Monbiot busca as origens do sistema na Ilha da Madeira, no século 15. E mostra: desde que trabalho e natureza foram reduzidos a mercadoria, acumular capital e livrá-lo de controles é a regra, sem a qual o jogo não pode prosseguir.
George Monbiot
Fonte: Outras Palavras, com The Guardian
Tradução: Gabriela Leite
Data original da publicação: 06/10/2021
Sempre que há um vazamento de documentos de ilhas remotas e jurisdições obscuras onde pessoas ricas escondem seu dinheiro, como o lançamento desta semana dos Pandora Papers, nos perguntamos como pode ser possível que essas coisas aconteçam. Como viemos parar em um sistema global que permite que grandes riquezas sejam transferidas para o exterior, sem impostos e ocultas ao público? Políticos condenam o feito como “a face inaceitável do capitalismo”. Mas não. É essa a cara do capitalismo.
O capitalismo provavelmente nasceu em uma ilha remota. Algumas décadas depois que os portugueses colonizaram a Ilha da Madeira em 1420, eles desenvolveram um sistema que diferia em alguns aspectos de tudo o que existia até aquele momento. Ao derrubar as florestas para retirar a madeira que deu o nome à ilha, criaram, neste espaço desabitado, uma lousa em branco – uma terra nullius – onde uma nova economia poderia ser construída. Financiados por banqueiros em Gênova e Flandres, transportaram escravos da África para plantar e produzir açúcar. Desenvolveram uma economia na qual a terra, o trabalho e o dinheiro perderam seu significado social anterior e se tornaram mercadorias negociáveis.
Como aponta o geógrafo Jason Moore na revista Review, uma pequena quantidade de capital poderia ser usada, nessas circunstâncias, para abocanhar uma grande quantidade de riqueza natural. No rico solo madeirense, utilizando a abundante madeira como combustível, o trabalho escravo alcançou uma produtividade antes inimaginável. Na década de 1470, essa pequena ilha se tornou o maior produtor mundial de açúcar.
A economia da Madeira tinha também outra característica que a distinguia das anteriores: a espantosa rapidez com que explorava as riquezas naturais da ilha. A produção de açúcar atingiu o pico em 1506. Em 1525, havia caído quase 80%. A principal razão, Moore acredita, foi a exaustão de fontes acessíveis de madeira: a Ilha ficou sem madeira.
Utilizava-se 60kg de madeira para refinar 1kg de açúcar. Como era necessário cortar madeira de partes cada vez mais íngremes e remotas da ilha, passou a ser necessário mais trabalho escravo para produzir a mesma quantidade de açúcar. Em outras palavras, a produtividade do trabalho entrou em colapso, caindo quase quatro vezes em 20 anos. Quase ao mesmo tempo, o desmatamento da floresta levou várias espécies endêmicas à extinção.
No que viria a se tornar o clássico ciclo de expansão-queda-abandono do capitalismo, os portugueses mudaram sua capital para novas fronteiras, estabelecendo plantações de açúcar primeiro em São Tomé, depois no Brasil, depois no Caribe, em cada caso esgotando os recursos antes de seguir em frente. Como diz Moore, a apreensão, o esgotamento e o abandono parcial de novas fronteiras geográficas são centrais para o modelo de acumulação que chamamos de capitalismo. Crises ecológicas e de produtividade como a da Madeira não são consequências perversas do sistema. Eles são o sistema.
A Madeira rapidamente transformou-se para produzir outras commodities, principalmente vinho. Não deveria ser surpresa que a ilha esteja sendo acusada hoje de funcionar como um paraíso fiscal, e tenha sido mencionada no relatório desta semana dos Pandora Papers. O que mais uma ilha ecologicamente exaurida, cuja economia dependia de saques, poderia fazer?
Em Jane Eyre , publicado em 1847, Charlotte Brontë tenta descontaminar a fortuna inesperada de Jane. Ela herdou o dinheiro do tio, “Sr. Eyre da Madeira”; mas, St John Rivers a informa, agora está investido em “fundos ingleses”. Isso também tem o efeito de distanciar seu capital do que pertencia a Edward Rochester, manchado por sua associação com outra ilha açucareira exaurida, a Jamaica.
