É possível ampliar os serviços públicos e garantir renda emergencial: basta tributar os super-ricos.
Dão Real Pereira dos Santos
Fonte: IJF
Data original da publicação: 26/02/2021
Quando você está passando por dificuldades, sempre aparecem oportunistas mal intencionados tentando obter vantagens, oferecendo empréstimos com juros extorsivos, comprando seu carro ou sua casa por preços aviltados, ou oferecendo ajuda em troca de algum favorecimento ilícito. As dificuldades de alguns são oportunidades para muitos espertalhões. Alguns deles até colaboram para aumentar as suas dificuldades.
Essa constatação pode ser útil para a gente compreender como as crises são normalmente aproveitadas por oportunistas, sempre atentos às oportunidades, para promover o desmonte do Estado social, a redução dos direitos e a privatização das empresas públicas. A denominada PEC emergencial é um bom exemplo deste oportunismo. Aproveitando-se do clamor popular pela retomada do pagamento do auxílio emergencial, o relator incluiu proposta de desvinculação dos investimentos para Saúde e Educação.
Mas, o que isso significa? Os estados são obrigados a investir 12% da arrecadação e os municípios, 15%, em atividades de Saúde. Na Educação, o piso, tanto para estados como municípios, é de 25%. A União teria que investir 15% da receita corrente líquida na Saúde e 18% da arrecadação dos impostos na Educação. Revogar a vinculação é acabar com a obrigação de investimento mínimo, ou seja, pode investir menos do que este percentual.
Não é demais lembrar que o projeto original de congelamento dos gastos primários (PEC 55, de 2016), que se transformou na Emenda Constitucional 95/2016, já revogava por 20 anos a vinculação dos recursos da União para Saúde e Educação, o que só foi amenizado por uma emenda parlamentar que garantiu sua manutenção, pelo menos no ano de 2017, sendo que, a partir daí, esses investimentos passaram a ser corrigidos pelo IPCA.
Em primeiro lugar, precisamos ter em conta que não há nenhuma razão para revogar a vinculação constitucional se a intenção não for, de fato, a de reduzir os investimentos em Saúde e Educação. Então, que isso fique muito claro, o que se quer, realmente, é cortar investimentos na Saúde e na Educação, usando agora, por conveniência, a necessidade de garantir o pagamento do auxílio emergencial como justificativa.
Condicionar o pagamento do auxílio emergencial ao corte de investimentos na Saúde e Educação é, no mínimo, uma proposta maldosa, pois seriam os próprios beneficiários que estariam trocando serviços essenciais por renda. A população que mais precisa do auxílio emergencial é justamente a que mais precisa de saúde e educação públicas.
Por outro lado, todos sabemos que é perfeitamente possível manter ou ampliar os serviços públicos e, também, garantir renda emergencial. Basta TRIBUTAR OS SUPER-RICOS. Somente algumas medidas legislativas já seriam suficientes para ampliar a arrecadação em quase R$ 300 bilhões, atingindo apenas os 0,3% mais ricos da população e reduzindo a tributação para os mais pobres e para as pequenas empresas.
O efeito da revogação dos pisos constitucionais para investimentos em Saúde e Educação não é difícil de prever. Não é novidade para ninguém a intenção da área econômica do governo de abrir estas áreas de atuação do Estado para o setor privado. Sem a obrigação de investimentos mínimos nestas áreas, estarão escancaradas as oportunidades para terceirizações, parcerias público/privadas ou mesmo privatização dessas políticas públicas.
No limite, a renda emergencial poderá até ser convertida em vouchers, defendidos por alguns como forma de atender as populações mais pobres, para serem utilizados para pagamentos de planos de saúde ou na compra de vagas em alguma escola privada.
Assim como o déficit fiscal, causado pela queda na atividade econômica em 2016, foi a justificativa utilizada para congelar os gastos e reverter o processo de construção do Estado social, agora a renda emergencial passou a ser o pretexto para viabilizar o que já vem sendo tentado pelo menos desde a EC95/2016.
A solução para a crise está no fortalecimento do Estado e do serviço público e não no seu sucateamento. Os gastos são necessários para salvar vidas, para reativar a economia e para reduzir as desigualdades sociais. A necessidade de ampliação dos gastos exige a revogação das travas impostas pela EC95/2016 e não o contrário. Portanto, usar a crise para fragilizar ainda mais as políticas sociais, para instabilizar as instituições e enfraquecer o serviço público e para privatizar as políticas públicas, justamente neste momento de pandemia em que a sociedade mais precisa da proteção do Estado, é realmente coisa de oportunistas que não dormem, e que, enquanto estão todos preocupados em sobreviver, vão “passando a boiada”.
Dão Real Pereira dos Santos é vice-presidente do Instituto Justiça Fiscal e membro do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia.