A expressiva votação que o ex-presidente Lula obteve no primeiro turno das eleições presidenciais deste ano, 48,4% contra 43,2% do atual presidente Bolsonaro, indica que “há uma parcela bastante significativa da população brasileira que sente saudades da época dos governos dele” e, portanto, “se expressou pela questão econômica”, avalia o economista José Luis Oreiro, ao comentar o resultado eleitoral do último domingo.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Oreiro discorre sobre os desafios em torno de um possível novo mandato do ex-presidente. “A última coisa que o presidente Lula vai precisar no início do ano que vem é de turbulência nos mercados financeiros. Então, ele vai ter que fazer o seguinte malabarismo: tirar o teto de gastos porque com ele é impossível fazer qualquer política econômica, de assistência social e de industrialização no país hoje, mas o teto de gastos tem que ser retirado de uma maneira que se coloque alguma outra regra fiscal que dê credibilidade ao governo de que a relação dívida pública/PIB não vai explodir no médio e longo prazo. Então, vai ter que haver uma conversa muito bem feita com as instituições do mercado financeiro para que não se imploda o governo nos primeiros meses. Esse é o principal desafio. Repito: o teto de gastos tem que sair, mas alguma coisa tem que ser posta no lugar”, assegura.
Segundo ele, em termos econômicos, a reeleição do presidente Bolsonaro significa a continuidade do “projeto fazendão”, que consiste em “transformar o Brasil em uma grande fazenda de soja, de frango, uma mina a céu aberto”, a fim de “transferir a riqueza que existe no país para o estrangeiro”. Já um novo governo Lula, que anos anteriores também apostou no Brasil como grande celeiro do mundo, a perspectiva, acentua, é “a vitória da civilização contra a barbárie” e, em termos econômicos, “a chance de retomarmos a trajetória de desenvolvimento econômico”, não aos moldes de um PAC-2 sustentável, mas de um “Plano de Metas à la Juscelino Kubitschek”.
José Luis Oreiro é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, possui mestrado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutorado em Economia da Indústria e da Tecnologia pela UFRJ. É professor associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília – UnB e professor doutorado em Integração Econômica da Universidade do País Basco, Espanha. Entre suas obras, destacamos: Macroeconomia do desenvolvimento: uma perspectiva keynesiana (publicado pela LTC em 2016) e Macrodinâmica pós-keynesiana: crescimento e distribuição de renda (Alta Books, 2018).
Confira a entrevista.
Que Brasil se expressa no resultado das eleições deste domingo?
Um país dividido. O ex-presidente Lula conseguiu quase 50% dos votos válidos, ou seja, há uma parcela bastante significativa da população brasileira que sente saudades da época dos governos dele. Essa população, majoritariamente, está votando para retornar àquele nível de vida que tinha na época do governo do ex-presidente. Essa população se expressou pela questão econômica porque vê que a situação econômica, para ela, é muito pior hoje do que era na época do PT.
Outra parte da população optou por um voto – não sei se ideológico seria a palavra correta – que mistura valores, religião e antipetismo. Ou seja, não é um voto econômico. Bolsonaro obteve um voto fundamentalmente religioso, que expressa a força das igrejas neopentecostais. Temos relatos de como alguns pastores influenciaram os votos dos fiéis no primeiro turno. Tem também o antipetismo; ele ainda existe. A migração dos votos do Ciro para Bolsonaro também é um voto antipetista. É um conjunto mais difuso daquilo que o economista Paul Krugman chama de “arma de distração de massa”. Ou seja, coisas que não estão relacionadas à economia, mas que são colocadas na eleição para atrair eleitores que, em tese, deveriam estar votando mais à esquerda, ou seja, com Lula, mas acabam votando na direita porque não conseguem associar que a direita não favorece seus interesses econômicos.
Quais são as luzes que se revelam a partir do resultado das urnas?
