Brasil é o 2º maior exportador de alimentos, mas a fome avança no país. Bancos concentram riquezas obscenas enquanto os mais pobres pagam mais impostos, proporcionalmente. Estado desmonta Saúde e Educação, mas paga bilhões ao rentismo.
Marcio Pochmann
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 06/12/2021
Em plena terceira década do século XXI, os dados mostram que, no Brasil, o consumo dos ricos voltou a ser cada vez mais deslocado da produção nacional, pois provém do exterior e é financiado pelo saldo comercial dependente das exportações agrominerais. São as contradições perversas que afloram no Brasil. Com o mercado interno associado crescentemente à demanda dos não ricos brasileiros, em geral, emerge a contradição de o país ser simultaneamente o terceiro maior produtor e o segundo maior exportador de alimentos do mundo, enquanto a fome se difunde e a inflação dos alimentos se torna insuportável à população.
Com o avanço do modelo de substituição da produção nacional por importados, o país exporta empregos. Ao mesmo tempo, registra em 2021 quase 60 mil brasileiros detidos na tentativa ilegal de cruzar a fronteira do México para Estados Unidos, um recorde.
Após o grande esforço nacional de elevação da escolaridade, com a ampliação do Ensino Médio e Superior, a imigração representa uma das poucas alternativas legais de ascensão social, quando o país parece cancelar o futuro promissor, sobretudo aos que mais estudam. A chamada fuga de cérebro foi acelerada.
Especialmente entre os brasileiros qualificados, como a nata dos profissionais da ciência do Brasil, aumentou consideravelmente a busca por outros países que ofereçam as oportunidades que nacionalmente deixaram de existir. Somente no ano de 2020, por exemplo, o país registrou o maior número de profissionais que buscaram legalmente vistos nos Estados Unidos.
Outra contradição decorre da continuidade dos lucros dos bancos, ao mesmo tempo em que aumenta significativamente o endividamento das famílias no Brasil. Se considerarmos apenas os cinco maiores bancos em operação no país (Itaú, Bradesco, Santander, Banco do Brasil e Caixa), veremos que eles concentram uma riqueza medida pelo valor do seu patrimônio que supera o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, ao passo que 75% das famílias que se encontravam endividadas em 2021 (eram 46% em 2014).
Além disso, os pobres seguem pagando mais imposto do que os ricos (proporcionalmente ao que ganham), resultado do sistema tributário atual que possibilita que quem mais dinheiro ganha, menos imposto precisa pagar. Enquanto o Estado é implacável com os pobres na cobrança dos impostos, o gasto público direcionado ao conjunto da população está congelado por 20 anos, salvo o pagamento dos serviços da dívida pública.
No período de 2011 a 2021, por exemplo, o pagamento dos juros da dívida pública foi tão elevado que a sua somatória equivaleu a quase 2/3 do PIB anual de 2020. Certamente uma decisão para os ricos manterem valorizados seus estoques de riqueza, mesmo com a economia nacional se mantendo estagnada.
Com a privatização das empresas estatais, o preço cobrado pela oferta de bens e serviços subiu, sem que, em geral, a qualidade tenha melhorado, tampouco os investimentos tenham sido plenamente realizados. Do conjunto de tarifas de água cobradas no país, as principais pertencem às empresas privadas, assim como nos serviços de telecomunicações, especialmente os de telefonia, e no pagamento dos pedágios, ambos entre os mais caros do mundo.
Dessa forma, a mercantilização dos serviços públicos possibilitou que atuais donos de empresas estatais privatizadas passassem rapidamente a figurar entre as personalidades mais ricas do país, conforme revela o ranking dos bilionários brasileiros. Além disso, serviços como educação e saúde, por exemplo, têm passado por processos de concentração (fusões e aquisições), cujos donos se tornam muito ricos, detentores de empresas situadas entre as maiores do mundo.
Essas, entre outras contradições do atual funcionamento do capitalismo no Brasil, revelam o quanto a governação do país foi transformada na viabilização dos grandes negócios, garantindo aos ricos e poderosos privilégios que excluem a maior parte da população. O cancelamento de futuro parece ser a resposta aos brasileiros cada vez mais prisioneiros da convivência com a emergência da sobrevivência e violência diárias.
Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti.