Os operários fazem cinema: a experiência de uma cooperativa francesa no início do século XX

Cartaz de divulgação do “Cinema do Povo”. Imagem: Acervo do autor

No início do século XX, militantes comunistas e anarquistas criaram uma cooperativa chamada Cinema do Povo. Embora tenha durado pouco tempo, suas experiências mostraram que era possível apropriar-se da linguagem cinematográfica e ir além do cinema comercial.   

Luiz Felipe Cezar Mundim

Fonte: Café História
Data original da publicação: 16/12/2019

“Deve-se a todo custo parar o mal que se faz aparente”.[1] As primeiras palavras do sindicalista revolucionário Yves Bidamant ao subir no palco do salão da Casa dos Sindicalizados, casa que reunia atividades diversas de vários sindicatos na Rua Cambronne, em Paris, na noite do dia 1o de novembro de 1913, resumem bem o juízo que o movimento operário francês fazia sobre o cinema, e a devida reação que deveriam ter frente ao mal que se dissimulava na tela – para Bidamant, o cinema que havia se consolidado na França naqueles primeiros anos do século XX era demasiadamente burguês e dominado pela propaganda do governo.

As 200 pessoas que estavam no salão da Casa dos Sindicalizados tinham se reunido naquela noite para celebrar um outro tipo de  cinema, alternativo a esse modelo A divulgação da festa previa a exibição do primeiro filme totalmente rodado pelo “Cinema do Povo”, um grupo formado naquele mesmo ano por militantes anarquistas e comunistas franceses interessados em discutir cinema, produzir filmes, distribuí-los e festejá-los. Bidamant era a sua maior liderança.[2]

Era algo inovador e inusitado para a época. Desde o surgimento do cinema, o movimento operário pouco havia falado sobre o que, até então, era apenas mais uma das diversas distrações para as horas de folga: “Podemos através do cinema, como um maravilhoso meio de propaganda, iluminar o povo, instruir, mostrar que ele deve combater com toda a sua força o álcool, a guerra, o chauvinismo estúpido e a moral inepta da burguesia”, disse Bidamant diante de seus convidados. [3]

Entretanto, o primeiro filme da cooperativa só seria exibido em janeiro do ano seguinte. Apesar da discrição dos seus membros, houve vazamento de informação e a polícia impediu a exibição cinematográfica. Ao menos foi assim que Bidamant se justificou em seu discurso durante a festa, dizendo ainda que “dentro de alguns dias numa outra sala apresentaremos excelentes filmes, entre os quais um dedicado às mulheres, é intitulado: As Misérias da Agulha e que “esse filme mostrará os horrores do trabalho doméstico.”[4]

O objetivo deste artigo é explicar o que foi a experiência do “Cinema do Povo”, a primeira tentativa organizada da classe trabalhadora de apropriação do cinema. Embora breve, o grupo foi um dos grandes responsáveis por lançar as bases de uma nova forma de intervenção frente à hegemonia do cinema comercial que se estende até os dias atuais.

A industrialização do cinema

Nos primeiros anos do século XX, o cinema na França já havia se consolidado como uma indústria de entretenimento que se mostrava, além de rentável, um eficaz instrumento de propaganda ideológica. As maiores empresas envolvidas no processo de exploração comercial da produção e da distribuição de filmes haviam descoberto a fórmula ideal para transformar a projeção fílmica em um negócio extremamente lucrativo. Essa fórmula combinava a produção em massa e o controle sobre a circulação dos filmes.

Tal combinação fez com que a maior companhia cinematográfica e produtora da França da época, a Pathé, entre 1906 e 1907, começasse a reestruturar a distribuição e a exibição de filmes na própria França, quando já dominava boa parte do mercado mundial. Associada a diversos empresários, a Pathé construiu de maneira ininterrupta várias salas exclusivas para cinema em Paris e em outras cidades, dando início à Sociedade Omnia-Pathé no final de 1906. Apenas três anos depois, em 1909, a empresa já tinha sob seu controle um circuito de 200 salas de cinema em toda a França e Bélgica. Esse circuito correspondia à distribuição de filmes produzidos sob a demanda de rentabilidade, com o objetivo de atrair o maior número de espectadores possível. A essa altura, a transição do “filme de atração” (curiosidades, mágicas, registos cotidianos) para o “filme narrativo” (o fio condutor é uma história) já se fizera na França, seguindo a mesma lógica da expansão do parque exibidor (a parte do mercado que diz respeito aos exibidores, especificamente), que demandava filmes que fossem capazes de atrair pelas histórias contadas.[5]

