Para que a internet não devaste a sociedade

Sistemas muito mais abrangentes que o Uber estão eliminando direitos trabalhistas para enriquecer megaempresas. Há saída: um cooperativismo digital.

Trebor Scholz

Fonte: Outras Palavras
Tradução: Rafael Zanatta
Data original da publicação: 31/03/2017

Este texto reúne a abertura e o primeiro capítulo, revisados e adaptados por Outras Palavras, do livro Cooperativismo de Plataforma, publicado no Brasil pela Fundação Rosa Luxemburgo e editoras Elefante e Autonomia Literária.

Entre todos os problemas do trabalho no século XXI – o inchaço do setor de serviços mal remunerados, a desigualdade econômica, o desmanche dos direitos trabalhistas –, o maior deles é que há poucas alternativas realistas. O que falta no debate sobre o futuro do trabalho é uma abordagem que ofereça às pessoas algo que elas possam abraçar de corpo e alma. É sobre isso que trata este estudo.

Deveríamos compreender a economia do compartilhamento como uma estrada que sinaliza um futuro do trabalho melhor e mais flexível? O que essa economia realmente nos trouxe?

As empresas de trabalho “descoladas”, como Handy, Post-mates e Uber, celebram seus momentos Andy Warhol, seus 15 bilhões de dólares de fama. Elas estão operando seu carro, seu apartamento, suas emoções e, mais importante, seu tempo. São empresas de logística que demandam que o participante pague a quem intermedia. Nós somos transformados em bens; essa é a financeirização da vida comum versão 3.0.

No ensaio “What’s Yours is Mine” (“O que é seu é meu”), o pesquisador canadense Tom Slee resume a questão:

Muitas pessoas bem-intencionadas sofrem de uma fé equivocada nas habilidades intrínsecas da Internet de promover comunidades igualitárias e confiança e, assim, inadvertidamente ajudaram e incitaram essa acumulação de fortuna privada e a construção de novas formas exploradoras de emprego.1

Na conferência Cooperativismo de Plataforma, John Duda, da organização Democracy Collaborative, afirmou que:

A propriedade das instituições de que dependemos para viver, comer e trabalhar está progressivamente concentrada. Sem democratizar nossa economia não teremos a sociedade que queremos ter, não seremos uma democracia. A Internet certamente não está ajudando. Ela é impulsionada por pensamento de curto prazo, lucros corporativos; ela é direcionada pela indústria de capital de risco e está contribuindo para a concentração de riqueza em poucas mãos. Ao passo que a economia digital se torna galopante, morar se torna totalmente inacessível. Precisamos reverter essa tendência.2

Trabalhos que não podem ser terceirizados para fora do país – como a faxina e o passeio com cães – estão se tornando subsumidos naquilo que Sascha Lobo e Martin Kenney chamam de “capitalismo de plataforma”. A geração do baby boom está perdendo setores da economia – como transporte, alimentação e vários outros setores – para a geração do milênio, que se apressa feroz para controlar a demanda, a oferta e o lucro ao adicionar uma espessa “crosta de gelo de negócios” nas interações baseadas em aplicativos. Esta geração está estendendo os mercados livres desregulados a áreas previamente privadas de nossas vidas.

A “economia do compartilhamento” é retratada como um prenúncio para a sociedade pós-trabalho – o caminho para o capitalismo ecologicamente sustentável onde o Google vencerá a própria morte e você não precisa se preocupar com nada. Com o slogan “O que é meu é seu”, o cavalo de Troia da economia do compartilhamento nos traz formas jurássicas de trabalho enquanto desencadeia uma máquina antissindical colossal, passando por cima de trabalhadores mais velhos, especialmente.

O autor alemão Byung-Chul Han emoldura o momento atual como a Sociedade da Fadiga3. Estamos vivendo, escreve ele, em uma sociedade orientada à realização, supostamente livre, determinada pelo chamado do “sim, nós podemos”. Inicialmente, isso cria um sentimento de liberdade, mas logo é acompanhado pela ansiedade, pela autoexploração e pela depressão.

Não é possível travar essa discussão sem antes reconhecer que a “economia do compartilhamento” não é algo embalado a vácuo e isolado no “ciberespaço” – mas somente outro reflexo do capitalismo e do catálogo maciço de práticas de trabalho digital. Consequentemente, não podemos conversar sobre plataformas de trabalho sem antes reconhecer que elas dependem de vidas humanas exploradas em toda sua cadeia de fornecimento global, começando com o hardware, sem o qual toda essa economia “sem peso” iria afundar até o fundo do oceano.

Todos os amados dispositivos da Apple não podem ser considerados sem antes nos lembrarmos das condições de trabalho no que Andrew Ross chamou de “moinhos de suicídio da Foxconn” em Shenzhen, na China. Ou dos raros minerais da República Democrática do Congo, indispensáveis para os celulares. É essencial seguir a cadeia de fornecimento que facilita todos esses estilos de vida aparentemente limpos e glamorosos da vida digital.

Há uma massa de corpos sem nome, escondida por trás da tela, exposta a vigilância no ambiente de trabalho, espoliação da multidão, roubo de salários e softwares proprietários. Como alertou o ativista do software livre Micky Metts: “Ao construir plataformas, você não pode construir liberdade com base na escravidão de outrem”4.

Ao enfrentarem uma crítica política da economia sob demanda, certos acadêmicos argumentam que os terríveis resultados do capitalismo desregulado são bem compreendidos, mas essa lenga-lenga não precisa ser afirmada novamente. Mas, como McKenzie Wark afirmou: “Isso não é capitalismo, isso é algo pior”. Ele sugeriu que “o modo de produção no qual parecemos entrar não é o capitalismo como classicamente descrito”5.

Não é uma mera continuação do capitalismo pré-digital como conhecemos. Existem descontinuidades notáveis – novas formas de exploração e concentração da riqueza que me levaram a cunhar o termo “espoliação da multidão”. A espoliação da multidão é uma nova forma de exploração, executada por quatro ou cinco estrelas, que se apoia em uma massa global de milhões de trabalhadores em tempo real.

A situação atual precisa ser discutida na esteira de formas intensificadas de exploração online e outras economias mais antigas de trabalho invisível e sub-remunerado. Pense na campanha “Wages for Housework” (salários para o trabalho doméstico) de Silva Federici, Selma James e Mariarosa Dalla Costa, e, nos anos 1980, na teórica cultural Donna Haraway discutindo as formas como as tecnologias de comunicação emergentes permitiriam que o “trabalho em casa” se disseminasse por toda a sociedade.

1. A economia do compartilhamento brecou

Daqui a vinte ou trinta anos, quando provavelmente enfrentaremos o fim das profissões e mais empregos serão “uberizados”, podemos muito bem acordar e imaginar por que não protestamos contra essas mudanças com mais força. Apesar de toda a conveniência da “economia do compartilhamento”, deliciosa e caseira, podemos acabar compartilhando as sobras e não a economia. Podemos sentir remorso por não termos buscado alternativas antes. Sem dúvida, não podemos mudar o que não entendemos. Portanto, vale perguntar: o que significa “economia do compartilhamento”?

A economia do compartilhamento indica uma força global e maciça em favor de “construtores de pontes digitais” que se inserem entre as pessoas que oferecem serviços e as que buscam tais serviços, imbricando assim processos extrativos em interações sociais. A economia sob demanda indica que o trabalho digital não é um fenômeno de nicho. A Upwork (anteriormente conhecida como oDesk and Elance) afirma ter em torno de 10 milhões de trabalhadores. A Crowdwork tem 8 milhões. A CrowdFlower, 5 milhões. Em 2015, 160 mil motoristas estavam nas ruas pelo Uber – se você confiar em seus números. O Lyft reporta 50 mil motoristas. O TaskRabbit afirma que possui 30 mil trabalhadores.

Na Alemanha, sindicatos como ver.di concentram seus esforços em defender os direitos dos empregados, enquanto, nos Estados Unidos, vejo pouca chance de retorno às 40 horas por semana nos setores do trabalho autônomo ou temporário. A questão, portanto, é como melhorar as condições da enorme parte da força de trabalho que não tem um emprego tradicional.

Os atuais modelos de negócios extrativos baseados em plataformas fazem com que as antigas pirâmides e fraudes da Internet pareçam experimentos socialistas. Douglas Rushkoff, autor de Throwing stones at the google bus6, aponta que, “em vez de criarmos negócios verdadeiramente distributivos estamos apenas turbinando a economia industrial, criando mais divisões extremas de riqueza e mais formas extremas de exploração. Estamos criando todas essas novas tecnologias, como Bitcoin ou blockchain, mas não perguntamos seriamente para quais fins programamos essas coisas”. Os benefícios do capitalismo de plataforma para os consumidores, proprietários e investidores são aparentes, mas o valor agregado para trabalhadores vulneráveis e o valor de longo prazo para os consumidores, na melhor das hipóteses, são incertos.

Novas dependências e novos comandos

A questão envolve a mudança do empregado trabalhando 40 horas por semana para um trabalhador mais contingente, freelancer ou autônomo. Nesse processo, os trabalhadores estão perdendo o salário mínimo, as horas extras e as proteções asseguradas por leis trabalhistas antidiscriminação. Os empregadores também não precisam contribuir com a Previdência Social e evitam diversos impostos.

“Enquanto o emprego tradicional era como o casamento”, escreve o jurista Frank Pasquale, “com ambas as partes comprometidas com algum projeto mútuo de longo prazo, a força de trabalho digitalizada busca uma série de relações”7. Mitos energicamente lançados sobre o conceito de emprego sugerem que trabalhar como empregado significa que você deve desistir de toda a flexibilidade e que trabalhar como autônomo significa, de algum modo, que seu trabalho é flexível. Mas essa “flexibilidade inata” dos freelancers de baixa renda deve ser questionada, pois os trabalhadores não existem em um vácuo, precisam se adaptar às agendas de chefes virtuais, também.

Usando a linguagem do empreendedorismo, flexibilidade, autonomia e escolha, o peso das escolhas mais arriscadas da vida – desemprego, doença e envelhecimento – foi colocado nos ombros dos trabalhadores. Os donos de plataformas referem-se aos trabalhadores como rabbits (coelhos), turkeys (perus) ou providers (fornecedores).

Quem estaria disposto a oferecer direitos empregatícios para freelancers, temporários e trabalhadores autônomos? A economia do compartilhamento é reaganismo por outros meios. Dando um passo atrás, sustento que existe uma conexão entre os efeitos da “economia do compartilhamento” e os choques deliberados de austeridade que seguiram a crise financeira em 2008. Os bilionários da tecnologia surfaram na onda, subindo nas costas daqueles que estavam procurando por trabalho desesperadamente, não somente aumentando a desigualdade, mas também reestruturando a economia de um modo que impôs uma nova forma de trabalho, privada de todos os direitos trabalhistas, voltada à sobrevivência, como dizem, “sustentável”.

A “economia do compartilhamento” nasceu da linhagem de Ronald Reagan e Margareth Thatcher. Na década de 1980, eles foram além de sufocar greves históricas de mineiros e controladores de tráfego aéreo e erodir a crença na capacidade dos sindicados para cuidar dos trabalhadores. Enfraqueceram também a crença na possibilidade da solidariedade e criaram uma moldura em que a reestruturação do trabalho, os cortes nas garantias de bem-estar e o descasamento da produtividade com a renda se tornaram mais plausíveis.

As demandas por qualificações estão se tornando mais elevadas e a ansiedade, o medo do desemprego e a pobreza viraram temas centrais nas vidas de muitos jovens hoje. Tudo isso levou a um cenário no qual, para a geração do milênio, o fim do mundo parece mais plausível que o fim do capitalismo e suas trajetórias de carreiras parecem mais veículos autônomos em direção ao Armagedom.

É como o filme Sindicato dos ladrões, de Elia Kazan, com anfetamina: trabalhadores digitais diários levantam cedo toda manhã para um leilão de seus próprios bicos. De acordo com a economista Juliet Schor, a economia do compartilhamento progressivamente provê acesso a trabalhos de baixa formação para uma classe média educada, que pode agora dirigir táxis e montar móveis nas casas das pessoas, enquanto simultaneamente substitui trabalhadores de baixa renda dessas ocupações.

Um em cada três trabalhadores nos Estados Unidos atua agora como autônomo, freelancer ou temporário. Ainda não se sabe se irão retornar a um mundo com pagamento regular, uma semana de trabalho de 40 horas e algumas proteções sociais.

Gerando lucros para poucos

O software que propaga a economia do compartilhamento tem design de interface viciante. Na tela, o ícone de um táxi se aproximando de sua localização é tão sedutor e perigoso como as sereias que tentaram Odisseu; é design para escala. Da perspectiva dos negócios, empreendedores e engenheiros de software criaram novos mercados. Mas seria isso inovação ou há uma fábrica por trás do playground? A inovação deve se resumir a lucros para poucos enquanto deixa uma força de trabalho sem proteções sociais suficientes? A inovação é gerada para extrair valor e concentrar ou para circular esse valor entre as pessoas?

