Não se trata de repetir o mantra ‘o que é bom para os EUA é bom para o Brasil’, mas é importante prestarmos atenção no que vai acontecer.
Rafael R. Ioris
Fonte: Carta Capital
Data original da publicação: 01/05/2021
O presidente dos Estados Unidos Joe Biden fez no último dia 30 o seu primeiro pronunciamento oficial no Congresso daquele País. Falando a uma plateia bem menor do que a usual, dadas as precauções ligadas à pandemia, o novo líder democrata ressaltou os avanços na vacinação e desafiou a oposição republicana a aprovar seu plano de recuperação econômica e investimentos públicos.
Batizada de Plano de Empregos da América, a nova proposta promete ampliar o investimento em áreas como saúde pública e educação básica, prometendo criar milhões de novos empregos (especialmente em setores de energia renovável) e promover um nível de crescimento econômico recorde, de cerca de 6%, reposicionando o país em sua competição crescente com a China.
Na prática, o plano busca renovar os setores tradicionais de infraestrutura, como estradas, rodovias, trilhos e portos, bem como expandir o uso de energia renovável e a malha viária de carros elétricos. Promete também uma ambiciosa renovação das escolas públicas, via cabeamento de internet, que também seria ampliado nas residências, especialmente nas zonas rurais do País.
Essa primeira fase do plano de Biden custará cerca de 2 trilhões de dólares. Para pagar ele, o governo pretende retornar o percentual de taxação corporativa, reduzida no governo Trump, de 21% para 28%, e impedir a evasão fiscal de empresas off shore.
Se aprovado, o novo pacote viria a totalizar a impressionante soma de cerca de 4 trilhões de recursos públicos investidos ao longos dos últimos 12 meses (somando o pacote de emergência pela Covid-19). Conjuntamente, tais medidas, indicativas na nova coalização no poder nos EUA, poderiam vir a redefinir o papel do Estado na economia daquele país de maneira inovadora desde, pelo menos, meados dos anos 1960, ou, até mesmo, desde o chamado New Deal de meados do anos 1930.
E assim (de maneira certamente irônica para que vive América Latina), após décadas pontificando a necessidade de um Estado mínimo, os EUA podem vir mesmo a se tornar o túmulo do neoliberalismo.
Embora o discurso de Biden tenha demonstrado a nova direção do governo, é ainda incerto se e como os Democratas serão capazes de aprovar tão ambiciosas ideias já que sua maioria no Senado é particularmente tênue. O que é certo é que tais mudanças impactariam a estrutura fiscal americana, que nos últimos 40 anos vinha progressivamente favorecendo o mercado.
Líderes da oposição republicana e até mesmo senadores moderados do partido democrata, como Joe Manchin do Estado da Virgínia Ocidental, já começam a mostrar resistência. De todo modo, a proposta de Biden, assim com a intenção da secretária do tesouro norte-americano, Janet Yellen, favorável a uma tributação básica única entre países desenvolvidos, como forma de evitar o processo de evasão fiscal, sinalizam uma mudança clara de direção na lógica neoliberal definidora de política públicas ao redor do mundo desde, pelo menos, os anos 1980.
É claro que o governo norte-americano e instituições multilaterais como o FMI promoviam a agenda do chamado Consenso de Washington ao longo das últimas décadas do século XX em grande parte para consumo externo. Afinal, a abertura de mercado e redução de gastos públicos, exigida pelos acordos de renegociação das dívidas dos países latino-americanos, por exemplo, claramente não eram medidas que a Casa Branca buscou implementar no ambiente doméstico, pelo menos não com o mesmo vigor que exigia dos países em desenvolvimento.
Ainda assim, embora incoerente em sua proposta de redução do papel do Estado – que no setor militar foi, de fato, consistentemente ampliado desde os anos Reagan – a agenda neoliberal se tornou dogma da administração pública nos EUA, seja durante governos republicanos, como Reagan e Bush, como também em governo democratas, em especial nos anos dourados da globalização neoliberal de Bill Clinton.
Como frutos desse processo, os EUA apresentam hoje os piores níveis de concentração de renda dos últimos 100 anos, assim como uma profunda polarização política e crescente descrença nas instituições de governo.
Tanto Tump quanto Obama buscaram, ou pelo menos prometeram, uma reversão no que se refere à responsabilidade social das estruturas do governo – com a criação da legislação de saúde conhecida como Obamacare, no caso no último; nas medidas protecionistas implementadas pelo primeiro. Mas, é com Biden que há, de fato, a possibilidade de uma efetiva extinção do mantra neoliberal que rege lógica governamental norte-americana.
O fato é que Biden elegeu-se, em grande medida, com base na promessa de que buscaria repactuar a noção da responsabilidade social do Estado. E agora, nos seus primeiros 100 dias de governo, dá fortes indícios de que está buscando uma forte guinada de rumos. A depender o que vai acontecer com suas propostas no Congresso, estaremos presenciando a mais importante e radical alteração de curso da concepção de Estado dos últimos 50 anos nos EUA, certamente com repercussão mundial
Seria especialmente importante que países como o Brasil prestem atenção no que vai ocorrer nos EUA nos próximos meses. Não se trata de repetir o mantra de que o que é bom para os EUA é bom para o Brasil. E sim de entender que, se tais mudanças são vistas como necessárias mesmo em um país com tradição e força de uma economia de mercado, o que tem sido feito no Brasil dos últimos tempos precisa ser revisto. Seremos capazes de efetivar essas mudanças? Ou continuaremos na cegueira ideológica do mantra neoliberal, que insiste em nos esfacelar como sociedade?
Rafael R. Ioris é professor na Universidade de Denver e Pesquisador do Instituto de Estudos do Estados Unidos (INCT-INEU).