Os trabalhadores e os 25 anos da Constituição Social

Embora o mundo já estivesse assombrado pelas ideias neoliberais, o Brasil produzia um documento só possível em razão do papel que os trabalhadores tiveram.

Jorge Luiz Souto Maior

Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 12/10/2013

Muito se tem falado a respeito dos 25 (vinte e cinco) anos da Constituição, mas pouca relevância tem sido dada ao papel que os trabalhadores tiveram no processo de redemocratização do país, que levou à Constituinte.

Na época, embora o mundo já estivesse assombrado pelas ideias neoliberais, no Brasil era produzido um dos documentos, como hoje ainda se considera, mais relevantes na proteção dos direitos sociais, e isso só foi possível em razão do papel que os trabalhadores tiveram na superação da ditadura militar.

Em 1979, ocorreram, segundo o Ministério do Trabalho, 429 greves. Uma greve desencadeada no início de 1979, organizada pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, que tinha como presidente Luís Inácio da Silva (o Lula), gerou, em março daquele ano, uma assembleia da qual participaram cerca de 60 mil trabalhadores, que, em razão do número, foram conduzidos ao Estádio Vila Euclides, em São Bernardo.

O movimento dos trabalhadores na região do ABC chama a atenção da sociedade, como revela reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo, em 24 de março de 1979, com o título “ABC Reage à Intervenção”, pois, afinal, era um movimento social que, pela primeira vez, estava enfrentando, de forma organizada, as estruturas do Estado totalitário e havia no seio da sociedade o desejo do fim da ditadura.

De tais movimentos, que cresceram diante da repressão, adveio notável ressurgimento do espírito democrático que não se limitou à realidade do ABC ou mesmo dos metalúrgicos.

O movimento sindical perde força no início dos anos 80, mas a partir de 1983 o número de greves volta a crescer consideravelmente, atingindo níveis inéditos na história do país. As greves não apenas aumentam como diversificam seu modo de atuação, destacando-se os movimentos de caráter nacional, que conferem uma elevação da conotação política das demandas dos trabalhadores.

Como a reivindicação dos trabalhadores, feita de forma organizada por meio de greves, expunha, abertamente, as falácias do modelo econômico e as repressões do Estado, produziu-se como efeito que o movimento dos trabalhadores foi posto “no centro do debate político nacional”.

Desse modo, a reivindicação dos trabalhadores se encaixa, perfeitamente, nos desejos de toda a nação, gerando uma grande união entre os trabalhadores e as demais classes sociais do país. Há, por assim dizer, a formação de uma solidariedade que transborda o limite da classe trabalhadora.

A causa dos trabalhadores, que se identifica aos anseios da sociedade com relação à liberdade de expressão, reprimida desde 64, passa a ser retratada na música, no teatro e no cinema, ampliando a vinculação de artistas e intelectuais com a questão.

As organizações dos trabalhadores, já integradas do Partido dos Trabalhadores, fundado em 1980, e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), criada em 1983, participam, então, ativamente, das campanhas pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, iniciada em 1978, com a formação dos Comitês Brasileiros de Anistia (CBAs), que têm como precursor o primeiro Congresso realizado, em 1978, no TUCA (Teatro da PUC-SP), e das Diretas-Já, a partir de 1983.

A relevância do movimento trabalhista no contexto sócio-político da época é atestada pelo fato de que fora, exatamente, o recém-formado Partido dos Trabalhadores que organizou, em 27 de novembro de 1983, o primeiro grande comício em defesa da eleição direta para Presidente da República. O ato ocorreu na Praça Charles Miller, em frente ao estádio do Pacaembu, em São Paulo, e reuniu cerca de 15 mil pessoas.

No campo as tensões sociais também eram intensas e até mesmo violentas, sobretudo na região limítrofe entre Maranhão, Pará e Tocantins, conhecida como Bico do Papagaio. Foram assassinados, em maio de 1986, o padre Josimo Morais Tavares, coordenador da Pastoral da Terra e, em dezembro de 1988, o líder sindical e ecologista, Chico Mendes.

Dentro desse contexto, resumidamente apresentado, instalou-se, a partir de 1º. de fevereiro de 1987, a Assembleia Nacional Constituinte.

Ao longo dos trabalhos, a Assembleia Constituinte esteve aberta a propostas de emendas populares. Para tanto, bastaria que as sugestões fossem encaminhadas por intermédio de associações civis e subscritas por, no mínimo, 30 mil assinaturas que atestassem o apoio popular à proposta. Até o encerramento dos trabalhos, a Assembleia Constituinte recebeu mais de 120 propostas de emendas constitucionais nas mais diversas áreas, reunindo cerca de 12 milhões de assinaturas.