A eficiência, do mesmo modo, não é uma virtude quando construída a partir da extração de valor para investidores e proprietários. É nesse sentido de capturar o valor das pessoas que empresas como Amazon, CrowdSpring e TaskRabbit não são nem efetivas nem inovadoras. O capitalismo de plataforma, até agora, não tem sido efetivo em atender às necessidades do bem comum. O que inicialmente parecia inovação rapidamente multiplicou desigualdade.

Ilegalidade como método

O modus operandi das empresas na economia do compartilhamento segue um padrão. Primeiro, companhias como Uber violam várias leis – leis antidiscriminação, por exemplo – para então conquistar uma base crescente de consumidores, que demandam mudanças jurídicas. A Airbnb gastou mais de 8 milhões de dólares em lobby em São Francisco quando moradores votaram a favor de regular a operação da empresa. A Uber gasta mais dinheiro com lobistas do que a Walmart. Tanto Uber quanto Airbnb estão usando seus aplicativos como plataformas políticas que podem para ativar clientes e levá-los a se opor a qualquer esforço regulatório.

Quando você descobre que os motoristas da Uber em Los Angeles estão recebendo menos que o salário mínimo; quando sabe que os trabalhadores da CrowdFlower e da Mechanical Turk ganham não mais que dois ou três dólares por hora; quando entende que muito (senão a maioria) da receita da Airbnb em Nova York vem de pessoas que alugam seus apartamentos inteiros por menos de trinta dias; quando ouve que as startups consideram quem trabalha para elas autônomo, em vez de empregado, para driblar a legislação trabalhista; quando Uber, Lyft e Airbnb continuam a operar seus negócios em cidades que tentam fechar suas operações; então você entende por que muitos municípios tentaram agir contra esse “descumprimento das leis.

Considerando a rotatividade muito altas entre trabalhadores da Mechanical Turk e motoristas da Uber (metade dos motoristas da Uber não permanece mais que um ano com a empresa)8, fica claro que esses negócios, em suas formas atuais, não são sustentáveis.

Há alguma esperança. Em decisões recentes, juízes na Grã-Bretanha, Estados Unidos e Brasil decidiram que motoristas da Uber são empregados, e não trabalhadores autônomos, por exemplo. E mesmo trabalhadores da Lyft e da Yelp estão ajuizando, nos EUA, ações para que seja reconhecido o vínculo empregatício9. Em 2015, a cidade norte-americana de Seattle permitiu a sindicalização de motoristas da Uber. Se os governos terão vontade política de introduzir novas proteções trabalhistas, é algo que ainda não sabemos.

Nos planos regionais, alguns esforços regulatórios estão sendo realizados. Em Montgomery County (EUA), por exemplo, decidiu-se regular Uber e Lyft, impondo uma taxa de US$ 0,25 por corrida feita pelas empresas. A receita será utilizada para oferecer serviços de táxi mais acessíveis para cidadãos idosos e residentes de bairros mais pobres. O prefeito Bill de Blasio está trabalhando para controlar o tamanho da frota da Uber nas ruas de Nova York.

A Amazon é uma das empresas mais velhas a economia digital (a loja de livros começou em 1994); mas hoje, está aderindo à “economia do compartilhamento” e tornando-se suporte para inúmeros outros negócios. É o caso do Flex, um serviço de entregas que usa pessoas comuns, e não entregadores treinados, para entregar caixas e pacotes. Ou do HomeServices, que se coloca no meio do caminho, quando você precisa de um eletricista ou de um encanador, e o site HandMade-at-Amazon, que concorre diretamente com o Etsy10.O gênio cruel saiu da garrafa e a lógica de negócios de sistemas de crowdsourcing, como Mechanical Turk, está agora sendo adaptada por empresas como CrowdFlower, 99Designs e centenas de outras.

Desde 2005, a Amazon opera uma intermediação online do trabalho por meio da Mechanical Turk, onde trabalhadores podem se cadastrar para executar tarefas de uma longa lista. De forma similar ao trabalho fragmentado de uma indústria têxtil, a Mechanical Turk permite que um projeto seja quebrado em milhares de partes, que então são distribuídas aos “trabalhadores da multidão”. Geralmente com boa escolarização, trabalhadores novatos ganham em torno de dois a três dólares por hora nesse ambiente. Assim como trabalhadores migrantes, advogados ou temporários na indústria alimentícia, eles trabalham longas horas, são mal remunerados e tratados rudemente por chefes virtuais, tendo acesso a poucos ou nenhum benefício.