A resposta da militância

O movimento operário deu os primeiros sinais de que percebia essa proliferação do cinema como atração popular e ferramenta ideológica em fins da primeira década do século, quando o número de comentários e matérias acerca do cinema começou a aparecer com mais frequência na imprensa militante.[6] Em 1909, por exemplo, tiveram início as primeiras experiências com o uso dos filmes como ferramenta pedagógica revolucionária, como é o caso do Cinema Social da União dos Sindicatos do Sena, que realizava projeções cinematográficas seguidas de palestras com função educativa e política, iniciativa associada às chamadas  “Universidades Populares” – importante movimento no âmbito das respostas populares ao famoso “Caso Dreyfuss”, e que reuniu mais de 50 mil aderentes espalhados por cerca de 250 locais de atuação pela França, mobilizando trabalhadores e intelectuais de diversas áreas com cursos e palestras abertas ao público.

A partir de 1911, tiveram início as exibições do militante anarquista Gustave Cauvin[7], que viria a ser um dos membros fundadores do Cinema do Povo e que teve sua ação individual especialmente documentada pela vigilância policial. Essas projeções, ambulantes e itinerantes, inauguraram uma nova era para a propaganda, a era das imagens em movimento, preparando o terreno para a fundação, em 1913, do Cinema do Povo, organização que tinha o objetivo de institucionalizar essa nova estratégia de luta.

Até aquele momento, existia entre muitos militantes, principalmente os da esquerda, uma enorme preocupação com o tempo que o trabalhador “gastava” nos cinemas e com o conteúdo dos filmes que dominavam o mercado. Inicialmente esparsa nos jornais anarquistas e socialistas, a crítica ao cinema comercial aumentou sensivelmente em 1913, quando artigos de militantes como Marcel Martinet e Georges Yvetot, entre ouros, se tornaram mais comuns nesse tipo de imprensa. Quase sempre, esses autores apontavam para a necessidade do uso do mesmo meio de propaganda que criticavam como instrumento de alienação a favor e pelo trabalhador.[8] As publicações, então, a partir de agosto daquele ano se aglutinaram e atingiram o seu ápice com as divulgações do Cinema do Povo.

Cartaz de divulgação do filme “A Comuna de 1871”, produzido pelo “Cinema do Povo”, e Armand Guerra, diretor. Imagem: Acervo do autor.

De acordo com um registro feito por um informante da polícia presente na festa de 1o de novembro de 1913, Bidamant teria se “esforçado” em demonstrar que aquele era o momento certo para opor-se aos “outros cinemas”, que são capturados pela burguesia e pelo Governo para sua própria propaganda, através de um cinema que serviria à propaganda revolucionária. Segundo esse mesmo registro, Bidamant falara que: “não somente o espírito do povo estava lamentavelmente impressionado com a imundície e os disparates que vê desenrolar na tela”, mas que também “um efeito nefasto era produzido sobre o cérebro das crianças que saem dos cinemas com ideias policialescas e bélicas.”[9] Porém, acreditando no potencial da linguagem cinematográfica, conclamou toda a classe trabalhadora para que esta se apropriasse dessa nova “arma revolucionária” que é o cinema.

O Cinema do Povo e a luta pela democratização do cinema

A experiência do Cinema do Povo  apontou para a possibilidade de o público não  ser prisioneiro dos filmes comerciais e dos interesses dos distribuidores. Apesar da sua breve duração, de outubro de 1913 a meados de junho de 1914, a cooperativa revelou potencial em criar um mercado verdadeiramente alternativo e de maior alcance. Além dos seis filmes que foram produzidos, o Cinema do Povo estabeleceu nesse curto espaço de tempo, ainda, uma relevante rede de distribuição e exibição pela França – principalmente em sindicatos, cooperativas e nas chamadas “Bolsas de Trabalho”, locais que reuniam as atividades locais dos sindicatos – e dava início a sua expansão por outros países, tendo representantes na Itália, Países Baixos, e podendo ter chegado até a América do Norte e Cuba, segundo as últimas notas do grupo publicadas na imprensa militante. Nesse sentido, pode-se dizer que ocorre um processo de organização  de público, pois envolveu o domínio do tripé cinematográfico: produção, distribuição e exibição de filmes em um circuito não comercial.

