Os impactos da especulação com terras agrícolas no Brasil

O capital financeiro promove a “terceirização” dos negócios com terras, em analogia ao trabalho terceirizado predominante no corte de cana. De forma semelhante, fundos internacionais se isentam de responsabilidade por impactos causados com a especulação, já que não são proprietários diretos das terras, mas sócios.

Fábio T. Pitta e Maria Luisa Mendonça

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 03/10/2016

A crise econômica mundial que se tornou aparente em 2008 intensificou o papel do capital financeiro no mercado de terras agrícolas no Brasil. A especulação com terras exerce o papel de facilitar a circulação do capital financeiro em um contexto de instabilidade econômica em nível internacional.

Essa tendência é estimulada por fundos de investimentos estrangeiros em busca de valorização de seus ativos e por sistemas de crédito. A crise econômica gerou uma mudança no perfil do agronegócio no Brasil e incentivou a presença de empresas estrangeiras de diferentes setores, não só agrícolas, mas também financeiras, automotivas e petroleiras.

Tal processo ocorre principalmente por meio de fusões e aquisições, causando maior concentração de capitais. As empresas optam por esse procedimento com a intenção de aumentar seu capital e demais ativos, como máquinas, terras, subsidiárias, entre outros. Assim, o preço de suas ações passa a ser parte fundamental do valor de mercado e torna-se parâmetro para que consigam crédito.

A elevação dos preços das commodities possibilitou, a partir de 2002, maior endividamento das agroindústrias no Brasil, que passaram a contrair dívidas em dólar com a expectativa de exportação futura. Isso aconteceu, por exemplo, com as usinas exportadoras de açúcar junto a tradings. As usinas fizeram promessas de produção futura para justificar sua expansão territorial e mecanização, o que elevou o preço da terra. As promessas de produção para pagar dívidas anteriores fomentaram novo endividamento e também nova expansão.

A partir de 2008, quando o preço do açúcar começou a cair junto com a queda das commodities em geral,1 diversas usinas entraram em falência. Porém, a redução no valor das commodities não afetou o preço da terra agrícola no Brasil, que continuou a subir e a atrair investimentos internacionais. Os impactos desse processo continuam na atualidade.2

O papel da Radar Propriedades Agrícolas S/A

Após a crise econômica de 2008, a possibilidade de o agronegócio acessar crédito com base em promessas de produção futura diminuiu significativamente.3 Muitas usinas de açúcar e etanol endividadas em dólar entraram em falência com a forte queda mundial nos preços das commodities. Nesse contexto ocorreram a diversificação de negócios e as fusões entre empresas para acessar novos capitais a crédito.4

Um exemplo foi a constituição da empresa Radar Propriedades Agrícolas, em 2008, tendo como principais acionistas a Cosan (com 18,9%) e a Mansilla (sócia majoritária naquele momento),5 para especular com terras. Dados de 2012 indicam que a Radar já controlava 151.468 hectares, avaliados em R$ 2,35 bilhões.6 Em relação a 2011 a variação de seu portfólio foi de 93%, quando o preço das terras subiu em média 56%.7 Atualmente, a Radar detém 555 propriedades, com aproximadamente 270 mil hectares de terras no valor declarado de R$ 5,2 bilhões.8

A principal fonte desse capital é a empresa Tiaa-Cref, que administra fundos de pensão nos Estados Unidos avaliados em aproximadamente US$ 1 trilhão e possui a Tiaa-Cref Global Agriculture (fundos I e II), que atua nos mercados internacionais de terras. A Tiaa-Cref capta capital a juros de outras fontes, como dos fundos de pensão AP2, da Suécia, Caisse de Dépôts et Placement du Québec e British Columbia Investment Management Corporation (bcIMC), do Canadá, Stichting Pensionenfonds AEP, da Holanda, Ärzteversorung WestfalenLippe, da Alemanha, Cummins UK Pension Plan Trustee Ltd., Environment Agency Pension Fund e Greater Manchester Pension Fund, da Inglaterra, e New Mexico State Investment Council, dos Estados Unidos.

Para atuar no Brasil, a Tiaa-Cref Global Agriculture criou a empresa Mansilla, uma subsidiária brasileira de capital estrangeiro, proprietária da Radar em sociedade com a Cosan. Diversas especuladoras imobiliárias agrícolas surgiram após esse período. A SLC Agrícola, maior produtora de grãos do Brasil, administra a SLC Land em sociedade com fundos internacionais.