O roubo de salário é uma ocorrência diária na Mechanical Turk, que explicitamente tolera essa prática. Contratantes podem rejeitar trabalhos perfeitamente executados e evitar o pagamento. O propósito da plataforma, seu sistema lógico, é expresso por meio de sua arquitetura, seu design, e seus termo de uso. O roubo de salário é uma característica, não uma falha.

A Amazon é parte de uma monocultura de grandes empresas de maximização de lucro e capital aberto – que têm a missão de gerar retorno financeiro para os investidores e os proprietários da plataforma. Por trás da velocidade e preço baixo dos serviços, estão custos sociais muito altos para os trabalhadores. Em um dos galpões da Amazon na Alemanha, por exemplo, a empresa monitorou os funcionários de logística e os reprimiu por permitirem-se curtos períodos de inatividade. Tecnologias de vigilância e supervisores monitoram até mesmo conversas de dois minutos entre trabalhadores e idas ao banheiro11. Após dois desvios, pausas de um a nove minutos, os trabalhadores podem ser demitidos. É a lógica taylorista levada ao extremo; uma absoluta densificação do trabalho, como diz a professora Ursula Huws12. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte dos julgou que a revista de segurança obrigatória não pode ser compensada como hora extra, apesar de os trabalhadores esperarem em fila por 30 a 40 minutos todos os dias.

Mas a miséria não se limita a trabalhadores de galpões e trabalhadores da multidão; ela afeta igualmente o pessoal de colarinho branco da Amazon. Jeff Bezos, executivo-cheffe da empresa, que disse a um grupo de editores, de forma bruta, que “a Amazon deve abordar as editoras do mesmo modo que um guepardo persegue uma gazela”. É com este espírito que a empresa também trata contadores, marqueteiros e engenheiros. O fato foi revelado por meio da matéria “Por dentro da Amazon”, do New York Times, que mostrou um executivo da divisão de marketing de livros da Amazon dizendo: “vi chorar em sua mensa quase toda pessoa com quem trabalhei”13.

A Amazon tornou-se conhecida por suas condições injustas de trabalho, mas não é uma exceção dentro e além da economia do compartilhamento. Ninguém está cuidando dos trabalhadores, mas a cada trabalhador que é maltratado, há mais pessoas que estão buscando uma Internet centrada nas pessoas.

O crescimento dos setores de trabalho autônomo e temporário dava-se há décadas, mas com a “economia do compartilhamento”, ele ganhou um impulso significativo – em especial a partir da crise econômica aberta 2008, quando várias pessoas tiveram que procurar fontes alternativas de renda.

É por essa razão que pergunto, na segunda parte do estudo, se temos que continuar dependendo de infraestruturas digitais desenhadas para extrair lucros em favor de um número muito pequeno de proprietários de plataformas e acionistas. Será que é realmente inconcebível escapar de empresas como Uber, Facebook e CrowdFlower?

Uma Internet das pessoas é possível! Uma coalizão de designers, trabalhadores, artistas, cooperativas, desenvolvedores, sindicatos inovadores, advogados públicos e outros profissionais pode mudar as estruturas, para que todos possam colher os frutos do próprio trabalho.

As empresas de alta tecnologia adoram as rupturas de regras – por isso vamos propor uma. O que segue é um chamado para colocar as pessoas no centro dos corredores virtuais de contratação e transformar os lucros em benefícios sociais. É um chamado para que prefeituras considerem iniciar por conta própria negócios como o Airbnb. Historicamente, os municípios de muitos países costumavam possuir e operar hotéis e hospitais. Alguns ainda o fazem. É hora de revisitar essa história.

Em meados da década de 1960 em Nova York, o artista Goerge Maciunas, criador do movimento Fluxus, começou a formar cooperativas de artistas motivadas pela sua própria situação precária. Na Nova York de hoje, artistas como Caroline Woolard usam a lógica da arte para transformar suas próprias situações de vida e a de outros14.

É possível escapar de Facebook, CrowdFlower e Google. Imperativos empresariais como crescimento e maximização de lucro não são as únicas opções. É muito difícil consertar aquilo que você não tem. A luta por privacidade e as batalhas por salários maiores dos trabalhadores da multidão são importantes, mas os modelos cooperativos de propriedade da Internet poderiam responder a muitas dessas questões.