A Assembleia Nacional Constituinte, sob a Presidência de Ulysses Guimarães, eleito para tal função pelos constituintes em 02 de fevereiro de 1987, foi posta diante de grandes desafios, sendo certo que os trabalhadores se apresentavam como classe social em evidência, cujos interesses não podiam ser desconsiderados.

Não havia, portanto, quem se opusesse a ampliar as garantias dos trabalhadores. A única resistência se dava em termos de até quanto essas garantias deviam ser ampliadas. Neste sentido, aliás, foi que se ativou o grupo político denominado “centrão”, apoiado por empresários e proprietários rurais (estes representados pela UDR – União Democrática Ruralista, organização ultraconservadora liderada por Ronaldo Caiado).

O resultado, de todo modo, foi a construção de uma Constituição que avançou bastante em valores sociais, mesmo que em alguns aspectos pudesse ter avançado muito mais. A valorização social do trabalho é inegável.

Com efeito, no título dos Princípios Fundamentais, assegurou-se a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho ao lado da livre iniciativa (art. 1º.).

No artigo 3º. restaram consignados como objetivos fundamentais da República: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O artigo 4º estabeleceu que a prevalência dos direitos humanos deve reger a República Federativa do Brasil em suas relações internacionais.

Mesmo no título dos clássicos “direitos civis”, a preocupação com a agenda social esta evidenciada. O inciso XXII, do artigo 5º., garante o direito de propriedade, mas, logo na sequência, o inciso XXIII do mesmo artigo estabelece que a propriedade deve atender a sua função social.

O artigo 184 autorizou à União “desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social”. O artigo 186, em complemento, esclareceu: “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

É inegável que a Constituição brasileira preservou as bases do modelo capitalista: direito de propriedade, livre iniciativa e direitos individuais. No entanto, não o fez a partir de uma ordem jurídica liberal. O sistema jurídico constitucional fixou como parâmetro a efetivação de valores que considera essenciais para a formação de um “desenvolvimento sustentável”, ou, em outras palavras, um capitalismo socialmente responsável a partir dos postulados do Direito Social.

O artigo 170, que regula a ordem econômica nacional, não deixa margem para dúvida quanto a isso, quando estabelece que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados, dentre outros, os princípios da função social da propriedade; da redução das desigualdades regionais e sociais; e da busca do pleno emprego.

Lembre-se, ainda, que o direito de greve, essencial à luta dos trabalhadores, foi assegurado de forma ampla, sendo preconizado que compete aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender (art. 9º.).

O capitalismo nacional, assim, juridicamente, está atrelado ao desenvolvimento social, não se podendo, pois, querer encontrar no próprio direito uma autorização para que o descumprimento das regras constitucionalmente fixadas no âmbito dos Direitos Sociais seja utilizado com estratégia econômica. Decididamente, a ordem jurídica não confere às empresas um direito para que, com o exercício do poder econômico, imponham aos trabalhadores uma redução das garantias sociais constitucionalmente fixadas. Desse modo, a negociação coletiva, que é reconhecida pela Constituição, não se presta à mera diminuição de direitos dos trabalhadores e à reivindicação de redução de custos e retirada de direitos – que se vislumbra com a ampliação da terceirização – sob o falacioso argumento de que isso serviria para alavancar a economia, não possui amparo constitucional.

Por fim, cumpre lembrar que mesmo uma reforma constitucional não poderia caminhar no sentido da derrocada das conquistas históricas dos trabalhadores, vez que as cláusulas pétreas da Constituição não podem ser alteradas, sendo certo que nelas se incluem os direitos fundamentais, dentre os quais se encontram os direitos sociais (arts. 6º. a 9º.), pois, conforme bem pontua Paulo Bonavides, “só uma hermenêutica constitucional dos direitos fundamentais em harmonia com os postulados do Estado Social e democrático de direito pode iluminar e guiar a reflexão do jurista para a resposta alternativa acima esboçada, que tem por si a base de legitimidade haurida na tábua dos princípios gravados na própria Constituição (arts. 1º., 3º. e 170) e que, conforme vimos, fazem irrecusavelmente inconstitucional toda inteligência restritiva da locução jurídica ‘direitos e garantias individuais’ (art. 60, 4º., IV), a qual não pode, assim, servir de argumento nem de esteio à exclusão dos direitos sociais”.

Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho, titular da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí (SP), livre-docente em Direito do Trabalho pela USP e membro da Associação Juízes para a Democracia.

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