Precisamos de propostas políticas que não evoquem um passado brasileiro clientelista e arbitrário.
Ricardo Lodi
Fonte: Jota
Data original da publicação: 30/09/2021
Mais um projeto Frankenstein de iniciativa do Poder executivo segue para votação na Câmara dos Deputados, nesse final de setembro. Entre pareceres parlamentares e documentos substitutivos, a proposta de emenda à Constituição da República evidencia novamente a tentativa da bancada bolsonarista em atender aos interesses do setor privado, em detrimento da impessoalidade administrativa e dos valores republicanos.
Mesmo após a pressão da oposição parlamentar aos termos iniciais da medida e a realização de audiência pública para discussão do tema, o relator Arthur Maia (DEM-BA), em novo documento substitutivo, datado de 22 de setembro de 2021, manteve regras sensíveis à preservação da moralidade administrativa no setor público, como a flexibilização das regras de estabilidade, a preferência pela contratação temporária ao concurso público e a precarização do sistema de remuneração dos servidores, já sucateado há tempos pela política de austeridade fiscal em curso no país.
Concursos públicos são vetados em prestígio ao equilíbrio financeiro, a estabilidade do servidor público é estremecida e seu poder de compra cada vez vale menos, não obstante o alto funcionalismo público ainda mantenha seus privilégios, que restariam intocáveis na proposta debatida inicialmente, não fosse a intimidação política e a pressão popular que vem sendo observadas para evitar que a proposta seja votada no plenário da Câmara.
A tendência não difere das demais precarizações, já promovidas contra a classe trabalhadora nos últimos anos, como foi possível verificar nas reformas promovidas na previdência social e na legislação trabalhista: busca-se reduzir os direitos sociais da população para financiamento da dívida pública e para garantia da estabilização monetária, requisitos sine qua non à confiança dos credores financeiros do Estado, conforme preconiza o misticismo da política neoliberal.
No entanto, a questão muda de figura quando testemunhamos um retrocesso em termos estruturantes da ordem constitucional. Atacar a estabilidade e o recrutamento idôneo de servidores significa atacar axiomas republicanos e democráticos, além de interferir na sociedade civil como um todo, vez que influencia diretamente na qualidade e na imparcialidade dos serviços públicos prestados.
Acompanhando as reflexões de BAUMAN[1], as justificativas de inchaço orçamentário e de ineficiência administrativa para interferência do setor privado nas decisões políticas já não deveriam enganar mais ninguém, assim como o mito de que a maré econômica levanta todos os barcos.
É descarada a intenção oportunista do governo federal em promover o loteamento ideológico nos cargos públicos, em especial naqueles cuja atuação é típica de Estado, conforme expunha redação do artigo 41-A, parágrafo único, da versão original da PEC[2].
Nesse contexto de notório viés autoritário por parte do representante do poder executivo brasileiro, importante se ter em mente que o embrião dessa narrativa de Estado corrupto e demonizado, carente de intervenção por parte do mercado, supostamente mais eficiente, faz parte de uma construção ideológica em ascensão desde o período pós redemocratização.
A década de 80 representou um período de gradativo desmonte das instituições em prol do ajuste do setor financeiro empresarial[3], escolha política que fora determinante para a deterioração das contas públicas dali em diante, como avalia a economia heterodoxa.
Seria irônico, se não fosse triste, perceber que o discurso anticorrupção que legitimou a guinada ultraconservadora da política brasileira pode ter contribuído para uma das investidas mais concretas contra os princípios democráticos e republicanos, exibindo verdadeiro marco regulatório da corrupção, como denunciam os sindicalistas que se mobilizavam frente à Câmara dos deputados para acompanhar e pressionar o adiamento da votação da PEC 32/2020.
Nesse cenário de duras investidas contra a integridade do Estado Brasileiro, uma avaliação otimista que pode ser extraída é a relevância da força política dos sindicatos dos servidores públicos na proteção de ideias constitucionais democráticas concebidas pela carta de 1988.
Em tempos de conflitos constitucionais e de ressentimentos antidemocráticos, se mostra relevante refletir não apenas sobre teorias que promovam a prevenção desses conflitos, como também sobre como o ativismo político da população tem a contribuir na consolidação do conteúdo de sua própria ordem constitucional democrática[4].
Não restam dúvidas de que o serviço público possa ser melhorado, tampouco se questiona a necessária adaptação da estrutura da Administração Pública à implementação de soluções rápidas e eficientes às demandas sociais e econômicas. Mas para isso é preciso distinguir as propostas políticas que dialogam com os progressos democráticos daquelas que evocam um passado brasileiro clientelista e arbitrário.
Notas
[1] BAUMAN, Zygmunt. A riqueza de poucos beneficia todos nós?/Zygmunt Bauman; tradução Renato Aguiar – 1 ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2015, pág. 45. [2] Art. 41-A. A lei disporá sobre: (…)Parágrafo único. É vedado o desligamento dos servidores de que
trata o art. 39-A, caput, incisos I a IV, por motivação político-partidária.”. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1928147&filename=Tramitacao-PEC+32/2020>. Acesso em 20 de setembro de 2021.
[3] COSTA PINTO, Eduardo. Nova república (1985-1989): Transição democrática, crise da dívida externa, inflação, luta pela apropriação de renda e fim do desenvolvimentismo In: DE ARAUJO, Victor Leonardo; DE MATTOS, Fernando Augusto Mansor (org.). A economia brasileira de Getúlio a Dilma – Novas interpretações – 1a ed. – São Paulo: Huci- tec, 2021, pág. 368. [4] Nesse sentido: POST, Robert; SIEGEL, Reva. Roe Rage: Democratic Constitutionalism and Backlash. Faculty Scholarship Series. 169. 2007, p. 373-433. Disponível em: <https://law.yale.edu/sites/default/files/documents/pdf/Faculty/Siegel_RoeRageDemocraticConstitutionalismAndBacklash.pdf>. Acesso em: 23 de setembro de 2021.Ricardo Lodi é professor adjunto de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), desde 2008, onde leciona nos cursos de bacharelado, mestrado e doutorado.