O “capitalismo de plataforma” no Brasil
Por Rafael Zanatta

Com mais de 100 milhões de pessoas conectadas à Internet banda larga e mais de 200 milhões de aparelhos celulares, o Brasil é um dos celeiros da “economia do compartilhamento” no mundo ocidental. A empresa Uber iniciou suas atividades em 2014 em São Paulo e no Rio de Janeiro, movimentando reguladores, conquistando clientes e provocando a ira de taxistas. A plataforma Airbnb também cresceu enormemente desde 2012 e, em 2016, tornou-se uma das opções oficiais de hospedagem dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Tanto Uber quanto Airbnb possuem escritórios de negócios em São Paulo, com equipes recrutadas nas universidades de elite do Brasil.

A partir de 2015, diferentes centros de pesquisa no Brasil passaram a estudar o impacto da ascensão dessas plataformas, com ênfase nas tensões jurídicas para a regulação dessas empresas de tecnologia (InternetLab), os conflitos concorrenciais em mercados específicos (FGV-Direito Rio) e o impacto dessas plataformas na redefinição das relações sociais em grandes cidades (Cegesp-FGV).

Ao lado das grandes plataformas de compartilhamento e serviços sob demanda, existem iniciativas brasileiras como ZazCar (plataforma de compartilhamento de veículo para uso pessoal), Tem Açúcar?  (plataforma de empréstimos de utensílios na vizinhança), Loggi  (plataforma de entregas e serviços de entrega com motocicletas sob demanda) e Encontre um Nerd  (plataforma de serviços de assistência técnica em computadores).

Notas

1 Slee, Tom. What’s Yours is Mine: Against the Sharing Economy. New York: Or Books, 2015
2 Duda, John. Platform Cooperativism: The Internet, Ownership, Democracy, 13-14 nov. 2015. https://vimeo.com/149401422.
3 Han, Byung-Chul. Müdigkeitsgesellschaft. Berlin: Matthes & Seitz, 2010.
4 Metts, Micky. Cooperative Development: Thinking Outside the Boss. The Design for Co-Op Apps. Internet Society. http://livestream.com/internetsociety/platformcoop/videos/105663835.
5 Wark, McKenzie. Digital Labor and the Anthropocene. DIS Magazine, http://dismagazine.com/disillusioned/discussion-disillusioned/70983/mckenzie-wark-digital-labor-and-the-anthropocene.
6 O título “Atirando pedras no ônibus do Google” refere-se a protestos nos Estados Unidos. No Vale do Silício, um ônibus que transportava trabalhadores da Google teve os vidros quebrados nessas manifestações em 2013.
7 Rushkoff, Douglas. Platform Cooperativism: The Internet, Ownership, Democracy, 13-14 nov. 2015. https://vimeo.com/149979122.
8 Em 2015, mais de metade de todos os motoristas da Uber não ficaram mais que doze meses na empresa. Para entender mais, ler Hill, Steven. Raw Deal: How the “Uber Economy” and Runaway Capitalism are Screwing American Workers. St. Martin’s, 2015.
9 Cushing, Tim. Judge Not At All Impressed By Class Action Lawsuit Claiming Yelp Reviewers Are Really Employers. 17 ago. 2015. https://www.techdirt.com/articles/20150815/16091931969/judge-not-all-impressed-class-action-lawsuit-claiming-yelp-reviewers-are-really-employees.shtml.
10 n.t.: O Etsy é uma empresa criada em 2005 nos EUA que permite que artesãos vendam para um grande público na Internet. O Etsy lucra com a uma plataforma de intermediação.
11 Knight, Ben. Amazon’s inactivity protocols under fire. Deutsche Welle, 13 mar. 2015. http://www.dw.com/en/amazons-inactivity-protocols- under-fire/a-18315388.
12 Huws, Ursula. Labor in the Global Digital Economy: the cybertariat comes of age. New York: Monthly Review, 2014.
13 Kantor, Jodi; Streitfeld, David. Inside Amazon: Wrestling Big Ideas in a Bruising Workplace. The New York Times, 15 ago. 2015. http://www.nytimes.com/2015/08/16/technology/inside-amazon-wrestling-big-ideas-in-a-bruising-workplace.html.
14 Woolard, Caroline. http://www.carolinewoolard.com.

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