Pai Patrão (e a mítica do amor em família)

Cena do filme “Pai Patrão”. Fotografia: Reprodução/Cinemien

Lorena Holzmann

No calendário comercial anual, cada mês é dedicado a um segmento de “presenteáveis”, artifício para incrementar as vendas, acelerando o processo de circulação do capital. Agosto é dedicado ao “Dia dos Pais”. A mídia veicula peças publicitárias de incentivo ao consumo (como não lembrar do pai no seu dia, dando-lhe um presente?), centradas na figura do pai e do mito, recorrentemente alimentado, da inevitabilidade do amor paterno. O pai é a figura protetora, amorosa, dedicada, provedora (na realidade, cada vez mais essa função é partilhada com a mãe, quando não inteiramente delegada a ela, pela omissão masculina), para quem os filhos são a coisa mais importante em sua vida.

A realidade tem desfeito esse mito, continuamente. Tradicionalmente, os acontecimentos no interior da família foram considerados questões de foro privado, nos quais não se admitiam interferências externas, fossem de outras pessoas ou do Estado, através de leis. As condições culturais e legais têm mudado e a família passa a ficar exposta à publicização do que ocorre no seu interior, revelando situações dolorosas de conflitos e de ignomínias. Com isso, vai sendo desconstruído o mito da família como o espaço do amor, da proteção, do acolhimento, da solidariedade, e se revelam situações de maus tratos entre seus membros, de abusos e de exploração sexual e econômica, de falta de cuidado com os vulneráveis (crianças, idosos e doentes), de desamor.

Capa do filme "Pai Patrão" da versão lançada em formato DVD no Brasil. Fotografia: Divulgação/Versátil
Capa do filme “Pai Patrão” na versão em formato DVD lançada no Brasil. Fotografia: Divulgação/Versátil

Pai Patrão (Paolo e Vittorio Taviani, 1977), baseado no livro autobiográfico de Gavino Ledda, aborda algumas das dimensões da família tradicional no interior da Sardenha, ao final da II Guerra, e a luta de um de seus membros (o autor) para se desvencilhar do jugo paterno, autoritário e cruel.

O pai é a autoridade inconteste dentro da família. Quando retira da escola o filho pequeno, com aproximadamente 8 ou 9 anos, a fim de enviá-lo para o campo, onde deverá permanecer sozinho, cuidando do rebanho de ovelhas do pai, a mãe nada pode fazer para evitar o isolamento a que o filho está sendo submetido. Só lhe resta arranjar a mochila do garoto, com as coisas mais essenciais que deverá levar para o campo. O interesse do pai pelo ganho econômico se sobrepõe ao bem estar do filho. O garoto é cruelmente espancado pelo pai quando tenta fugir do campo e voltar para casa, é punido se houver perda de uma das ovelhas ou se deixar contaminar, com fezes do animal, o leite que ordenha.

A relação pai-filho é uma relação de exploração, o pai é o patrão impiedoso e opressor a quem o menino deve se submeter sem contestação.

Nessas condições, o garoto chega à idade adulta, analfabeto, sem nada conhecer da convivência humana, aprendendo apenas o que a natureza lhe ensina, construindo defesas contra imprevistos que pudessem atacar seu rebanho, exercendo com os animais o aprendizado de sua sexualidade.

O pai define seu destino, impondo-o contra a vontade do jovem. Mas, quando há opressão, há resistência, e esta está presente em toda a trajetória de vida do jovem, desde a infância, sempre em confronto com o autoritarismo de pai. Engajando-se no Exército, Gavino supera todas as dificuldades encontradas. Aprende a ler e a falar italiano (sua língua materna era o dialeto sardo), ingressa na universidade e vem a se tornar reconhecido escritor contemporâneo. Antes disso, ao retornar à casa paterna quando se desliga do exército e comunica sua intenção de ingressar na universidade, é hostilizado pelo pai, que recusa recebê-lo e lhe dar de comer, pois alega que em sua casa quem não trabalha não come. O conflito entre ambos é recorrente. A mãe é mera expectadora do arbítrio do pai e de suas determinações sobre os destino da família.

Gavino é um caso típico de trabalho infantil, explorado dentro da própria família. Não é um caso raro. No início da industrialização, na Inglaterra, os pais empregavam seus filhos menores nas fábricas. Quando se produziu uma legislação estabelecendo limites para esse emprego, os pais adulteravam a idade dos filhos a fim de que eles pudessem ser admitidos nas empresas. Essa prática se disseminou para outros países, na esteira da expansão da sociedade industrial. Ainda hoje o trabalho infantil é uma chaga no mundo inteiro, atingindo aproximadamente 168 milhões de crianças entre 5 e 14 anos, segundo o Relatório Mundial sobre Trabalho Infantil 2015, da Organização Internacional do Trabalho. A grande concentração desse fenômeno é em países pobres, mas sua ocorrência é registrada também em países desenvolvidos. Pobreza e desemprego são fatores alimentadores dessa chaga. Crianças e adolescentes são empregados em atividades penosas, insalubres e de alto risco, como nas carvoarias e em colheitas agrícolas, nas ruas das cidades, como engraxates e vendedores de pequenos artigos, e na economia subterrânea da informalidade, em ateliês que produzem para grandes empresas e grifes famosas, principalmente nos setores de confecção e calçados .

No Brasil, segundo os dados do censo de 2010, havia 3,4 milhões de crianças em condições laborais, o que representava um recuo em relação a cifras anteriores. Segundo a PNAD (Pesquisa nacional por Amostra de Domicílios) de 2007, 4,8 milhões de crianças entre 5 e 17 anos estavam trabalhando. Essa redução resulta de políticas públicas de enfrentamento ao trabalho infantil implantadas no nosso país, que fazem do Brasil o país com a maior taxa de redução de trabalho nessa faixa etária.
O trabalho infantil se mantém sustentado por interesses poderosos, que se valem dos ótimos resultados de sua exploração. Trabalhadores infantis e adolescentes recebem (quando recebem) salários menores, são mais facilmente manipulados e controlados, têm menor capacidade de articulação e de resistência coletiva contra a exploração a que são submetidos.

Mas, em determinados contextos, o trabalho infantil é promovido e defendido pela própria família. Na falta de oferta de alternativas educacionais, culturais e de lazer, de cuidados com os imaturos, os pais forçam o emprego de seus filhos menores, com o argumento de que assim é preferível a deixá-los na rua à mercê de más influências. O trabalho é, então, entendido como um princípio educativo e de disciplinamento, substituindo a escola. Mas é, também, uma forma de exploração, na medida em que os pequenos são obrigados a contribuir com a manutenção da família.

A história de Gavino é apenas a versão pessoal de uma tragédia ainda existente no mundo, submetendo crianças a trabalhos árduos, penosos, deixando-os fora da escola, roubando-lhes a infância e negando-lhes qualquer perspectiva de uma vida melhor. O personagem do filme/livro conseguiu superar essas adversidades, mas pode-se considera-lo a exceção de um regra impiedosa ainda vigente em larga escala.

Lorena Holzmann é Socióloga, Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/UFRGS.

Informações

Título: Pai Patrão
Ano: 1977
Duração: 114 min.
País: Itália
Diretores: Paolo Taviani, Vittorio Taviani
Elenco: Omero Antonutti, Saverio Marconi, Marcella Michelangeli

Mais informações: IMDb, Wikipédia (português).

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