O PL 4330 abre a possibilidade de que todos os trabalhadores brasileiros sejam terceirizados, sem os direitos históricos e sem definição da responsabilidade solidária entre tomadora e terceiras. No limite, teremos empresas sem empregados e trabalhadores sem direitos.
Magda Barros Biavaschi
Marilane Oliveira Teixeira
Fonte: Brasil Debate
Data original da publicação: 20/04/2015
O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. Viver é muito perigoso. (GUIMARÃES ROSA, Grande sertão: veredas)
A Câmara dos Deputados aprovou o PL nº4330/04 que regulamenta a terceirização, apesar da resistência de organizações dos trabalhadores e setores de representação que integram o Fórum Nacional Permanente em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização (integram o Fórum as Centrais Sindicais, ALAL, ALAJT, Anamatra, ANPT, OAB, SINAIT, sindicatos, pesquisadores e acadêmicos do mundo do trabalho, entre outras). E o fez com truculência.
O substitutivo do relator Artur Maia (Solidariedade/BA) trouxe mudanças pontuais, não afetando o conteúdo. Trata-se de inédito ataque aos direitos trabalhistas consolidados em 1943 pela CLT. Desmonte que, salvo exceções, teve repúdio coeso dos deputados do PT, PSOL e PCdoB.
Têm sido expressivas as manifestações contrárias. Organizações Sindicais convocaram paralisação nacional. Magistrados, procuradores do trabalho, auditores fiscais, entidades do mundo do trabalho, professores, pesquisadores, enfim, mostram que se trata de projeto que não avança na concretização dos princípios constitucionais da dignidade humana e do valor social do trabalho.
Além de “isolar o Brasil dos cânones internacionais de tutela ao trabalho” e eliminar limites a essa forma de contratar, mercantiliza o trabalho humano e fragmenta os laços de solidariedade que costuram o processo civilizatório, como registra, entre outras, a Nota Oficial do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho, de 10 de abril de 2015.
O Estado de São Paulo, 09 de abril de 2015, Caderno E&N, B1, noticiou suposta conquista sindical com a versão aprovada. Porém, é falsa a ideia de que contribua para “solucionar” a representação sindical dos terceirizados, bem como o é a de que criará empregos e aumentará competitividade e produtividade.
Na realidade, o projeto apresenta potencial altamente precarizador das relações de trabalho. Correspondendo a uma reforma nunca antes vista desde 1943, a eliminação dos freios a essa forma de contratar atingirá os direitos conquistados na luta contra as leis do capitalismo (Luiz Mello Belluzzo, em “Capital e suas metamorfoses. São Paulo: UNESP, 2013”), estimulará a “pejotização”, reduzirá a massa salarial, aprofundará as desigualdades e a discriminação, dificultará a constituição de fundos públicos e, no serviço público, escancarará as possibilidades da alocação de servidores sem concurso. Tudo isso sem resolver a questão da estrutura sindical.
A terceirização ganhou dimensão quando o movimento do capitalismo pressionou no sentido da liberalização dos mercados (“O TST e a terceirização: dinâmica das decisões no período 2000-2013”). Adotada como estratégia para reduzir custos e partilhar riscos, as empresas não hesitam em precarizar o trabalho.
Mudando formas consolidadas de organização, deslocam parte dos processos de trabalho para prestadoras de serviço que atuam de forma dispersa e fragmentada. Motivações econômicas na busca por redução de custos aparecem no centro das iniciativas.
Nos anos 1990, a defesa fundava-se na geração de postos de trabalho. Atualmente, frente à melhoria dos dados do emprego e às evidências empíricas de que a criação destes é resultante do dinamismo econômico, centra-se na competitividade e na “modernização” das relações de trabalho.
Sob a alegação de obsoletas e excessivamente rígidas as noções de funcionalidade associadas à produtividade, eficiência e aos espaços da organização do trabalho realizado de forma integrada, criam-se Redes. Nessa dinâmica, as empresas mantêm um núcleo de trabalhadores qualificados e terceirizam os demais, com baixos salários, piores condições de trabalho e alta informalidade, perdendo os trabalhadores o sentido de pertencimento de classe e, cindidos, suas demandas não têm força.
Essa forma derruba a tese da especialização, alternativa encontrada pelo relator para liberar a terceirização nas atividades-fim, essenciais à empresa principal, limite, aliás, definido pelo Tribunal Superior do Trabalho, TST, na Súmula 331 (“A terceirização no contexto da reconfiguração do capitalismo contemporâneo: a dinâmica da construção da Súmula 331 do TST”).
Fica claro o movimento de legalizar uma forma de organização do trabalho predatória aos trabalhadores, já que as terceirizadas são apenas gestoras de uma mão de obra treinada e qualificada no próprio ambiente de trabalho. A especialização não está na prestadora de serviços, mas no trabalho que cria valor.
No Brasil, a terceirização instituiu nova dinâmica, degradando o trabalho, interferindo nas relações de cooperação e contribuindo para fragmentar a organização sindical, realidade que o PL, se aprovado, aprofundará ao permitir, inclusive, a quarteirização dos serviços e ao não incluir as garantias de igualdade de direitos e de condições de trabalho para os terceirizados, sem resolver a questão da representação sindical. Ao contrário, como alguém já apontou, poderá provocar maior pulverização via sindicatos “especializados” e exclusivos na representação daquela categoria.
Muitos defensores do PL empunham a bandeira da “modernidade”. “Modernizar” seria terceirizar a mão de obra que vai trabalhar integrada ao processo produtivo, junto à maquinaria e às tecnologias, em regra propriedade da empresa principal, ganhando salários menores e em piores condições de trabalho.
O que as pesquisas têm demonstrado é que as terceirizações encontram freios na Súmula 331 do TST. O PL, ao invés de avançar em relação a esse entendimento, retrocede. Ao ampliar a terceirização para qualquer tipo atividade abre a possibilidade de que todos os trabalhadores brasileiros sejam terceirizados, sem os direitos históricos – FGTS, 13º salário, férias, repouso, jornada, entre outros – e sem que responsabilidade solidária entre tomadora e terceiras seja definida. No limite, teremos empresas sem empregados e trabalhadores sem direitos.
Ainda, será prejudicial aos consumidores, piorando a qualidade dos serviços, como já ocorre nas áreas de telefonia, serviços bancários, energia e água. As empresas de prestação de serviços, de curta vida e notórios desaparecimentos do dia para a noite, deixam desamparados trabalhadores e causam danos à sociedade e à constituição dos fundos públicos, como é o caso do INSS e do FGTS, criando mais dificuldades para a construção de uma sociedade menos desigual.
O não ao PL unifica os que acreditam nas possibilidades transformadoras da luta política. Viver é muito perigoso…
Magda Barros Biavaschi é desembargadora aposentada do TRT4, doutora e pós-doutora em Economia Aplicada, IE-Unicamp/SP, pesquisadora do CESIT/IE/Unicamp, professora colaboradora/Pós-graduação do IE e IFCH/Unicamp.
Marilane Oliveira Teixeira é economista, doutoranda e pesquisadora do CESIT/IE-Unicamp, assessora sindical e membro do Fórum Permanente em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização.