição do desenvolvimento e ampliação das desigualdades
A opção pelo ajuste fiscal ortodoxo em 2015 funcionará como armadilha para o crescimento e interditará o desenvolvimento. A recessão deprime a arrecadação, e juros elevados ampliam a dívida pública. Essa estratégia de “enxugamento de gelo” exigirá ajustes fiscais ainda mais severos. Como previsível, os primeiros resultados do ajuste mostram grave deterioração dos fundamentos econômicos. O aumento do desemprego e o rebaixamento dos salários já aparecem como dados preocupantes na estatística oficial. A continuidade deste processo poderá corroer a inclusão social dos últimos anos. Sem mudanças na estratégia econômica, não há esperança de virmos a ser sociedade mais homogênea.
REFERÊNCIAS
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HELLER, L.(2013). Saneamento básico: a dívida social crônica e persistente. In: FAGNANI. E. & FONSECA, A (ORG). (2013). Políticas sociais, universalização da cidadania e desenvolvimento: educação, seguridade social, infraestrutura urbana, pobreza e transição demográfica. São Paulo, Fundação Perseu Abramo (ISBN, 978-85-7643-178-7).
MARICATO, E. (2013). Cidades no Brasil: neodesenvolvimentismo ou crescimento periférico predatório? Campinas: Instituto de Economia da Unicamp: Plataforma Política Social. Revista Política Social e Desenvolvimento, n. 1, novembro (revista digital).
RES NETO, J; RIBEIRO DE JESUS, G.; KARUNO, C.; ANDRADE, D. (2013).”Uma escala para medir a infraestrutura escolar”. UNB/ UFSC. (https://www.fe.unb.br/noticias/a-infraestrutura-escolarbrasileira).
VIANA, A.L. D; SILVA, H.P; LIMA, L.D. e MACHADO, C.V. (2013). O sistema de saúde brasileiro: dilemas atuais. In: FAGNANI. E. & FONSECA, A (ORG). (2013). Políticas sociais, universalização da cidadania e desenvolvimento: educação, seguridade social, infraestrutura urbana, pobreza e transição demográfica. São Paulo, Fundação Perseu Abramo (ISBN, 978-85-7643-178-7).
Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (CESIT) e coordenador da rede Plataforma Política Social.