O envolvimento da militância francesa com o cinema de 1909 a 1914 traduziu, naquele contexto, uma perceptível alteração da sensibilidade do militante para com o uso dos filmes e, no Cinema do Povo, a culminância desse processo, como uma nova cultura e novos repertórios de luta para a classe trabalhadora. Isso mostrava que o cinema, mesmo tendo surgido em meio à exploração comercial do mercado de atrações e entretenimento urbano do final do século XIX, não se firmou apenas nos moldes comerciais, embora hegemônicos, nem centrada apenas na experiência passiva do espectador, mas também em circuitos alternativos e que permitiam aos espectadores fazer parte do processo de produção.

Isso acontecia justamente em um momento em que a militância francesa buscava maior representação nas novas formas de entretenimento que se desenvolviam no país. O modo de atuação do Cinema do Povo nos dá alguns indícios nesse sentido. A escolha por produzir o primeiro filme, As Misérias da Agulha (1914), com a figura da mulher costureira com o nome de Louise, em inconfundível homenagem à Louise Michel e a sua atuação política durante a Comuna de Paris de 1871, aponta para uma pauta claramente feminista revolucionária, além do tema das categorias de trabalho e da homenagem aos mortos heroicos. Pouco abordada na documentação, a presença de Henriette Tilly e Jane Morand, anarquista individualista, contribuiu para a definição da pauta das mulheres como tema do filme, que viria a ser o primeiro filme francamente feminista na história, algo a ser parcialmente possível no meio comercial oito anos depois com “A Sorridente Madame Beudet”, de Germaine Dulac.[10]

Cena do filme “A Comuna de 1871”, produzido pelo “Cinema do Povo”. Imagem: Acervo do autor.

Os filmes da cooperativa apontam também para o fato de que, em pouco tempo de contato com o material fílmico, e com os desafios narrativos do cinema, os militantes puderam construir seus próprios repertórios de representações e soluções para o discurso fílmico. De um total de seis filmes, três foram encontrados e recuperados pela Cinemateca Francesa na década de 1990, e podem ser visualizados no YouTube (As misérias da Agulha O velho estivador).

Um exemplo pode ser visto no último e mais importante filme feito pelo grupo: A Comuna, de 1914, primeiro filme da história sobre a Comuna de Paris de 1871. O grande diferencial deste filme em relação aos demais (As misérias da Agulha O velho estivador)é o domínio do uso do raccord, técnica de montagem de vários planos e cenas que possibilita ao espectador acompanhar uma sequência sem se perder na narrativa. O diretor e membro do Cinema do Povo, Armand Guerra – que depois viria a dirigir filmes pela Confederación Nacional del Trabajo (CNT) – organização responsável junto com a Federación Anarquista Ibérica (FAI) pela revolução espanhola de 1936 – atingia, assim, a narrativa linear. A técnica certamente era a melhor opção diante da grande quantidade de cenas que deveriam representar o vaivém dos soldados, em diferentes direções e locais. Vemos essa solução ser usada ao longo de quase todo o filme, e que ainda não havia sido utilizada nos outros filmes da cooperativa.

Mais do que apenas copiar a técnica dos meios comerciais, o grupo se lançava a experimentar e a solucionar problemas de narrativa no momento da produção, passo fundamental em direção à uma construção de formas singulares de montagem e de encenação, que poderiam ter criado de fato um novo modo de representação fílmica próprio do movimento operário. Interrompida pela Grande Guerra, esse tipo de experiência só viria a ser possível novamente na década de 1920, com as vanguardas cinematográficas e o cinema desenvolvido após a Revolução Russa.

