Para além das greves na indústria de fast-food

Mudar os sindicatos é difícil, mas não impossível. A raiva contra as traições e a burocracia do sindicalismo empresarial não nos deve levar a encarar os sindicatos como organizações completa e inevitavelmente divorciadas dos seus membros.

Trish Kahle

Fonte: Passa Palavra
Tradução: Passa Palavra
Adaptação: DMT
Data original da publicação: 28/01/2014
Originalmente publicado em inglês no site da revista Jacobin em 22/10/2013

Às voltas com uma chuva gelada de março, no início de 2013, enquanto juntava carrinhos de compras no estacionamento da Whole Foods de Chicago, onde trabalho, um dos meus chefes parou ao pé da porta.

“Este clima é um saco”, afirmou sem qualquer cerimônia. Eu balancei a cabeça, laconicamente. “Mas o que é que se pode fazer?”, continuou, rindo. “Uma greve?”

Fazia sentido que ele considerasse absurda a ideia de entrarmos em greve – as greves nunca atingiram um nível de registro tão baixo, sendo praticamente inexistentes em estabelecimentos comerciais como o meu; e quase nenhum dos meus colegas pertenceu alguma vez a um sindicato. Porém, um mês depois, entramos em greve. Dez trabalhadores da Whole Foods abandonaram seus postos de trabalho em protesto contra uma política de atendimento draconiana e contra salários de pobreza, juntando-se a 200 trabalhadores de redes de fast-food e do varejo de Chicago e a milhares em todo o país.

Trabalhadores de fast-food e do varejo sujeitados a baixos salários assumiram, durante o verão de 2013, um protagonismo no centro do movimento sindical norte-americano. A Campanha pelos 15 (FF15 – Fight For 15) tornou-se pública em novembro de 2012, tendo eclodido ao longo da primavera de 2013, quando trabalhadores abandonaram os seus empregos em Nova York e depois em Chicago, St. Louis, Milwaukee, Detroit e Seattle. Sete cidades organizaram uma segunda semana de greves de um dia no fim do mês de julho. Então, em 29 de agosto, 62 cidades e mais de 1.000 trabalhadores uniram-se em torno de duas reivindicações principais: salário mínimo de 15 dólares a hora e o direito à organização sindical sem quaisquer represálias.

Somos parte de uma geração de trabalhadores que está redescobrindo as nossas armas mais poderosas: o sindicato e a greve. Em plena era da austeridade, nós nos levantamos. E fizemos isso com o apoio de um sindicato que, no passado, muitos da esquerda atacaram (acertadamente) por causa da sua colaboração próxima com o capital. Apesar de uma história recente de fuga do confronto, a União Internacional dos Empregados em Serviços (SEIU – Service Employees International Union) ajudou a impulsionar uma eventual onda de militância entre os trabalhadores mal pagos do século XXI – uma onda que, caso continue a se expandir, poderá ultrapassar as expectativas de qualquer um.

Muitos de nós nunca pensaram que ficaríamos presos a um trabalho mal pago. Ao longo da minha vida, disseram-me que, se fosse para a faculdade e obtivesse um diploma, viria a ter um melhor nível de vida do que havia tido até então. Fui para a faculdade com uma bolsa, tendo pago os meus custos de vida através de trabalho em fazendas na Carolina do Norte. Eu me graduei quando a recessão começou, sem quaisquer perspectivas de um salário minimamente decente ou de contatos com empresas.

Após a procura por trabalho na região, consegui um emprego como técnica de veterinária. Apesar de, aparentemente, constituir um trabalho “qualificado”, recebi apenas 8,5 dólares a hora e 25 horas por semana. Fui despedida menos de seis meses depois. Durante mais de um ano, o único emprego que encontrei foi um temporário, como paisagista, trabalhando por 10 dólares a hora, sem horas garantidas, sem equipamento de segurança e com habituais roubos no salário.

Candidatei-me a todas as empresas de comércio e de fast-food na região, bem como aos correios e à UPS (United Parcel Service), onde nem me chamaram para trabalho temporário nas férias. Estava desesperada – e não era a única. Com a inauguração da sua nova loja em Greensboro (Carolina do Norte), a Whole Foods anunciou 100 vagas disponíveis. Mais de 3.000 pessoas se candidataram – um número constantemente mencionado pela administração ao longo do treinamento dos empregados. A mensagem era clara: nós devíamos nos considerar sortudos por ter emprego.

