Pessoas com deficiência e a falsa inclusão no mundo do trabalho. Entrevista com Marina Sampaio

Fotografia: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Há uma grande diferença entre inclusão e ajuda no sentido de caridade. Há mais de trinta anos o Brasil tem uma legislação que assegura a inclusão de pessoas com deficiência no mundo do trabalho. Ou seja, conceder uma vaga a pessoas com necessidades especiais não é benevolência ou ato de caridade. A própria Constituição Federal assegura que essas pessoas não têm apenas direito a concessões, mas sim a oportunidade de dignidade e uma vida profissional. Porém, há ainda um verdadeiro abismo entre a previsão legal e a realidade concreta. Uma ação de fiscalização da Auditoria-Fiscal do Trabalho traz à tona um caso que é icônico para compreender essa realidade.

Marina Sampaio é auditora-fiscal do Trabalho e coordenadora nacional do projeto de Combate à Discriminação e Promoção da Igualdade de Oportunidades no Trabalho. Segundo ela, uma grande rede de supermercados não apenas descumpria a cota legal para contratação de deficientes como também subempregava aqueles que conseguiam trabalho. “A maioria dos empregados com deficiência contratados (59,74%) estava concentrada na função de embalador a mão. Por outro lado, apenas 2,63% dos empregados sem deficiência da empresa ocupavam essa função”, revela, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

E as desigualdades não paravam por aí. “A diferença de média salarial entre os empregados com e sem deficiência, inclusive com mesmo nível de instrução, era alarmante. Os empregados sem deficiência com ensino superior completo recebiam em média R$ 3.175,68, enquanto os com deficiência ganhavam R$ 1.392,00”, conta Marina. Nem sequer ao setor de recursos humanos muitos conseguiam chegar, pois ficava no alto de longa e estreita escadaria. Além disso, não havia um só empregado ouvinte que dominasse a Língua Brasileira de Sinais – Libras, e familiares de funcionário surdos eram chamados para estabelecer a comunicação com esses funcionários. Ou seja, um “tratamento de pessoas surdas como se fossem incapazes”.

A auditora reconhece que muitas empresas alegam falta de pessoas com deficiência para contratação. Mas para ela são todas justificativas infundadas. “O que leva a crer que as maiores resistências podem estar relacionadas a uma resistência e até recusa das empresas de reconhecerem as potencialidades dessas pessoas e adaptarem a organização do trabalho e o estabelecimento para que sejam incluídas e integradas”, completa. Para ela, “é necessário fazer uma busca ativa desses trabalhadores, o que significa não apenas ofertar as vagas, mas garantir que elas sejam acessíveis. Assim, é necessário desenvolver estratégias de inclusão e remover barreiras comunicacionais, arquitetônicas, atitudinais, por exemplo”.

Marina Sampaio. Fotografia: Instituto do Trabalho Digno

Marina Sampaio é auditora-fiscal do Trabalho e coordenadora nacional do projeto de Combate à Discriminação e Promoção da Igualdade de Oportunidades no Trabalho, da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, no âmbito do Ministério do Trabalho e Previdência. Tem especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Anhanguera – Uniderp e é formada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da PUC-Campinas e em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH, da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.

Confira a entrevista.

Recentemente, a Auditoria-Fiscal do Trabalho flagrou a prática de discriminação contra pessoas com deficiência numa rede brasileira de hipermercados. Que informações você tem sobre o caso?

A ação fiscal do Sistema Federal de Inspeção do Trabalho constatou que a rede de supermercados, uma das maiores do país, distinguia e discriminava pessoas com deficiência em razão dessa condição, prejudicando e até impedindo seu acesso e permanência no trabalho. Mais especificamente, a equipe constatou que a empresa escolhia contratar, quando contratava, pessoas com determinadas deficiências e determinados graus de limitação, excluindo totalmente as demais deficiências.

Por exemplo, para a função de operador de caixa, a empresa impedia a contratação de pessoas amputadas, usuárias de cadeiras de roda, com limitação em membros inferiores, nanismo, entre outras. Isso não faz nenhum sentido, já que essas deficiências não impedem o exercício da função de caixa.