Faltou muito pouco para Lula vencer no primeiro turno. Na verdade, faltou menos de dois milhões de votos. Ele está com 48,4% dos votos e Bolsonaro, com 43,2%. Quer dizer, ao que tudo indica Bolsonaro só conseguiu adiar a derrota. É óbvio que ainda tem muita água para rolar, mas acredito que o apoio de Simone Tebet ao Lula vai ser importante para sacramentar a vitória do ex-presidente no segundo turno, a qual, a meu ver, é absolutamente necessária para preservar a democracia no Brasil. Se Bolsonaro ganhar, com esse Congresso eleito, temo pelo estado democrático e pelo estado laico.
Alguns analistas têm destacado a força da extrema-direita e do bolsonarismo, mas o percentual de votos conquistado pelo ex-presidente Lula é impressionante, considerando os últimos fatos políticos. Como avalia o resultado do primeiro turno em relação a esse ponto?
Pensemos da seguinte maneira: em 2018, Lula estava preso, saiu da cadeia, conseguiu rever seus direitos políticos e conseguiu, no primeiro turno de 2022, quase o mesmo percentual de votos que Bolsonaro obteve no segundo turno de 2018. Naquela época, Bolsonaro teve 57 milhões e 800 mil votos. Lula teve agora 57 milhões e 200 mil votos. Então, realmente é impressionante o nome do ex-presidente Lula.
Outra coisa que não deve ser desconsiderada é que o presidente Bolsonaro tem a máquina na mão e utilizou todos os artifícios possíveis para alavancar a sua popularidade nos últimos meses. Estou falando do Auxílio Brasil, que ele aumentou de 400 para 600 reais, do preço da gasolina, que foi reduzido, e do orçamento secreto, que certamente está por trás de boa parte do sucesso dos candidatos bolsonaristas nas eleições para a Câmara dos Deputados e para o Senado. Apesar de todo o vento contrário, o presidente Lula praticamente liquidou no primeiro turno; considero realmente uma grande vitória.
De outro lado, quais são as sombras que aparecem a partir dessas eleições?
O ponto mais negativo da eleição foi a transferência de votos do Ciro para Bolsonaro. Ciro vinha desde 2016 se apresentando como uma alternativa ao PT pela esquerda, mas se colocou como linha auxiliar do bolsonarismo. Esse foi o ponto mais negativo. Ele acabou melancolicamente: conquistou 3% dos votos válidos, muito atrás do que ele teve em 2018. Ciro sai desta eleição muito menor do que entrou.
Agora, ele prestou um desserviço à democracia brasileira porque a lógica eleitoral diz que ele deveria ter concentrado “seu fogo” no segundo colocado e não no primeiro. Mas ele não fez isso. Ele alimentou o antipetismo e isso foi ruim porque deu mais votos para Bolsonaro. Agora, ele vai dizer que apoia o Lula? Acho difícil e também, a essa altura, não vai fazer muita diferença. Quem é crucial agora é a senadora Simone Tebet. No domingo, ela disse que não iria ficar omissa, ou seja, vai tomar uma posição e, pelo histórico dela na comissão da Covid-19, estou confiante que ela vai apoiar o presidente Lula.
De outro lado, as eleições para o Congresso e o Senado foram um desastre. Os senadores eleitos claramente representam o bolsonarismo e a extrema-direita e não têm compromisso com a democracia. Veem a democracia apenas como um instrumento para a tomada do poder e a implementação, pela força, dos seus valores. Vimos isso no Senado, na Câmara dos Deputados e no caso de alguns governadores.
Quais as perspectivas de futuro que emergem a partir do resultado das urnas?
Aposto na vitória do presidente Lula e, no pior cenário, em uma reprodução das eleições de 2014, isto é, 52% a 48%. Não vai ser uma vitória muito expressiva, mas vai ser uma vitória. Isso vai acontecer.
Quais serão os desafios em torno da governabilidade, caso esse cenário se confirme?
Uma vez o presidente ganhando, tem os partidos do centrão que não são ideológicos e querem estar com o governo. Então, ele vai ter que fazer a política de sempre com o centrão. Isso é um dado.