Os dois anos após a conclusão da faculdade foram um tapa na cara. Tornou-se cada vez mais evidente que eu não iria conseguir um bom emprego. Não houve gestor responsável por recrutamento que não me dissesse que eu era qualificada demais por ter um diploma, ou muito pouco qualificada por ter apenas um… Quando me formei, considerei me tornar uma carteira. Ao invés disso, regressei à universidade para conseguir um doutorado. Empregos acadêmicos podem estar desaparecendo assim como os empregos no serviço público, mas pelo menos escrever uma dissertação me daria algum tempo.

No entanto, mesmo após ter me inscrito num programa de graduação de uma das mais prestigiadas universidades, eu tive que lutar para me virar. Hoje, no meu segundo ano, eu trabalho na Whole Foods além de outros dois empregos como assistente de pesquisa no meu departamento e faço uns bicos como trabalhadora de mudanças para o Departamento de Ciências Sociais. Mas não importa por quantas horas eu trabalhe, um emprego estável e salários minimamente decentes parecem estar fora do meu alcance.

Por si só, a minha situação poderia ser desconsiderada – uma anomalia azarada. Mas a minha história é comum entre a juventude norte-americana. Alguns se referem à minha geração como “millennials” [1], mas eu acho que a geração dos “Deixados para Trás” seria um termo mais exato: a mais bem qualificada geração da história global, uma geração sobrecarregada com uma devastadora dívida educativa, com pouco ou nenhum acesso a salário e emprego dignos e com poucas perspectivas de algo melhor no futuro.

E, é claro, não são apenas as pessoas na faixa dos vinte ou trinta e sem filhos que estão empregadas em trabalhos como o meu. Muitos dos meus colegas têm filhos ou pessoas sob sua dependência. Se sobreviver com salários baixos já é extremamente difícil para pessoas sem filhos, é praticamente impossível para os meus colegas que são pais, em particular mães solteiras – muitas das quais confrontadas com cortes em programas sociais, como os dos vales-alimentação, Medicaid, seguridade social e educação.

Alguns dos meus companheiros sindicalizados trabalham no fast-food e no varejo desde que eu nasci. Um trabalhador da McDonald’s, membro do sindicato, trabalha na empresa há 27 anos; após uma geração de trabalho, ele recebe menos do que 9 dólares a hora. Ele nunca poderá se aposentar.

Com salários de pobreza, assédio sexual e racismo ocorrendo de forma frequente no emprego, e nenhum senso de direitos no local de trabalho ou segurança no emprego, os riscos de se organizar pareciam valer a pena cada vez mais.

Condições de trabalho atrozes e poucas perspectivas de saída da indústria ajudam a explicar a razão pela qual a FF15 cresceu tão rapidamente. Há, no entanto, uma terceira causa importante: a volta da luta à imaginação popular.

O período de dezembro de 2010 a novembro de 2011 foi repleto de focos de resistência por parte da geração dos Deixados para Trás: no mundo, ocorreram protestos estudantis contra o aumento dos custos do ensino no Reino Unido, revoluções na Tunísia e no Egito; nos EUA, a reação contra o governador Scott Walker no Wisconsin e o movimento Occupy pouco tempo depois. Milhares de pessoas, na maioria jovens, erguiam-se contra a desigualdade, com sinais de um aumento gradual da radicalização entre a população norte-americana, em particular nas suas camadas jovens. Contudo, a indignação contra a desigualdade econômica e social ainda não havia encontrado expressão nos locais de trabalho.

Em setembro de 2012, o Sindicato dos Professores de Chicago (CTU – Chicago Teachers Union) deu um exemplo importante. Os trabalhadores de Chicago da FF15, que seis meses mais tarde abandonariam às centenas os seus postos de trabalho, estavam atentos aos professores. Nós os vimos reivindicar não só melhores salários, mas também melhores condições de trabalho. Nós os vimos confrontar o perverso racismo de Chicago, incorporado no sistema de apartheid educativo da cidade. E nós os vimos fazer tudo isso por conta própria: organizando os seus locais de trabalho, debatendo democraticamente táticas grevistas e seu contrato. Vimos o poder de solidariedade nos pais que recusavam mandar os seus filhos atravessar os piquetes de greve dos professores. Na medida em que os professores invadiam o centro da cidade no seu primeiro dia de greve, vimos que o faziam em nome de todos os trabalhadores. Meses mais tarde, quando o CTU era mencionado em nossas reuniões de organização, os trabalhadores presentes levantaram-se em aplausos.

Após a greve do CTU, as pessoas estavam prontas para se organizarem. Mas, principalmente no período inicial da campanha, nós não podíamos nos organizar sozinhos. Para grande parte de nós, a ideia de optar pela ação coletiva era aterrorizante. Não tínhamos uma grande tradição de militância sindical no nosso local de trabalho ou entre as nossas famílias na qual nos basear.

E, é claro, existia a possibilidade real de sermos todos despedidos, à semelhança de milhares de trabalhadores norte-americanos que todos os anos tentam organizar sindicatos. Os sindicatos e seus observadores tinham consciência da potencialidade da nossa indústria em termos de novos participantes. Mas, mesmo diante do declínio da sindicalização nas últimas décadas – correspondendo atualmente ao nível mais baixo dos últimos 100 anos –, os sindicatos existentes se revelaram incapazes de organizar iniciativas de sindicalização direcionadas às redes de fast-food e varejo numa escala nacional.

O SEIU indicou o caminho. Em Chicago, a FF15 foi apoiada pelas seções locais da SEIU e por outros grupos comunitários defensores dos direitos dos trabalhadores.

Ao invés de se focar numa única loja ou numa cadeia particular, a FF15 adotou uma posição mais municipal, organizando todos os trabalhadores de fast-food e varejo num só sindicato. Caso a campanha tivesse sido desenvolvida loja por loja, teria sido fácil aos patrões nos isolar.

A organização municipal produziu resultados tangíveis. Depois da greve do dia 24 de abril, os organizadores da campanha em Chicago perguntaram aos trabalhadores se estariam interessados em entrar num ônibus e viajar cinco horas em direção a St. Louis ou Milwaukee, com o objetivo de prestar solidariedade aos trabalhadores de lá, com greve marcada para a semana seguinte. As mãos se ergueram. Algumas pessoas lamentaram ter turnos marcados para aquele dia. Na frente da sala, um trabalhador afro-americano de meia-idade, empregado na McDonald’s, levantou-se. “Vamos entrar de novo em greve”, ele disse. “Assim, podemos todos ir”.

Na reunião seguinte, uma mulher se levantou e nos contou como o seu patrão a havia sujeitado a insultos anti-imigrantes, ameaçando despedi-la por ter faltado ao trabalho enquanto estava hospitalizada. Um dos organizadores perguntou se havia algum interessado em participar de um comitê que a acompanhasse ao trabalho, de modo a garantir que o seu patrão não a despedisse. “Só precisamos de umas duas pessoas”, acrescentou. Porém, quase quinze mãos se levantaram. Todo mundo queria se juntar à sua companheira de sindicato.

Na minha loja, quando enfrentei uma ação disciplinar por ter violado a política de atendimento contra a qual nós estávamos nos organizando, exigi representação sindical na reunião disciplinar e meus colegas se prepararam para agir caso tentassem me despedir. A administração recuou. A reunião disciplinar nem chegou a acontecer. Quando uma trabalhadora da Whole Foods de um outro local foi suspensa após ter feito greve (devido a um incidente que ocorreu duas semanas antes da greve sem qualquer ação disciplinar à altura), começamos a nos organizar abertamente em defesa do seu emprego, e ela foi reintegrada e o seu salário restituído integralmente.

O pequeno sabor das vitórias conseguidas através da luta transformou o modo como as pessoas percebem a si mesmas e ao seu poder no trabalho. Isso alterou as nossas relações com os colegas e fortaleceu a crença de que muito mais é possível.

No entanto, alguns ativistas sindicais e de esquerda demonstraram preocupações crescentes sobre o potencial dos movimentos e as limitações da sua estratégia – em particular, talvez, em relação ao histórico da SEIU de estabelecer contratos de concessão, fechar acordos com os empregadores que diminuem os empregos disponíveis e, mais recentemente, nos conflitos em torno da questão da saúde na Califórnia. Outros estão preocupados com o fato dos trabalhadores não estarem no controle. Outros ainda expressam alguma apreensão relativa ao fato da FF15 constituir mais uma campanha de relações públicas do que uma verdadeira dinâmica organizadora.

O comprometimento e envolvimento da SEIU nessa campanha se revelaram indispensáveis em termos dos recursos organizacionais oferecidos, da proteção legal e dos serviços aos quais não teríamos acesso de outra forma, e da relação direta com o movimento sindical mais amplo e com os grupos comunitários. Por mais que a SEIU tenha cometido erros no passado – que são bem reais e que devem ser considerados –, eles merecem algum crédito por ter conduzido campanhas ousadas enquanto muitos outros sindicatos estão em retirada, ou se fingindo de mortos diante de leis de trabalho e outros tipos de campanhas e legislação antissindicais.

A direção da SEIU está apelando ao contínuo e escalado uso de greves, ocupações e ação direta como meios de resolução dos problemas dos trabalhadores. Eles estão encorajando os trabalhadores a se organizarem nos locais de trabalhos. Eles estão confrontando as questões do racismo e do assédio sexual. Isso é, sem dúvida, algo positivo, capaz de ajudar na revitalização e transformação do movimento dos trabalhadores.

Existe, certamente, um aspecto de relações públicas no movimento, mas fazer pouco caso da campanha por causa disso é muito cínico. A agressiva campanha midiática levou a luta a lugares onde os organizadores nunca haviam estado, inclusive áreas rurais e o Sul. E a campanha de mídia tornou a nossa luta, e muitas outras lutas em todo o país, bem conhecidas entre o grande público. A “campanha de relações públicas” não funciona de forma isolada, mas ligada a um projeto real de construção do movimento.

Trata-se de uma campanha gerida por trabalhadores e concebida e conduzida inteiramente pelos próprios trabalhadores? Ainda não. Mas trabalhadores estão se tornando dirigentes sindicais pela primeira vez graças à participação nesse movimento.

A SEIU abriu espaço em meio a um contexto de uma crise econômica que dura há cinco anos. Esse espaço pode ter possibilidades para além do imaginado pelos organizadores e pelos próprios trabalhadores. A campanha pode ir para além dos contornos ou do modelo com os quais o sindicato a iniciou. A FF15 é um movimento social e sindical ainda em forma embrionária; contém em si mesma o potencial de esclarecer as questões sobre luta de classes levantadas pelo Occupy. Poderá ajudar a reconectar as lutas nos locais de trabalho às comunidades. Poderá impulsionar em direção a um maior poder dos trabalhadores nas empresas, mas igualmente reivindicar uma maior proteção aos sindicatos e trabalhadores por parte das instituições de governo.

Os mais radicais estão numa posição que lhes permite construir esse movimento através da recriação da tradição do sindicalismo radical. Nós podemos – e já o fizemos – desempenhar um papel importante em moldar a campanha a partir da base – em Chicago, por exemplo, ajudamos a iniciar uma convenção de mulheres e concebemos e realizamos cursos de trabalhadores em torno da organização e da defesa face à retaliação dos patrões.

A esquerda precisa superar a mera conceituação de sindicatos como a SEIU como monolitos incapazes de mudança. Mudá-los é difícil, mas não impossível. A raiva contra as traições e a burocracia de um sindicalismo mais empresarial não deve nos levar a encarar os sindicatos como organizações completa e inevitavelmente divorciadas dos seus membros. Ao contrário, deve tornar ainda mais evidente a necessidade de organizar novos trabalhadores e de reconstruir os sindicatos de baixo para cima.

Apesar da enorme atenção que ganhou, esse movimento ainda se encontra na sua infância. Ele deve ser construído com base em fortes redes sociais no trabalho e nas comunidades. Quanto mais radicais se envolverem com o projeto, mais forte ele será. Nesse verão, nós entramos em greve por demandas bastante concretas. Mas nós entramos em greve também em defesa de dignidade, respeito e poder. O nosso movimento tem de se constituir de forma concreta, exigir o tangível e preparar o terreno para uma nova geração de militantes sindicais.

Porque a militância funciona. Os meus patrões não me assustam mais caso resolva entrar em greve de novo. Após a greve consegui um aumento – e mais de uma dúzia de colegas que me perguntam de que forma eles podem aderir ao sindicato.

Nota

[1] NT: Também chamada de “Geração Y”, compreende a geração seguinte à “Geração X”, ou seja, aqueles nascidos entre o início dos anos 80 e o início dos anos 2000.

Trish Kahle é pós-graduada em História na Universidade de Chicago e integrante do Comitê Organizador dos Trabalhadores de Chicago.

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