Mas o que foram e são os fundos ingleses? A Inglaterra, em 1847, estava no centro de um império cujos esforços capitalistas há muito haviam eclipsarado os portugueses. Por três séculos, ela havia sistematicamente saqueado outras nações: capturando pessoas da África e forçando-as a trabalhar no Caribe e na América do Norte, drenando uma riqueza impressionante da Índia e extraindo os materiais de que precisava para impulsionar sua Revolução Industrial por meio de um sistema de trabalho contratado, muitas vezes dificilmente distinguível da escravidão total. Quando Jane Eyre foi publicado, a Grã-Bretanha havia concluído recentemente sua primeira guerra do ópio contra a China.
O financiamento desse sistema de roubo mundial exigiu novas redes bancárias. Isso lançou as bases para o sistema financeiro offshore, cujas realidades terríveis foram novamente expostas esta semana. Os “fundos ingleses” eram simplesmente um destino para o dinheiro obtido pela economia colonial de consumo mundial chamada capitalismo.
Na recuperação do dinheiro de Jane, vemos o abismo entre a realidade do sistema e a forma como ele se apresenta. Quase desde o início do capitalismo, foram feitas tentativas para higienizá-lo. Os primeiros colonos da Ilha da Madeira criaram um mito de origem, que afirmava que a ilha havia sido consumida por um incêndio florestal que durou sete anos, e destruiu grande parte da floresta. Mas não houve tal desastre natural. Os incêndios foram provocados por pessoas. A frente de fogo a que chamamos capitalismo ardeu em toda a Madeira antes que as faíscas saltassem e iluminassem outras partes do mundo.
A falsa história do capitalismo foi formalizada em 1689 por John Locke, em seu Segundo Tratado de Governo. “No início, o mundo todo era a América”, ele nos diz, uma lousa em branco sem pessoas, cuja riqueza estava simplesmente ali, pronta para ser tomada. Mas, ao contrário da Madeira, a América era habitada e os indígenas tiveram de ser mortos ou escravizados para que fosse criada a terra nullius a que Locke se referia. O direito ao mundo, afirmava ele, foi estabelecido por meio do trabalho árduo: quando um homem “mistura seu trabalho” com as riquezas naturais, “torna-o assim sua propriedade”. Mas aqueles que reivindicaram grandes quantidades de riqueza natural não misturaram seu próprio trabalho com ela, mas o de seus escravos. O conto de fadas que o capitalismo conta sobre si mesmo – você fica rico por meio de trabalho árduo e empreendedorismo, agregando valor à riqueza natural – é o maior golpe de propaganda da história humana.
Como Laleh Khalili explica na revista London Review of Books, a economia colonial extrativista nunca terminou. Ela continua por meio do trabalho conjunto de comerciantes de commodities com cleptocratas e oligarcas, capturando recursos de nações pobres com a ajuda de instrumentos inteligentes como “preços de transferência”. Persiste com o uso de paraísos fiscais offshore e regimes de sigilo por elites corruptas, que drenam a riqueza de sua nação e a canalizam para “fundos ingleses”, cuja verdadeira propriedade está escondida por empresas de fachada.
O incêndio ainda se espalha em todo o mundo, queimando pessoas e ecossistemas. Embora o dinheiro que o incendeia possa estar escondido, é possível vê-lo incinerando todos os territórios que ainda possuem riquezas naturais inexploradas: a Amazônia, oeste da África, Papua Ocidental. Conforme o capital fica sem planeta para queimar, ele volta sua atenção para o fundo do oceano e começa a especular sobre a mudança para o espaço.
Os desastres ecológicos locais que começaram na Ilha da Madeira estão transferindo-se para o âmbito global. Somos recrutados tanto como consumidores quanto consumidos, queimando nossos sistemas de suporte de vida em nome dos oligarcas que mantêm seu dinheiro e moralidade no exterior.
Quando vemos os mesmos fenômenos acontecendo em lugares a milhares de quilômetros de distância um do outro, devemos parar de tratá-los como fenômenos isolados e reconhecer o padrão. Toda a conversa sobre “domar” e “reformar” o capitalismo gira em torno de uma ideia equivocada do que ele é. Capitalismo é o que vemos nos Pandora Papers.
George Monbiot é jornalista, escritor, acadêmico e ambientalista do Reino Unido.