O lado positivo é que sabemos que o ex-presidente Lula é um político experimentado e sabe negociar. O lado negativo é que talvez não dê para acabar com o orçamento secreto e essas coisas porque praticamente estaria sendo pedido para o pessoal do centrão cometer suicídio e eles não vão querer cometer suicídio. Então, realisticamente esse é o jogo que Lula vai ter que jogar.
Como avalia o aceno entre Henrique Meirelles e o ex-presidente Lula nos últimos dias e a especulação em torno do nome do ex-ministro para ocupar o Ministério da Fazenda, num possível novo governo Lula? O que esse movimento pode indicar sobre os rumos da economia brasileira no próximo ano?
O Ministério da Fazenda vai ser ocupado por alguém do mercado financeiro ou alguém que tenha ligação com o mercado financeiro. Não precisa ser alguém do mercado financeiro, ou seja, não estou dizendo que vai ser o Meirelles, até porque ele já tem uma certa idade e esse não é um ministério light. Mas já adianto que o presidente deve desmembrar o Ministério da Economia em Ministério da Fazenda, Ministério do Planejamento e Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. O ministro da Fazenda vai repetir o que foi feito no primeiro mandato do governo Lula, ou seja, vai ser alguém mais ortodoxo, mas vai ter um contraponto no Ministério do Planejamento. Sobre o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, não sei se ele vai entregar para um político ou se vai colocar algum desenvolvimentista, que seria o ideal para sinalizar de maneira clara que, sem romper com a ortodoxia financeira e a responsabilidade fiscal, o governo está comprometido com o desenvolvimento econômico.
Quais serão os desafios em termos de retomada da economia, considerando o atual quadro de aumento da pobreza e toda a crítica que a esquerda faz ao mercado financeiro e à financeirização da economia?
A última coisa que Lula vai precisar no início do ano que vem é de turbulência nos mercados financeiros. Então, ele vai ter que fazer o seguinte malabarismo: tirar o teto de gastos porque com ele é impossível fazer qualquer política econômica, de assistência social e de industrialização no país hoje, mas o teto de gastos tem que ser retirado de uma maneira que se coloque alguma outra regra fiscal que dê credibilidade ao governo de que a relação dívida pública/PIB não vai explodir no médio e longo prazo. Então, vai ter que haver uma conversa muito bem feita com as instituições do mercado financeiro para que não se imploda o governo nos primeiros meses. Esse é o principal desafio. Repito: o teto de gastos tem que sair, mas alguma coisa tem que ser posta no lugar.
Somente a retirada do teto de gastos é suficiente para resolver os problemas relativos ao aumento da fome, da pobreza, da falta de moradia, da desindustrialização que perdura mais de 20 anos?
Se retirar o teto de gastos e colocar no lugar uma regra fiscal que dê ao governo, no curto prazo, a flexibilidade para aumentar os seus gastos, sem que isso seja visto como algo que vai levar, lá na frente, a uma implosão da dívida pública, nós conseguiremos endereçar essa questão de maneira tranquila. O problema é tirar o teto de gastos, aumentar os gastos com assistência social – que precisam ser aumentados para recompor parte do orçamento que foi zerado no fim do ano pelo ministro Paulo Guedes – e aumentar o investimento público, sem dar ao mercado uma garantia de que a dívida pública não vai explodir. Esse é o ponto.
Não há nenhum problema, tirando meia dúzia de radicais que sempre vão falar contra, de explicar que é preciso aumentar os gastos por conta da situação social do país, que é muito ruim, e também é preciso aumentar o investimento em infraestrutura, porque sem isso o Brasil não volta a crescer, mas estabelecer uma regra que garantirá que, no médio e longo prazo, a relação dívida pública/PIB vai se estabilizar e tenderá a cair.
É esse tipo de discurso que os americanos chamam de “meio-termo” – não é nem o austericídio fiscal nem a “porra-louquice”. Tem que haver um equilíbrio entre essas duas coisas. Isso precisa ser não só bem desenhado, mas bem comunicado e negociado.
O que isso significa em termos do que precisa ser diferente ou semelhante num eventual novo governo Lula em relação às políticas que foram adotadas nos outros mandatos do ex-presidente?
