Marcelo Barros
Fonte: Brasil de Fato
Data original da publicação: 19/08/2019
No DNA de todos os caminhos espirituais está a vocação humana para a liberdade. Para se acolher o Espírito Divino no mais profundo de nossas vidas, todos temos de procurar permanentemente sermos livres. Mesmo com imensas contradições e ambiguidades, todas as religiões têm em sua natureza a missão de colaborar para que se organize uma sociedade de pessoas libertadas. Infelizmente, nem sempre as religiões foram fieis a essa orientação. No passado e mesmo nos dias atuais, muitas têm sido coniventes com situações de opressão, injustiças e violência.
A cada ano, no dia 23 de agosto, a ONU celebra o dia internacional da lembrança do tráfico de escravos e de sua abolição. Durante toda essa semana, em vários países, principalmente naqueles mais marcados pela tragédia terrível que foi, na história, a escravidão negra, ocorrem eventos e conferências sobre o assunto. No entanto, infelizmente, o tráfico e a servidão humana não são apenas lembranças de um passado distante. Até hoje, a África inteira sofre consequências sociais da colonização e da exploração que, por séculos, saqueou suas riquezas e escravizou os seus povos. Mesmo nos nossos dias, o petróleo e os diamantes e minerais do subsolo só têm contribuído para os Estados Unidos e os países ricos da Europa. Para os africanos, acarreta apenas imensa miséria e servidão.
No mundo contemporâneo, a escravidão mudou apenas de forma. Embora ilegal, o tráfico de seres humanos permanece fonte de riqueza para máfias internacionais, especializadas em prostituição forçada e em migrantes clandestinos que lhes rendem dinheiro. Os escravagistas do século XXI não operam mais em navios negreiros e sim em jatos de última geração.
De acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os lucros provenientes do tráfico humano, são de mais de trinta bilhões de dólares por ano. No mundo de hoje, mais de 12 milhões de pessoas já passaram por alguma forma de trabalho forçado ou de servidão. Destas, 10 milhões foram exploradas por agentes privados e muitas em trabalho forçado resultante do tráfico humano. Os dados mais elevados encontram-se na Ásia, seguidos da América Latina e nas Caraíbas. Mesmo na América do Norte e nos países ricos da Europa ocidental, quase 500 mil pessoas são vítimas do tráfico humano e de formas de escravidão contemporânea. Dessas mais da metade são mulheres e jovens menores de idade.
Em um país, como o Brasil, no qual cinco pessoas possuem riqueza equivalente à metade pobre da população brasileira, fica praticamente impossível eliminar, no campo e nas cidades, situações de trabalho semelhantes à escravidão. As políticas do atual governo federal favorecem o trabalho informal e a perda dos direitos dos trabalhadores. Em todo o país as condições de trabalho são cada vez mais precárias. Na Amazônia, há estreita relação entre o desmatamento da Amazônia que tem crescido muito nesses anos e a prática de trabalho forçado. Em pleno centro de São Paulo, indústrias de fundo de quintal e empresas de tecelagem empregam bolivianos em situação ilegal, obrigados a morar no lugar de trabalho, com horários extenuantes e sem salários fixos. Trabalham para pagar dívidas que crescem ininterruptamente e exigem mais trabalho.
A raiz da escravidão é o sistema social que perpetua a desigualdade social e considera o dinheiro mais importante do que a vida. O trabalho escravo atinge principalmente índios, negros, mulheres pobres e crianças. Ele atenta contra a dignidade das vítimas, mas também de toda a sociedade que convive com essa barbárie. O trabalho escravo ainda persiste porque os que o praticam encontram pessoas com tal fragilidade social que se tornam mais vulneráveis a isso. Cada um e cada uma de nós é responsável por criar uma cultura, nas quais esse tipo de crime se torne impossível. Principalmente, quem está ligado a alguma tradição espiritual deve assumir esse compromisso pela justiça como testemunho de sua fé em um Espírito que é amor e ternura solidária. Há muitos anos, um poeta escreveu: “Quem trabalha pelo pão de cada dia, faz avançar no mundo o projeto divino. Quem varre a rua e recolhe o lixo está preparando o reino de Deus”.
Marcelo Barros é monge beneditino e assessor de movimentos populares.