Verificamos, também, que a empresa apenas permitia o trabalho de pessoas com deficiência em alguns cargos, sem qualquer justificativa para essa discriminação em relação aos demais trabalhadores. Na prática, isso significava que a maioria dos empregados com deficiência contratados (59,74%) estava concentrada na função de embalador a mão. Por outro lado, apenas 2,63% dos empregados sem deficiência da empresa ocupavam essa função.

Diferença salarial e outras desigualdades

Nesse sentido, a diferença de média salarial entre os empregados com e sem deficiência, inclusive com mesmo nível de instrução, era alarmante. Os empregados sem deficiência com ensino superior completo recebiam em média R$ 3.175,68, enquanto os com deficiência ganhavam R$ 1.392,00.

Chamou a atenção, também, a discriminação em relação à ascensão profissional (promoção): ao ingressar na empresa como empacotador, o trabalhador com deficiência permanecia no cargo de entrada por 75,67% do tempo de empresa, contra 16,41% do tempo permanecido pela pessoa sem deficiência igualmente ingressante como embalador.

Enquanto, após um ano de admissão, 62% dos trabalhadores sem deficiência foram promovidos, essa porcentagem foi de apenas 42% no caso de trabalhadores com deficiência. Trabalhadores com deficiência permaneceram 71,3% do tempo de empresa ocupando o cargo de entrada, muito embora trabalhadores sem deficiência tenham ficado apenas 57,59% do tempo de empresa nesse primeiro cargo.

Acessibilidade

Outro ponto bastante importante diz respeito à falta de acessibilidade em diversos estabelecimentos da empresa, chegando a um ponto em que as pessoas com deficiência não conseguiam nem sequer acessar o setor de recursos humanos, que ficava no alto de uma escada estreita, e não podiam participar das reuniões, porque não havia intérprete de Libras. Nesse aspecto, verificamos situações graves, como o tratamento de pessoas surdas como se fossem incapazes, pois a empresa chamava seus familiares para conversar, em vez de garantir a acessibilidade comunicacional, que é obrigação legal do empregador. De fato, a empresa não demonstrou realizar adaptações razoáveis para a efetiva inclusão de pessoas com deficiência, o que dificulta tanto o acesso de pessoas ao emprego quanto eventual manutenção deste, em caso de contratação.

Havia também o descumprimento da cota legal de pessoas com deficiência? No que consiste essa cota?

Havia, sim, e esse foi um ponto importante para a caracterização da discriminação, pois verificamos a contratação contínua de empregados sem deficiência, inclusive durante o período de pandemia, porém sem o cumprimento da cota. Isso demonstrou que a empresa estava aumentando seu efetivo sem contratar pessoas com deficiência. A empresa tinha um deficit de 811 contratações e, mesmo assim, demitia empregados com deficiência imotivadamente e sem a contratação de substitutos, o que é vedado pela legislação brasileira.

A Lei nº 8.213/1991 prevê a obrigação das empresas com 100 ou mais empregados de preencher de 2% a 5% dos cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas com deficiência habilitadas. Trata-se de uma política afirmativa, que busca garantir a inserção de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, além de promover a readaptação e reinserção profissional de pessoas com deficiência ou beneficiários da Previdência Social reabilitados.

Nesse quesito, importa destacar essa possibilidade do cumprimento da cota com a contratação de empregados reabilitados. No caso, a empresa não tinha nenhum trabalhador nessa condição, ao passo que a existência dessas pessoas com disponibilidade para o mercado de trabalho foi verificada pela Inspeção do Trabalho, o que evidencia a ausência de esforços da empresa para a satisfação legal.

Quais as maiores resistências dos empregadores para a contratação de pessoas com deficiência?

Muitas vezes, as empresas argumentam que não conseguem contratar pessoas com deficiência em número suficiente para cumprir a cota legal porque não há pessoas suficientes na localidade onde fica o estabelecimento. Outro argumento comum é que elas não teriam interesse em trabalhar, já que recebem o Benefício de Prestação Continuada – BPC. Esses argumentos, porém, não têm fundamento fático.