Em primeiro lugar, vai haver uma retomada do investimento público no Brasil. Em segundo, o papel do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES como banco de desenvolvimento vai ser resgatado. Ele foi escanteado pelo governo Temer e quase destruído pelo governo Bolsonaro, mas vai voltar a ser importante. Vamos ter políticas de assistência social que realmente funcionem.
Quando comparamos o Bolsa Família e o Auxílio Brasil, percebemos que o Bolsa Família era mais bem desenhado do que o Auxílio Brasil e tinha contrapartidas, quer dizer, as famílias beneficiadas tinham que manter as crianças na escola, tinham que mostrar atestado de vacinação etc. Não se trata apenas de dar o dinheiro, mas de construir e fazer uma porta de saída para o programa, que consiste em dar aos filhos dessas pessoas pobres as condições para eles entrarem de maneira produtiva no mercado de trabalho. Isso só é possível com educação, vacinação e alimentação adequada. Então, essa sempre foi a ideia do Bolsa Família, um programa barato, eficiente e eficaz que sempre foi elogiado em outros países do mundo.
Do ponto de vista econômico, o que significa a reeleição do presidente Bolsonaro para o país?
O projeto do Bolsonaro e do Guedes, porque não consigo dissociar uma pessoa da outra, é o “projeto fazendão”, ou seja, quer transformar o Brasil em uma grande fazenda de soja, de frango, uma mina a céu aberto. O que Guedes disse em uma live, “que temos que privatizar as praias”, é exatamente a lógica do saque do Brasil para os estrangeiros. Essa é a lógica. Guedes não pensa em criar riqueza. Ele quer transferir a riqueza que existe no Brasil para o estrangeiro. É isso que representa, em termos econômicos, a reeleição de Bolsonaro. Portanto, Bolsonaro é a antítese do que ele prega para os seus convertidos. Seus convertidos ficam usando a bandeira do Brasil como se nacionalistas fossem. Pelo contrário, Bolsonaro é o presidente mais antinacionalista da história do Brasil. Ele sente um ódio profundo pelo Brasil, mas as pessoas não percebem isso. Ele tanto odeia o Brasil que bate continência para a bandeira dos EUA. Onde já se viu um presidente do Brasil bater continência para a bandeira de qualquer outro país do mundo? Isso não existe. Isso fere completamente o protocolo da Presidência da República.
Do ponto de vista econômico, o que significa outro mandato do ex-presidente Lula?
A eleição do ex-presidente Lula, em termos políticos, significa a vitória da civilização contra a barbárie. Em termos econômicos, significa uma chance de retomarmos a trajetória de desenvolvimento econômico. Se vamos conseguir ou não, não sei, mas é uma chance porque, com Bolsonaro, tenho certeza que não vamos ter desenvolvimento.
Em que sentido o senhor vislumbra algo diferente em um novo governo Lula, uma vez que houve uma clara opção pelo agronegócio brasileiro nos governos petistas, setor que enriqueceu muitíssimo, juntamente com as empresas consideradas à época “gigantes nacionais”? O que significa a possibilidade de retomada da trajetória do desenvolvimento econômico daqui para frente? O que seria distintivo do governo Lula em relação a ele próprio no passado e o que é feito hoje no governo Bolsonaro?
Conversei com [Aloizio] Mercadante umas duas vezes e me pareceu que a equipe econômica do PT tem consciência da necessidade da reindustrialização da economia brasileira e que o vetor da reindustrialização seria pela retomada do investimento público, principalmente, visando também a descarbonização da economia. Então, me parece que eles estão conscientes da necessidade da reindustrialização.
Concretamente, a reindustrialização seria uma aposta em um Programa de Aceleração do Crescimento – PAC-2 sustentável?
Não sei se um PAC-2. Talvez seria melhor um Plano de Metas à la Juscelino Kubitschek. Então, acho que a equipe econômica tem essa ideia na cabeça. Agora, se vão conseguir implementar ou implementar de maneira correta, aí é outra história, porque vai depender de costura política.
Fonte: IHU
Texto: Patricia Fachin
Data original da publicação: 05/10/2022