Cinema, instrumento de liberdade

Antes de tudo, e ao final, o cinema se apresentou como possível instrumento de liberdade para a classe trabalhadora, tendo no movimento operário a agência dessa alternativa. Porém, a nova ferramenta de luta e identidade cultural esteve longe de ser plenamente apropriada no tempo do Cinema do Povo. O domínio do novo modo de representação escapou aos trabalhadores, mas, não sem deixar a influência da tentativa da sua conquista, como um vírus adormecido. Afinal, ainda que não sejam dominantes, o cinema alternativo, as exibições populares e os filmes que não se pautam pelo mercado para existirem, elementos constitutivos de uma real democratização do cinema, que pretendem ir muito além da ampliação do acesso físico aos filmes nas salas de cinema comercial, se tornaram elementos definitivos no mundo da representação pela imagem em movimento.

Notas:

[1] Arquivo Nacional Francês(AN) F713347. Relatório de polícia de 2 de novembro de 1913.

[2] O grupo vinha tomando forma desde julho de 1913, e, segundo se sabe, teria sido anunciado em agosto durante o congresso nacional da Federação Comunista-Anarquista (FCA), formalizando-se estatutariamente no dia 28 de outubro do mesmo ano. Estruturou-se como cooperativa, com um Conselho Administrativo que veio a incluir logo no primeiro mês de existência um Diretor de Festas, o cantor revolucionário Gaston Brunswick, conhecido como Montéhus.

[3] Ibid.

[4] Ibid.

[5] ABEL (1998), p. 102. Conferir, também, MEUSY (2002) para o processo de industrialização do cinema na França.

[6] Alguns exemplos de publicações nesse sentido: En champagne – Cinéma-Police. Le Libertaire, 29/04/1911; Au Cinéma. Le Libertaire, 27/05/1911.

[7] MUNDIM (2018).

[8] MARTINET, Marcel. Le cinéma nécessaire. La Bataille Syndicaliste, 09/03/1913; Le public et le cinema. La Bataille Syndicaliste, 04/03/1913. S/A; YVETOT, Georges. Par le Ciné… La Bataille Syndicaliste, 28/06/1913.

[9] AN F713347. Relatório de polícia de 2 de novembro de 1913.

[10] MUNDIM (2019), p. 22 e p. 35.

SCHWARTZ, O espectador cinematográfico antes do aparato do cinema: o gosto do público pela realidade na Paris fim-de-século. In: O cinema e a invenção da vida moderna. Org. Leo Charney e Vanessa R. Schwartz. São Paulo, Cosac & Naify Edições, 2001.

Referências e sugestões bibliográficas:

ABEL, Richard. The Ciné Goes to Town: French Cinema, 1896 1914Updated and Expanded Edition. Berkeley: University of California Press, 1998.

ASSELAIN, Jean-Charles. Histoire économique de la France. Du XVIIIe siècle à nos jours. 1. De l’Ancien Régime à la Première Guerre mondiale. Éditions du Seuil, 1984.

MEUSY, Jean-Jacques. Paris-Palaces – ou le temps des cinemas (1894-1914). CNRS ÉDITIONS, Paris, 2002.

MUNDIM, L. F. C. O público organizado para a luta: o Cinema do Povo na França e a resistência do movimento operário ao cinema comercial (1895-1914). Tese (Doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Université Paris 1 Sorbonne, Porto Alegre, 2016, 290 f.

______ . As marchas de Gustave Cauvin – a primeira forma sistematizada e regular do cinema militante. 2018.

______ . As misérias da agulha do Cinema do Povo. Significação: Revista de Cultura Audiovisual, v. 46, n. 52, 1 jul. 2019. DOI:https://doi.org/10.11606/issn.2316-7114.sig.2019.147866

NOIRIEL, Gerard. Les ouvriers dans la société française. Editions du Seuil. 2002.

REBÉRIOUX, Madeleine. La République radical? 1898-1894. Éditions du Seuil, 1975.

Luiz Felipe Cezar Mundim é pós-doutorando em História pela Unicamp e doutor em História pela UFRGS em cotutela com a Paris 1-Panthéon Sorbonne.

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