Para superar a pandemia, uma economia do cuidado

Espiral negativa do ultraliberalismo nos levava a uma desvalorização cada vez maior do trabalho e da vida. Com crise sanitária, se faz urgente uma visão feminista da economia: que põe no centro as pessoas, a dignidade e a solidariedade.

Graciela Rodriguez e Tatiana Oliveira

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 29/04/2020

O surgimento da covid-19 como pandemia global nos colocou em meio a uma crise sanitária e civilizatória de grandes proporções. Nesse contexto, o governo brasileiro passou a dizer que a população deveria escolher entre salvar a economia ou as suas vidas. Numa economia de mercado, o objetivo é o lucro, não as pessoas. No entanto, a economia é feita pelas pessoas e não existe sem elas. Superar esta crise exige colocar a vida no centro das nossas preocupações e refazer a trama comunitária de cuidados, que foi destruída pelo neoliberalismo.

A economia é feita pelas pessoas e só existe com elas

Esse é um dos eixos do pensamento econômico proposto pelas feministas. Para o feminismo, a economia constitui um modo da organização social que é marcada pela interdependência das pessoas entre si e entre elas e a natureza.

Não é possível imaginar que uma economia possa se desenvolver independente das pessoas. O simples fato de que a relação entre economia e vida possa ser apresentada publicamente como um dilema dá o tom do desafio diante de nós. A covid-19 nos obriga a encarar a brutalidade do neoliberalismo.

Se do ponto de vista retórico, o que conseguimos escutar é o choque entre economia e vida, apresentadas como rivais, o que nos parece estar em jogo é a conversão forçada da sensibilidade popular para bem longe de ideias como as de solidariedade e dignidade. A extrema direita quer destruir o social.

No capitalismo financeiro, a economia se impõe sobre a vida (de todos nós) como corolário de um velho mecanismo de subordinação: a dívida. Pois a dívida permite o consumo permanente e necessário para o capitalismo funcionar. Já não são correntes e açoites, coisas tangíveis, que chegam para nos obrigar, mas a dívida se impõe como código disciplinador das relações.

O neoliberalismo ampliou a quantidade de pessoas que vivem à margem do estado

Durante a pandemia o vazio das ruas ou, ao contrário, a imagem dos corpos que, por absoluta necessidade, insistem em circular nelas mostra que o neoliberalismo ampliou a quantidade de pessoas que vivem à margem do estado, sem acesso a praticamente nenhum dispositivo de proteção social.

No século XX, o trabalho foi o pilar sobre o qual o estado pôde erguer a estrutura das políticas de assistência social. Mas a crise dos salários (o componente verdadeiramente chinês desta crise) e o aumento da informalidade criaram um vácuo de proteção para o qual ainda não temos respostas. Por enquanto, o resultado tem sido nada menos do que precariedade, abandono e desolação.

O drama social que a crise do coronavírus torna visível acende um alerta: É urgente repensar a concepção herdada do século passado sobre o trabalho. Precisamos entender, como as feministas, que a definição de todo o trabalho que não é valorizado como tal, a exemplo do que acontece com as tarefas domésticas, indica os termos de uma atualização das formas de exploração. Isso significa que a forma da desvalorização e invisibilização do trabalho, assim como a forma da opressão contra as minorias transborda eventualmente para o restante da sociedade.

A opressão contras as mulheres é laboratório para a opressão contra a sociedade em geral. A precarização do trabalho é um movimento contínuo que afeta toda sociedade. Só seremos capazes de oferecer respostas às distintas configurações do trabalho se nos voltarmos para sua dinâmica de multiplicação. Não existe uma forma do trabalho, mas uma proliferação sempre crescente das modalidades do trabalho.

Sob o neoliberalismo, o estado caminha para a fronteira da legalidade

O ataque às democracias sob o neoliberalismo é tão profundo quanto a destruição das instituições que a sustentam. Não se trata apenas da extinção de ministérios ou da asfixia de ações e políticas por falta de recursos. Estamos diante de uma pesada guerra de ideias e valores. E um exemplo disso é o terreno arenoso que define a fronteira entre a legalidade e a ilegalidade.

O neoliberalismo atua para normalizar práticas que já foram consideradas imorais ou ilegais no passado. Esse é o caso das novas formas da exploração do trabalho, como mencionávamos, ou da imposição da dívida (pessoal, familiar) como instrumento de vigilância e controle (“não pense em crise, trabalhe”).

