Com globalização e ruína da sociedade industrial, um novo sujeito social emergiu no país. Precarizado, ele vive o vale-tudo da disputa individual. É refém do extrativismo — financeiros, de recursos naturais e dados digitais.
Marcio Pochmann
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 24/10/2022
A busca atual pela melhor compreensão da trajetória do voto nas eleições de 2022 se transformou na “gota d’água” que move parcela importante do corpo de pensamento social no aprofundamento do entendimento do que é a sociedade brasileira nos dias de hoje. Um inegável sinal de que a dominância das análises tradicionais sobre a prevalência de certa estabilidade da estrutura social teria perdido sentido explicativo.
Por estarem essas análise mais atentas aos eventos de natureza conjuntural, certos movimentos estruturais terminaram sendo secundarizados em parcela importante das reflexões que apenas tocavam na superfície da realidade nacional. Nesse sentido, a sociedade brasileira seguiria sendo vista no tempo presente como uma certa continuidade herdada da transição da ditadura civil-militar (1964-1985) para o regime democrático durante o ciclo político da Nova República (1985-2014).
Ainda que alterações provocadas externamente como a globalização, o poder da grande corporação transnacional e o progresso tecnológico pudessem impactar a estrutura social, novos sujeitos não seriam considerados nas análises da cena política. Assim, a emergência de diversos movimentos que foram ganhando forma e conteúdo no interior da estrutura social modificada causaram surpresas quando passaram a se expressar pela materialização do voto.
Após mais de três décadas de ruína da sociedade industrial iniciada pela forma rebaixada pela qual o país ingressou na globalização conduzida pelos Estados Unidos, quase nada mais sobraria das duas classes sociais anteriormente essenciais no capitalismo brasileiro: a burguesia industrial e o operariado da manufatura. Uma sociedade “desclassada” emergiu, destroçada pela profusão de “microempreendedores” expostos ao avanço do primitivismo de uma economia fundada na extração de riqueza.
A trama da acumulação capitalista que se desviou do sistema complexo, diversificado e integrado se assentou na especialização da economia do extrativismo desde os recursos naturais no campo (agricultura, pecuária e mineração) à coleta dos dados gerados pelas redes sociais. A pilhagem “pelo alto” se moveu na economia de extorsão financeira, enquanto a usurpação avançou pela intensificação e precarização do trabalho, cada vez mais sem direitos a moer o que ainda resta da “classe média assalariada”.
No “andar de baixo”, a exploração avançou deslocando o roteiro possível no passado da ascensão social movida pela conversão do antigo trabalhador rural em empregado assalariado formal para a sociabilidade do mercado digital. Assim, a luta pelo acesso ao moderno consumo encontrou na esfera da circulação potencializada pelas redes sociais as possibilidades do exercício do trabalho cada vez mais fora do emprego protegido.
A integração dissimula a exploração e elimina a indeterminação do tempo de trabalho crescentemente monitorado por aplicativos e algoritmos que dificultam a formação de identidades e pertencimento homogeneizador. Nesse contexto, cada microempreendedor necessita gerar as condições próprias pelas quais possa mobilizar a sua força de trabalho em prol de uma renda (conexão em rede, equipamento para o trabalho, provisão de saúde e formação, entre outros).
Com isso, a sociedade brasileira se transfigurou profundamente. Como um mosaico de partes que, desunidas, assumiu o formato de universo de indivíduos em disputas contínuas entre si.
Pela sociabilidade de mercado, o identitarismo ao avesso se propagou pela expectativa de liberdade da luta pela manutenção de posição social através da impessoalidade das trocas mercantis. O vale-tudo pela prosperidade individual no acesso da renda ao consumo moderno independe da origem ou natureza do rentismo (endividamento, programa de transferência de renda, monetização nas redes sociais, atividades laborais legais ou ilegais, entre outras).
Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004.