Íntegra da intervenção feita pelo filósofo francês, no dia 16 de janeiro, diante dos trabalhadores ferroviários em greve na estação Vaugirard, em Paris.
Jacques Rancière
Fonte: Carta Maior, com Le Monde
Tradução: Clarisse Meireles
Data original da publicação: 28/01/2020
Se estou aqui hoje, é evidentemente para declarar total apoio a uma luta exemplar, mas também para dizer em algumas palavras por que ela me parece exemplar.
Passei alguns anos da minha vida estudando a história do movimento operário, e isso me mostrou uma coisa essencial: o que chamamos de conquistas sociais são muito mais do que os benefícios obtidos por grupos particulares, são a organização de um mundo coletivo regido pela solidariedade.
O que é este regime especial (de aposentadoria) dos ferroviários que nos é apresentado como um privilégio arcaico? Era um elemento da organização de um mundo comum, onde as coisas essenciais para a vida de todos deviam ser propriedade de todos. As ferrovias pertenciam à coletividade. E essa propriedade coletiva era gerida também por um grupo de trabalhadores que se sentiam comprometidos com essa comunidade; trabalhadores para quem a aposentadoria de todos era produto da solidariedade de um coletivo concreto.
Demolir tijolo a tijolo
É essa realidade concreta do coletivo solidário que os poderosos de nosso mundo não mais aceitam. É esta construção que eles pretendem demolir tijolo a tijolo. O que eles querem é que o fim da propriedade coletiva, dos coletivos de trabalhadores e da solidariedade a partir da base. Querem que haja apenas indivíduos que possuem sua força de trabalho, um pequeno capital que se pode alugar aos capitais maiores. Indivíduos que, ao se vender dia após dia, acumulem pontos para si e somente para si, enquanto aguardam um futuro em que as aposentadorias não serão mais baseadas no trabalho, mas no capital, isto é, na exploração e na autoexploração.
É por isso que a reforma da previdência é tão decisiva para eles, muito além da questão concreta do financiamento. É uma questão de princípio. A aposentadoria representa como o tempo de trabalho produz tempo de vida e como cada um de nós está ligado a um mundo coletivo. A questão toda é saber o que gera esse elo: a solidariedade ou o interesse privado. Demolir o sistema de aposentadorias fundado na luta coletiva e na organização solidária seria uma vitória decisiva para nossos líderes. Já puseram todas as suas forças nessa batalha duas vezes – e perderam. É preciso fazer tudo hoje para que percam uma terceira vez e abandonem a batalha definitivamente.
Jacques Rancière é um filósofo francês, professor da European Graduate School de Saas-Fee e professor emérito da Universidade Paris VIII.