O capital financeiro promove a “terceirização” dos negócios com terras, em analogia ao trabalho terceirizado predominante no corte de cana, que isenta usineiros da responsabilidade pelas condições degradantes e dos casos de trabalho escravo. De forma semelhante, fundos internacionais se isentam de responsabilidade por impactos causados com a especulação, já que não são proprietários diretos das terras, mas sócios dos negócios.

A expansão do mercado de terras combina a atuação de empresas bancárias, seguradoras, imobiliárias e industriais. O Estado cumpre um papel central como agente de financiamento e de concessão de terras públicas para o setor privado.

As principais áreas de interesse da Radar têm potencial de expansão do monocultivo, com forte possibilidade de precificação (subida inflacionária do preço de um ativo conforme aumento de sua demanda no mercado). A Radar atua em diversos estados onde prevalece o monocultivo de cana, soja, milho, algodão, eucalipto, entre outros, principalmente em São Paulo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Minas Gerais, Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

Ao especular com terras agrícolas, a Radar estimula outras empresas a negociar no mercado de terras, retroalimentando um contexto de inflação do ativo terra, o que por sua vez retroalimenta o interesse no negócio.

O mecanismo de “terceirização” consiste em criar diversas empresas com os mesmos administradores, assim como subsidiárias, fazendo parecer que são de proprietários distintos. Tais empresas passam então a negociar terras entre si. Desse modo, Cosan e Tiaa-Cref Global Agriculture HoldCo (esta por meio da Mansilla e da TerraViva Brasil Participações Ltda.) são sócias na Radar e na Tellus, respectivamente.

A Tiaa-Cref Global Agriculture HoldCo possui ainda outras empresas no Brasil com 100% de sua propriedade, como a Nova Gaia Brasil Participações. A Tellus lança debêntures no mercado, que são compradas pela Radar e pela Nova Gaia. Porém, o investimento inicial sempre parte da Cosan e da Tiaa-Cref Global Agriculture HoldCo, mas parece vir de diversos outros investidores. A Tellus usa tais recursos para comprar terras por meio de outras subsidiárias,9 chamadas “veículos financeiros”. A Tellus paga aos investidores os juros das debêntures, explicitando o caminho que o dinheiro percorre até voltar aos seus investidores reais, acrescido dos ganhos com o negócio.

A criação de diversas empresas serve para dificultar a localização das terras negociadas. A “terceirização” entre empresas (inclusive de fachada) faz que tais investidores não sejam considerados proprietários diretos das terras, o que os isenta de responsabilidade em relação aos impactos sociais e ambientais.

A grilagem de terras no sul do Maranhão e do Piauí

A região do Nordeste brasileiro chamada Matopiba inclui os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, que fazem divisa entre si. A área de cerrado que se verifica transversalmente nesses estados tem sido alvo da especulação imobiliária agrícola e da expansão do agronegócio,10 que conta com incentivos fiscais e créditos subsidiados pelo Estado para financiar a produção de soja, milho, eucalipto, algodão e cana-de-açúcar.

O agronegócio contou nos últimos anos com projetos de infraestrutura fomentados pelo Estado, como a construção de ferrovias e estradas que conectam a região aos portos de escoamento de commodities no litoral do Nordeste, principalmente aos portos de Itaqui, no Maranhão, de Pecém, no Ceará, e de Suape, em Pernambuco.

A escalada do preço da terra no Matopiba transformou a região em zona de interesse para os negócios da Radar. A possibilidade da compra de terras a preço baixo ocorre no processo de formação das fazendas, com desmatamento do cerrado nativo nas áreas de chapada. Depois de formada a fazenda para a produção de commodities, o preço da terra sobe vertiginosamente. Os ganhos de capital com a venda dessas terras estão entre os mais altos do país.

Essas fazendas se estabelecem em terras públicas, por meio do cercamento de uma área até então sem título de propriedade. Na maioria das vezes isso acontece sobre terras devolutas ou do Estado, nas quais pequenos agricultores têm vivido e produzido alimentos há mais de uma centena de anos, por meio da posse.

A principal maneira de formar uma fazenda sobre terras devolutas é por meio da grilagem, que consiste no ato ilegal de forjar a titularidade e cercá-la, expulsando os agricultores locais, para posteriormente vender ou arrendar a “nova” propriedade como se estivesse legalizada.

