Quando os donos da plantação de chá de Hantapara decidiram suspender os trabalhos, em abril do ano passado, Rajman Lohar e sua família começaram a passar um período difícil. Receberam uma pequena compensação por parte da empresa, mas sabiam que, sem seus salários, seria impossível sobreviver em sua cabana nessa região no nordeste da Índia. Somente sabiam colher chá e realizar tarefas simples nesse lugar isolado e rodeado por bosques. Lohar morreu no último dia 15 de setembro, pesando muito pouco, consumido por constantes dores no estômago. Morreu de fome.
Como Lohar, pelo menos outras 70 pessoas faleceram por inanição entre março e novembro passados nas plantações de chá ao norte de Calcutá, no Estado de Bengala Ocidental, quase todas na região de Terai-Dooars – hoje chamada de o Vale da Morte. Entre fevereiro e abril de 2015, até 25 plantações (mais conhecidas como “jardins”) tinham suspendido o trabalho devido ao aumento de seus custos de produção. Nove delas (Hantapara entre elas) são propriedade da Duncan Brothers Tea Company, uma empresa indiana que é parte de uma corporação dedicadas a ramos diversos, como geração de eletricidade e indústria petroquímica.
De acordo com estimativas de organizações da sociedade civil que visitaram a região há um mês, o fechamento das propriedades da Duncan Brothers em Dooars afetou cerca de 75 mil trabalhadores, ou um total de 18 mil famílias.
Assim como Rajman Lohar, Pradip Munda perdeu seu trabalho no jardim de Dumchipara e se foi para a pequena cidade de Jaipalguri buscar trabalho eventual. Em sua ausência, a esposa dele, Dukkni, começou a sofrer fortes dores estomacais provocadas pela desnutrição. Morreu aos 32 anos no último dia 22 de novembro, em um pequeno hospital da região. Pradip e seus dois filhos pequenos sobrevivem em condições de risco porque o pai já não pode deixá-los para procurar trabalho.
O caso de Pradip Munda, e de uma dezena de outras pessoas, foi documentado por uma missão da sociedade civil que visitou a área nos dias 24 e 25 de novembro para constatar a problemática. A missão apresentou publicamente seu relatório em uma coletiva de imprensa em Calcutá no último dia 21 de dezembro. Entre os efeitos da fome na saúde, a equipe de trabalho observou diarreias crônicas, anemia, perda de peso e enfermidades como icterícia e tuberculose, com pacientes “esperando morrer simplesmente porque não têm dinheiro suficiente para ir se tratar gratuitamente nos hospitais públicos”.
Para a pesquisadora Piya Chatterjee, da Universidade da Califórnia, em Riverside, tudo isso vem acontecendo desde que a coroa britânica iniciou a indústria do chá na Índia. Ela explica que há, desde o século 19, um protecionismo que permite que as plantações sejam regidas por sua própria lei.
“Algumas dessas companhias estão conectadas a poderosas multinacionais como a Unilever [dona de uma grande porção do mercado global de chá], que trabalham alterando preços nos mercados locais, regionais e mundiais”, explica Chatterjee a Opera Mundi.
A pesquisadora está de acordo com o relatório da missão civil porque são observadas constantes violações às leis trabalhistas, em particular as que tratam dos jardins de chá da Índia. Os lucros crescem às custas da insegurança do trabalho e também da monocultura, que impede que os camponeses cultivem outras coisas (salvo um pouco de hortaliças). Dessa forma, se o mercado global decai, “a vulnerabilidade é imensa”.
Essas mortes não são uma novidade. Em 2004, o fechamento de 30 plantações teve os mesmos resultados na vida de milhares de trabalhadores do campo (quase todos indígenas). “O fato de que essa ‘crise’ tenha continuado por mais de uma década é indicativo de algo mais profundo: uma lógica negligente que é genocida. Você pode observar nos arquivos históricos, pode ver nos salários baixos e nas duras condições da exploração laboral”, conclui Piya Chatterjee.
Tráfico e migração como vias alternativas
A região de Terai-Dooars é uma franja de bosques que desce do Himalaia. Pequenos vales sem comunicação salpicam a geografia montanhosa. Não há muitos médicos, apenas uns postos de saúde e quase nenhuma escola pública. A maioria das pessoas fala três e até quatro idiomas por necessidade. Quando os jardins suspendem os trabalhos (um refúgio legal que faz com que as empresas economizem custos e compensações trabalhistas aos trabalhadores) homens e mulheres deixam suas casas e comunidades para procurar trabalho em minas e em áreas urbanas próximas. Mas também marcham para longe, para o sul do país ou para as metrópoles do leste.
Foi o que fez Dulari, uma adolescente de 16 anos que saiu da sua comunidade quando seu pai deixou de receber seu salário de 1500 rúpias mensais (cerca de 58 reais) em uma plantação. Uma senhora da região a recomendou para um doutor, que encontraria trabalho para ela em alguma boa família de Nova Déli. A menina caiu nas mãos de uma rede de tráfico. Durante dois meses viveu em semiescravidão, na capital da Índia, violentada a cada três ou quatro dias, até que pôde escapar antes de ser “vendida” a um bordel local. Voltou para casa, mas vive com medo, e sua família tenta esconder o caso por medo do escárnio público. Da mesma forma que milhares de jovens em situação similar, Dulari carece dos meios para sequer denunciar sua tragédia.
Pradip Munda, por sua vez, trabalhou nas minas de areia e rochas nos rios da região. Antes de enviuvar, Munda conseguiu enviar algum dinheiro para sua esposa. Mas a enorme demanda de materiais de construção acabou com os recursos. Muitos, como ele, continuaram migrando para outras regiões para realizar trabalhos eventuais nas minas de carvão, bauxita e ferro.
Negando a tragédia
Em 2003, quando começou a primeira onda de mortes nos jardins de chá da Bengala Ocidental, correu o rumor de que até 8 mil pessoas morreram de fome. Mas nada foi confirmado e os meios de comunicação relataram escassamente o problema.
Santanu Chakrabarty, um advogado do grupo da sociedade civil que avaliou a situação, esteve no Vale da Morte há alguns meses, preparando a missão de observação. Não pôde explicar a crise em detalhes a Opera Mundi porque “tudo parecia estar abandonado, nenhuma autoridade se fazia presente, nada funcionava e as pessoas, sozinhas e debilitadas, pareciam viver seus últimos dias”. O que alguns meios de comunicação registraram é a versão do governo do Estado, esclarece Chakrabarty, mas não dá as dimensões do que ele viu. Pelo contrário, tudo parece indicar que não é tão grave.
Esse estado de negação, comenta Piya Chatterjee, está no coração do problema. “É a razão pela qual esse problema se transformou em catástrofe”, reflete. Enquanto os diversos níveis do Estado insistem em negar os fatos e chamam essas mortes de “causas naturais” ou “desnutrição”, nada poderá ser resolvido, explica a pesquisadora.
Enquanto isso, Bandhu Oraon já não deixa seu leito para trabalhar no jardim de chá de Bagracote. Há dois meses esse camponês de 50 anos apenas come e vive do que a sua esposa, Ashram, consegue fazendo bicos em qualquer lugar. Seu estômago dói, seus olhos fecham, ele não tem forças para trabalhar nem dinheiro para ir a um hospital ou apoio do governo para receber alimentos, tratamento, algo de vida.
Fonte: Opera Mundi
Texto: Luiz A. Gómez
Data original da publicação: 10/01/2016