Acabou a ilusão de bons salários e ambiente de trabalho moderno. Possível saída: cooperação entre precarizados por outros horizontes tecnológicos.
Jaris Alvorada
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 30/03/2023
Nos últimos anos, convencionou-se dizer que a programação seria uma garantia de carreira com bons pagamentos, benefícios diversos e ambientes de trabalho modernos e agradáveis. Patrocinados pelos grandes capitalistas a procura de mão de obra qualificada, seus veículos de imprensa iniciaram campanhas pesadas de propaganda, chamando a massa de trabalhadores a participar dessa corrida do ouro, vez e outra insistindo na falta de mão de obra que não poderia ser facilmente corrigida, e que dava garantia da permanência e da valorização destes profissionais. Este movimento ganhou ainda mais gás durante a pandemia de covid, quando faltaram opções de emprego digno compatível com o isolamento social, levando uma massa de trabalhadores, deslocados de suas carreiras, a buscar na programação a solução para o desemprego. Ao fim da pandemia, porém, as cartas foram à mesa e, para variar, todos estavam sendo enganados. Todos exceto aqueles que sabiam muito bem o que estavam fazendo: as Big Techs.
A transferência do valor do trabalho de quem trabalha para quem parasita o trabalho dos outros é uma constante, uma necessidade do sistema capitalista, e ninguém está a salvo. Não podemos nutrir as ilusões de que as demissões em massa são consequência de um “excesso de contratações” que teria ocorrido mediante o otimismo do mercado com o aumento do tempo de tela, ou seja, do uso da internet, correspondendo com o curtoprazismo crônico da lógica capitalista. Não camaradas, não são somente os líderes do PCCh que pensam a longo prazo. É ingenuidade pensar que os especuladores, que por natureza trabalham na manipulação de mercados e expectativas, acreditavam que a pandemia duraria para sempre. As demissões são somente o passo seguinte do processo de criação de reserva de mão de obra, o que possibilita a transferência do valor do trabalho para os acionistas das grandes empresas de tecnologia.
No momento em que escrevo este artigo, demissões em massa já deixaram 280 mil de desempregados, e a contagem segue. Peguemos a Google como um exemplo. Recentemente, 12 mil funcionários foram demitidos sumariamente pela gigante da tecnologia que, logo após, recomprou $70 bilhões em ações, numa operação de entrega de lucro aos seus acionistas. Valor este suficiente para pagar os salários dos 12 mil trabalhadores demitidos. Por 27 anos. Este é o modelo neoliberal em estado terminal.
O resultado prático dessas demissões, porém, pode ainda representar uma nova fase para os trabalhadores. O ciclo de concentração de lucro das plataformas digitais passa pela transferência do valor de uso destas plataformas, primeiro dos seus usuários comuns para seus usuários comerciais e, depois, dos usuários comerciais para os acionistas que bancaram a geração desse valor, através da exploração dos trabalhadores digitais. Este processo será descrito em mais detalhes no meu ensaio “Aos trabalhadores digitais”, de publicação futura. No momento, entendamos apenas isso: as plataformas podem transferir livremente o valor de uso (aquilo que faz elas serem boas de usar e, portanto, lucrativas) para os acionistas, num processo que empobrece a experiência tanto para quem consome essas plataformas quanto para quem lucra através dela (como, por exemplo, quem anuncia seu serviço no Google ou vende seu livro na Amazon). Concluída a construção da infraestrutura digital que gera esse valor de uso, a sua transferência para os acionistas ocorre de diversas formas, e uma delas é através da conversão em dinheiro e transferência direta, como descrevi no parágrafo anterior. Outra forma se dá na liquidação da mão de obra que realizou essa construção, que é o objeto deste artigo.
O pulo do gato, porém, é que neste processo de liquidação, ou seja, na extinção destes postos de trabalho de bons salários e benefícios, essas enxugam a demanda dos médios e dos pequenos por essa mesma mão de obra. Ou seja, quem antes não conseguia competir por esses trabalhadores, seja com salários e/ou benefícios, agora ganha margem para disputar sua contratação. Trabalhadores precarizados são muito mais baratos. A incapacidade das camadas médias das classes possuidoras de suprir sua própria demanda, que é aquilo que as leva a depender das Big Techs, gera uma fadiga constante pela adequação de seus processos de trabalho que tem que ser moldados aos limites e aos padrões permitidos pelos serviços que contratam. Como exemplo simples, cito as comissões por venda que o MercadoLivre, a Amazon e outras plataformas de marketplace cobram dos vendedores para que tenham acesso ao seu corpo de clientes fidelizados (uma fidelização que é fruto de um processo de monopólio que escapa o objeto deste artigo). Desta maneira, não será surpresa quando houver o choque entre os médios e pequenos que, munidos da mão de obra especializada, descartada pelos grandes, poderão agora apostar no desenvolvimento de soluções próprias para seus negócios, podendo até mesmo formar uma aliança entre a pequena burguesia e os trabalhadores digitais. Porém, não precisa ser assim. Os trabalhadores digitais não precisam ir de um senhor a outro. Há a alternativa de serem senhores de si.
Para a categoria, fica o recado: os meios de produção necessários para a execução do seu trabalho, em especial após o advento do home office, já estão parcialmente em suas mãos, e o principal obstáculo para a formação de cooperativas sólidas, capazes de competir contra as Big Techs, são as próprias Big Techs e suas táticas monopolistas de estrangulamento e compra predatória de empresas menores. É neste momento, quando a realidade nos mostra que ninguém está seguro, que temos mais do que nunca de nos organizar neste sentido, combatendo a ideologia liberal que atomiza e divide os trabalhadores da tecnologia, com esforços pela geração da consciência de classe. É nesse processo, no qual a categoria será desfigurada pela precarização, que deve haver a organização tanto de sindicatos quanto de associações para remodelar a realidade dos mercados hoje controlados pelos grandes capitalistas. Este é o momento do surgimento de alternativas aos aplicativos de serviços e de entregas, alternativas que garantam a dignidade para as categorias camaradas: programadores, designers, engenheiros e arquitetos, entregadores, técnicos, juristas do direito digital, divulgadores. A organização de categorias de trabalho relacionadas é o que permite os avanços de produtividade impossíveis dentro da anarquia de mercado capitalista, e pode ser a base dos instrumentos revolucionários que serão necessários ao projeto da revolução brasileira.
Mais do que somente escapar do domínio neofeudal das Big Techs, que se mostram capazes de executar ações coordenadas contra a classe trabalhadora sem dificuldade, para cair na mão da pequena-burguesia e seu catálogo de limitações históricas, é necessário que se fale de emancipação, de colaboração. Esta é a hora dos trabalhadores digitais se entenderem trabalhadores, o que só será possível com os esforços concentrados da militância viva. É urgente a todos os partidos de horizonte revolucionário que este momento não seja desperdiçado. Organizem-se. Remem, a corrente está a nosso favor.
Jaris Alvorada é trabalhador da categoria dos profissionais de processamento de dados.