O avanço da produção de commodities e da especulação com terras nas chapadas afeta também as áreas conhecidas como baixões, que são locais de moradia e das roças dessas comunidades. Muitos desses baixões também têm sido grilados, causando a expropriação e expulsão da população local.

Nos baixões correm os rios nascidos nas áreas de chapadas. Geralmente as empresas utilizam as chapadas para o monocultivo extensivo, mecanizado e irrigado, para a produção de commodities, e expropriam os baixões para registro como reserva florestal. Assim, desmatam o cerrado e cercam o baixão, expulsando a população.

As terras adquiridas pela Radar S/A e pela Tellus S/A em Balsas (MA), Alto Parnaíba (MA) e Santa Filomena (PI) têm relação com esse processo de grilagem, já que nessa área de chapada predominam terras devolutas.11 Mesmo que uma imobiliária agrícola não adquira diretamente as terras griladas, seus investimentos especulativos fomentam tal prática. Porém, por meio da “terceirização” do negócio, as empresas não se responsabilizam por seus impactos.

A expansão do agronegócio e a especulação com terras no Matopiba geram expropriação das populações camponesas, indígenas e quilombolas, o que causa pobreza e fome e leva esses moradores a se submeterem a condições degradantes de trabalho nas fazendas, muitas vezes análogo ao escravo. A elevação do desemprego piora as condições habitacionais nas cidades em razão da “favelização”, como resultado da expansão do capital financeiro e especulativo no campo brasileiro.

Notas

1 Guilherme Delgado, Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século, Editora UFRGS, Porto Alegre, 2012.

2 Ver: www.social.org.br/files/pdf/RevistaREDE2015paranet%202.pdf.

3 Fábio T. Pitta, As transformações na reprodução fictícia do capital na agroindústria canavieira paulista: do Proálcool à crise de 2008, tese de doutorado, USP, 2016.

4 Ver: www.social.org.br/revistacosanshel.pdf.

5 “Contrato de capital” da Radar (Ministério da Fazenda, 27 ago. 2008). Disponível em: www1.seae.fazenda.gov.br/littera/pdf/08012009447200882.pdf.

6 “Negócio de terras ‘inventado’ pela Cosan já vale R$ 2,3 bi e pode ajudar ações: a Radar, uma imobiliária high-tech de fazendas, que segundo analistas possui valores ‘escondidos’, passará a fazer parte do balanço da empresa”, IG Notícias, São Paulo, 28 nov. 2012. Disponível em: http://economia.ig.com.br/empresas/2012-11-28/negocio-de-terras-inventado-pela-cosan-ja-vale-r-23-bi-e-pode-ajudar-acoes.html.

7 Lourenço Moreira, A corporação Cosan e a conquista de um território em torno de sua usina de etanol em Jataí, Goiás (2007-2012), dissertação de mestrado em Geografia, Instituto de Geociências, UFRJ, 2013, p.58-59. As informações foram obtidas junto à Cosan.

8 Fonte: Radar S/A. Disponível em: www.cosan.com.br/pt-br/negocios/radar/performance.

9 Conforme documento da própria Tiaa-Cref, a Tellus S/A e a Radar S/A investem seu capital em algumas outras empresas de fachada, que acabam se responsabilizando pela propriedade em si das terras. Elas possuem nomes como Nova Ibiajara Propriedades Agrícolas S/A, TerraInvest Propriedades Agrícolas S/A, Terra do Sol Propriedades Agrícolas S/A, AgroBio Participações e Investimentos S/A. Disponível em: goo.gl/jqaeT7

10 Vicente Eudes Alves, “O mercado de terras nos cerrados piauienses: modernização e exclusão”, Agrária, São Paulo, n.10/11, p.73-98, 2009. Disponível em: www.revistas.usp.br/agraria/article/view/154

11 Ver, por exemplo, a tese de doutorado de Roberto Miranda, Ecologia política da soja e processos de territorialização no sul do Maranhão (2011), especialmente a discussão acerca da grilagem das chapadas em Balsas, no Maranhão, onde hoje se encontra a Fazenda Sagitário, de propriedade da Tellus S/A.

Fábio Teixeira Pitta é doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo e pesquisador da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.

Maria Luisa Mendonça é coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e professora no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Uerj.

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