Como, agora, a função do governo é a de governar a economia em estreita relação com as corporações, moldando o ambiente de negócios para favorecer os ricos, o estado passa a ter que se adaptar e formar parte da ilegalidade. É aí que o legal e o ilegal revelam a sua conexão intrínseca com a dimensão do poder que os define. Porque a fluidez das concepções sobre a ilegalidade revela, finalmente, quem está no comando.

Quando o estado caminha para a fronteira da legalidade, permite o desenvolvimento do que chamamos de “capitalismo da ilegalidade”. A ilegalidade é um resíduo da desregulação. Ao mesmo tempo, não se reduz ao desmonte das políticas sociais. O que esse novo enquadramento da legalidade/ilegalidade faz é criar um novo perímetro para a definição do humano, o que determina quais corpos/territórios devem ser cuidados e os que podem ser exauridos. A violência faz parte da história do capitalismo, como ensinou Silvia Federici.

Hoje, testemunhamos o desenrolar de um conluio entre a institucionalidade, o capital financeiro e variados mecanismos delitivos que vão das máfias de toga às milícias políticas ou aos paramilitares. Por isso, a recuperação do papel do estado passa assim por um estágio nebuloso e sombrio. A afiliação à narcopolítica não se encerra nas lideranças no Planalto, mas penetra o estado como lógica do funcionamento burocrático.

Esta é uma crise de reprodução social, a solução é uma ética do cuidado

Como muito bem já o expressava Mariarosa Dalla Costa, em 1995, a esfera da reprodução social da vida revela “todos os pecados originais do modo de produção capitalista”1. De lá para cá, o capitalismo confirma e exacerba essa perspectiva. O que torna a crise sanitária do coronavírus tão dramática é a fragilidade, em alguns casos ausência, de políticas voltadas à manutenção da vida.

Essa doença, que não possui protocolo de cuidado, nem vacina, medicação ou cura tornou a fragilidade da vida incontornável e expôs a dificuldade dos governos para, depois de décadas de políticas austericidas, responder a urgências humanitárias. Ao mesmo tempo, é por isso que temos espaço para discutir um novo pacto social pautado por uma ética do cuidado.

Quando, nos anos 80, a economia feminista apresentou a imperiosa necessidade de “colocar a vida no centro”, não fez mais do que trazer o cuidado para o cenário do cotidiano, pontuando o tempo e os ritmos da vida, virando de cabeça pra baixo a lógica do lucro em primeiro lugar. As feministas desafiamos e ressignificamos a economia como ciência social capaz de buscar os melhores caminhos para atender as necessidades das pessoas.

Este é o verdadeiro dilema que se coloca no cenário atual, quando líderes mundiais como Trump, Boris Johnson ou Bolsonaro conseguem tornar palatável a ideia de salvar as economias, priorizando os interesses das empresas e justificando a hiperexploração das pessoas. Inventar um novo mundo é questão de vida ou morte.

Precisamos retomar a discussão sobre uma ética do cuidado. De forma inédita, a importância de amplos sistemas de políticas públicas para o cuidado coletivo se apresenta por fora dos marcos do trabalho formal. É, portanto, o momento para reconhecer as múltiplas formas do trabalho, redefinir ideias e insistir nas formas de organização comunitária, como ensina o ecofeminismo, em que somos desafiados a encontrar soluções locais para o funcionamento cotidiano da vida.

Esta pandemia pode ser a trágica oportunidade para questionarmos o atual modelo produtivo e de governo para, enfim, buscar um movimento de mudança que acolha a lógica do cuidado. Superar esta crise exige encarar a vulnerabilidade, que nos constitui como seres humanos, e a ecodependência, que nos une à natureza.

Notas

1 Dalla Costa, Mariarosa: Traduzido de “Capitalismo e riproduzione, in “Capitalismo NaturaSocialismo”, n. 1 janeiro-abril de 1995 (“Capitalism and Reproduction”, in Bonefeld, Werner et al (eds.), 1995)

Graciela Rodriguez é socióloga, feminista, e Coordenadora do Instituto EQUIT e pesquisadora da Rede de Gênero e Comércio.

Tatiana Oliveira tem pós-doutorado em Relações Internacionais e é pesquisadora do grupo de trabalho Anticapitalismos e Sociabilidades Emergentes (ACySE/CLACSO).

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