A Lei nº 8.213 encontra-se em vigor desde 1991, ou seja, há mais de trinta anos. Isso significa que os empregadores já tiveram tempo suficiente para desenvolverem mecanismos de recrutamento e permanência das pessoas com deficiência, que garantam sua inserção digna no mercado de trabalho. No período de 2010 a 2020, por exemplo, 1.322.155 (um milhão, trezentos e vinte e dois mil, cento e cinquenta e cinco) profissionais com deficiência e reabilitados estavam à procura de emprego e foram efetivamente contratados (dados da RAIS). No período da pandemia de Covid-19, compreendido entre março de 2020 a outubro de 2021, um total de 152.156 (cento e cinquenta e dois mil, cento e cinquenta e seis) trabalhadores com deficiência e reabilitados foi contratado (dados do eSocial).

As estatísticas demonstram que tanto pessoas com deficiência quanto as beneficiárias reabilitadas buscam oportunidades de emprego, havendo pessoas com deficiência e reabilitadas disponíveis para contratação pelas empresas.

Sobre o BPC, ele é pago a um grupo muito restrito de pessoas com deficiência, de acordo com critérios estreitos de renda. Também, as pessoas com deficiência podem trabalhar e receber cumulativamente o benefício assistencial no caso da contratação como aprendiz, ou ainda, substituir o BPC pelo auxílio-inclusão no caso de contratação como empregado efetivo.

Ou seja, essas não são justificativas para a falta de contratação de pessoas com deficiência, o que leva a crer que as maiores resistências podem estar relacionadas a uma resistência e até recusa das empresas de reconhecerem as potencialidades dessas pessoas e adaptarem a organização do trabalho e o estabelecimento para que sejam incluídas e integradas.

O que prevê a regulamentação sobre o trabalho de pessoas com deficiência no país? Nesse caso, que leis foram violadas?

De forma geral, a legislação brasileira determina que algumas empresas, a depender do número de empregados, cumpram sua função social por meio da implementação da política afirmativa de contratação e inserção de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Essa inserção deve ser feita de forma a garantir a dignidade dos trabalhadores e assegurar sua integração efetiva na empresa, adaptando o meio ambiente do trabalho à sua condição e não o contrário.

É importante lembrar que a Constituição Federal traz, como fundamentos da República Federativa, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, e como objetivos apresenta a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da marginalização e a redução das desigualdades sociais, além da promoção do bem de todos, sem discriminação. Esses mandamentos permeiam todas as relações de trabalho e devem ser observados quanto ao trabalho desenvolvido pelas pessoas com deficiência.

Ainda, a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) e a Lei nº 9.029/1995 vedam qualquer prática discriminatória em relação a esse e a outros grupos de trabalhadores, estipulando a imposição de penalidades para o descumprimento legal. Também, o Decreto nº 9.571/2018, que estabelece as diretrizes nacionais sobre empresas e direitos humanos, prevê que “Compete às empresas garantir condições decentes de trabalho, por meio de ambiente produtivo, com remuneração adequada, em condições de liberdade, equidade e segurança, com iniciativas para:

I – manter ambientes e locais de trabalho acessíveis às pessoas com deficiência, mesmo em áreas ou atividades onde não há atendimento ao público, a fim de que tais pessoas encontrem, no ambiente de trabalho, as condições de acessibilidade necessárias ao desenvolvimento pleno de suas atividades”.

A legislação garante que a pessoa com deficiência tem direito ao trabalho de sua livre escolha e aceitação, em ambiente acessível e inclusivo, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, sendo que os setores público e privado são obrigados a garantir ambientes de trabalho acessíveis e inclusivos. A pessoa com deficiência tem direito, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, a condições justas e favoráveis de trabalho, incluindo igual remuneração por trabalho de igual valor, sendo vedada a restrição ao trabalho e qualquer discriminação em razão de sua condição, bem como exigência de aptidão plena.

Infrações

A ação fiscal concluiu que a empresa, nesse caso em específico que tratamos acima, descumpriu dispositivos previstos na Constituição Federal, na Convenção nº 159, da Organização Internacional do Trabalho – OIT, ratificada em 1990, que dispõe sobre Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes (Decreto nº 10.088/19), na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência – Pacto de Nova York – e Protocolo Facultativo (Decreto nº 6949/2009, com status constitucional decorrentes do disposto no § 3º do art. 5º, da Constituição Federal), na Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (Decreto nº 3.956/2001), na Lei nº 13.146/2015: Lei Brasileira da Inclusão – Estatuto da Pessoa com Deficiência, na Lei nº 9.029/1995, e na Instrução Normativa nº 2, de 2021, do Ministério do Trabalho e Previdência, que trata, em seu capítulo VIII, da fiscalização do cumprimento, por parte dos empregadores, das normas destinadas à inclusão no trabalho das pessoas com deficiência e beneficiários da previdência social reabilitados.

