Crises escancaram os limites do capitalismo: atacar salários reduz também o consumo, a produção e os lucros. Mas desde os anos 1970, o sistema gira nesta espiral rumo ao fundo do poço. E nada indica que encontrará uma saída.
José Álvaro de Lima Cardoso
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 20/10/2020
Desde a grande crise econômica mundial, em meados da década de 1970, os direitos vêm sendo atacados no mundo todo, praticamente sem trégua. Este é um processo mundial, que assume feições específicas em cada país. No Brasil os ataques começaram já na ditadura militar e se arrastaram por quase todos os governos posteriores. Mas o processo se intensificou muito a partir do golpe de 2016, com a destruição em escala industrial dos direitos sociais e trabalhistas, uma das marcas registradas do processo.
Em 1974, o capitalismo mundial entrou em profunda crise, encerrando o chamado “período de ouro” do capitalismo, de quase 30 anos, que significou crescimento com melhoria de vida nos países do capitalismo central. Foi um período caracterizado também pela Guerra Fria, ou seja, a União Soviética servia, para os trabalhadores do mundo, como exemplo de país que tinha realizado uma revolução popular. Isso obrigou o sistema capitalista mundial, naquele período, a fazer concessões aos trabalhadores, no campo dos direitos e salários. Nesse período, as políticas macroeconômicas na maioria dos países se desenvolveram com base no chamado Keynesianismo, o que significava, dentre outros aspectos, o funcionamento da economia capitalista com forte intervenção do Estado.
Essa crise econômica, e a incapacidade de reação imediata do bloco capitalista mundial no enfrentamento da crise, levou a uma série de revoluções em todo o mundo, como Polônia (1980), Nicarágua (1979), Irã (1979), e outras. Para conter esse processo de reação dos trabalhadores no mundo, e para tentar retomar a economia, a burguesia lançou a Política Neoliberal, mais ou menos em 1985. O Neoliberalismo defende políticas de liberalização econômica profundas, receita que os países imperialistas prescrevem para os subdesenvolvidos, mas que eles mesmos não praticam: privatizações, austeridade fiscal, desregulamentação, livre comércio, e o corte de despesas governamentais. A política neoliberal, ao destruir estatais e mercados internos, significou também a destruição de boa parte das forças produtivas da sociedade, especialmente na periferia capitalista.
A política neoliberal veio também com o objetivo de enfraquecer a organização sindical e política dos trabalhadores e desmontar o chamado Estado do Bem-Estar Social, existente principalmente na Europa. Essa política que é extremamente destrutiva, provocou um retrocesso enorme na sociedade, e também nas conquistas da classe operária no mundo todo. O desemprego aumentou, todas os direitos conquistados depois da Segunda Grande Guerra, num contexto da Guerra Fria, foram sendo esfarelados, e espalhou-se o chamado emprego precário no mundo todo.
Em simultâneo à crise capitalista, a China inicia um processo de abertura para os países ocidentais (em 1976, ano também da morte do grande líder da revolução chinesa, Mao Tsé Tung). Nos anos seguintes, a União Soviética e o Leste Europeu entram em crise, e iniciam um processo de abertura para os países do Ocidente. Se estima que, a partir dessas crises na China e no Leste Europeu, mais de 1 bilhão de trabalhadores ingressaram no mercado de trabalho mundial. É possível que este número esteja superestimado, visto que a força de trabalho mundial em 1985 estava em torno dos 3 bilhões. De qualquer maneira um número enorme de pessoas ingressou no mercado de trabalho global, o que exerceu uma pressão incalculável sobre a luta e a organização dos trabalhadores em todo o mundo.
Com a crise, o desemprego no Leste Europeu, por exemplo, foi dramático, com centenas de empresas quebrando em todos os países. Isso colocou no mercado uma quantidade imensa de trabalhadores, em busca de emprego. Esse grande excedente de trabalhadores provocou uma defensiva muito grande da classe trabalhadora mundial. O processo significou um atraso muito grande no movimento dos trabalhadores. Com a formação desse imenso exército de reserva mundial, o movimento sindical não teve como sustentar o padrão de direitos que os trabalhadores tinham obtido ao longo dos anos no centro do capitalismo (principalmente na Europa), e um pouco em países da periferia do capitalismo, como no Brasil.
Os brasileiros com um pouco mais de idade sabemos bem o que representou a política neoliberal, com os oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso, que estão entre os piores da história do Brasil, nos quais direitos e a economia nacional foram destruídos em escala industrial. A política de FHC foi explosiva para o país: entrega de estatais a preço de banana (processo conhecido como Privataria), destruição intensiva de direitos sociais e aumento da vulnerabilidade externa. Quando Fernando Henrique Cardoso afirmou que iria sepultar a era Vargas, em 1995, ele se referia não apenas à dramática redução da presença do Estado na economia, mas também estava dando um recado que os direitos trabalhistas iriam ser dizimados. Como realmente o fez, em boa parte.
Neste momento, a crise da política neoliberal é profunda. Os golpes aplicados em toda a América Latina, a partir de Honduras em 2009, são uma tentativa do imperialismo de reverter esse processo de crise em todo o mundo. Como há uma crise internacional muito profunda, o sistema financeiro mundial (que é quem dá as cartas realmente no processo do Brasil), quer mais e precisa extrair mais do país. Estão destruindo direitos, enfraquecendo os sindicatos, entregando patrimônio, fatiando a Petrobrás, estão tentando desmontar o setor público e acabando com direitos históricos dos servidores. Ao contrário do que alguns imaginam, não se trata de uma força de expressão: a destruição de direitos e da pouca democracia existente, e o aumento dos níveis de desigualdade, estão colocando o Brasil na mesma situação da Europa no fim do século 19. O pior é que no médio prazo todas as medidas do governo irão empobrecer o povo e concentrar a renda ainda mais.
Desmontar tudo que é público, já sabíamos no final de 2018, era a missão principal do governo Bolsonaro/Guedes. Bolsonaro vem cumprindo, em quase dois anos de governo, promessa feita nos Estados Unidos, em jantar com representantes da extrema-direita, de que teria chegado ao poder para levar adiante um projeto de destruição nacional. “O Brasil não é um terreno aberto onde nós iremos construir coisas para o povo. Nós temos que desconstruir muita coisa”, afirmou em 18/03/2019, na sede da Agência Central de Inteligência norte-americana (CIA), em Washington.
A lista de ataques aos direitos sociais e trabalhistas, ações contra a cultura, contra o meio ambiente, contra a educação, é quase interminável. No governo Bolsonaro, foram centenas, possivelmente milhares, de ações abolindo ou reduzindo direitos, ferindo a soberania nacional, enfraquecendo instrumentos de intervenção estatal, e assim por diante. A quantidade de direitos sociais e sindicais, liquidados pelo governo de extrema direita nos dois anos são, por si só, a demonstração de que a correlação de forças continua muito desfavorável aos trabalhadores.
José Álvaro de Lima Cardoso é economista, doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, supervisor técnico do escritório regional do DIEESE em Santa Catarina.