O que as empresas podem fazer para garantir o cumprimento da cota e garantir o trabalho adequado às pessoas com deficiência?

Há diversas estratégias que podem ser adotadas pelas empresas para a contratação de pessoas com deficiência e para garantir um trabalho adequado a elas, em igualdade de oportunidades com os trabalhadores sem deficiência. Em primeiro lugar, é necessário fazer uma busca ativa desses trabalhadores, o que significa não apenas ofertar as vagas, mas garantir que elas sejam acessíveis. Assim, é necessário desenvolver estratégias de inclusão e remover barreiras comunicacionais, arquitetônicas, atitudinais, por exemplo.

Ainda, os empregadores devem ter em mente que não se pode exigir aptidão plena por parte desses trabalhadores para o desenvolvimento dos trabalhos, pois o próprio conceito de deficiência remete ao reconhecimento da diversidade humana em termos de corpo e mente, e exigir a referida aptidão é colocá-los em situação de desvantagem em relação aos outros trabalhadores.

Gosto muito da passagem a seguir, que é da antropóloga Débora Diniz, e que fala sobre a conceituação de deficiência:

“Deficiência é um conceito complexo que reconhece o corpo com lesão, mas que também denuncia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente. Assim como outras formas de opressão pelo corpo, como o sexismo ou o racismo, os estudos sobre deficiência descortinaram uma das ideologias mais opressoras de nossa vida social: a que humilha e segrega o corpo deficiente”. DINIZ, Débora. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007.

Compreender o que é deficiência a partir de uma perspectiva mais ampla, a partir da interação com uma ou mais barreiras, torna mais clara a responsabilidade das empresas na promoção do trabalho digno a esses trabalhadores.

No que consiste o conceito de capacitismo? Como essa perspectiva se revela no mundo do trabalho?

Capacitismo remete à ideia socialmente construída de que existem pessoas com capacidades plenas que se distinguem de pessoas que, por terem alguma deficiência, são naturalmente incapazes para exercerem os atos da vida, mas esta é uma ideia totalmente incorreta e discriminatória.

De acordo com o “Glossário de termos relacionados à acessibilidade e deficiência”, da Câmara dos Deputados:

Capacitismo: ato de discriminação, preconceito ou opressão contra pessoa com deficiência. É barreira atitudinal. Em geral, ocorre quando alguém considera uma pessoa incapaz, por conta de diferenças e impedimentos corporais. O capacitismo está focalizado nas supostas ‘capacidades das pessoas sem deficiência’ como referência para mostrar as supostas ‘limitações das pessoas com deficiência’. No capacitismo, a ênfase é colocada nas supostas ‘pessoas capazes’, as quais constituem a maioria da população e são supostamente consideradas ‘normais’. Acesse a íntegra aqui.

No mundo do trabalho, observamos esses atos a partir da resistência de algumas empresas em cumprir o mandamento normativo mais básico, que é o de contratarem pessoas com deficiência para compor seus quadros de empregados e de garantir que essas pessoas tenham acesso a todos os espaços da empresa, em igualdade de oportunidades, com a implementação de adaptações razoáveis e fornecimento de tecnologia assistiva.

Ainda, a desconsideração das capacidades e potencialidades desses trabalhadores faz com que encontrem obstáculos para promoções, ficando estagnados em postos mais baixos e em funções menos complexas, independentemente do grau de escolaridade.

Deseja acrescentar algo?

Deixo registrado o canal de denúncias da Auditoria-Fiscal do Trabalho para que aqueles que estejam passando por qualquer situação de discriminação no trabalho, seja em razão de deficiência, seja por qualquer outro motivo, e aqueles que tenham conhecimento dessas situações relatem à Inspeção do Trabalho. O endereço disponível aqui.

Fonte: IHU
Texto: João Vitor Santos
Data original da publicação: 16/09/2019

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