Glaucia Campregher e Isadora Campregher Paiva
O filme “7 prisioneiros”, de Alexandre Moratto e lançado pela Netflix, trata das chamadas “relações análogas à escravidão” presentes ainda no Brasil atual (os números indicam algo em torno de 370 mil pessoas vivendo essa realidade abjeta[1]). Descreve a saga de alguns rapazes brasileiros vindos “da roça” e de alguns estrangeiros que, uns e outros, não detêm, por motivos diferentes, os meios culturais e materiais de conseguirem escapar de um verdadeiro sequestro. Sendo assim, são postos a trabalhar de forma ilegal, em condições sub-humanas, para o ganho (não o lucro, pois este necessita da exploração racional e legal imposta pelo capital) de uma quadrilha de comerciantes inescrupulosos.
Há várias questões referentes aos vários tipos de trabalho e de relações de trabalho que poderíamos focar a partir desse filme, mas vou optar por fazer uma diferenciação entre as várias formas de escravidão da antiguidade até aqui aproveitando a deixa dessa nossa denominação moderna de acrescentar o termo “análoga” às “relações de escravidão”.
Sabemos que a desigualdade entre indivíduos dentro de uma mesma comunidade é algo presente nas mais antigas sociedades. No que Graeber [2] chamava de “economias humanas”, pré-mercantis, mesmo que a produção para a troca fosse limitada (limitando a necessidade de trabalho em grande quantidade e pouco custoso), as necessidades do dia a dia, e ainda as mais excepcionais – principalmente nascimentos, casamentos e mortes -, podiam tornar alguns indivíduos/famílias devedores de outros/as. Essas dívidas, mesmo que dinheiro já fosse algo comum, não poderiam ser liquidadas nele se o que ele significa é a capacidade de produção de riqueza real que provem mesmo do trabalho. Ou seja, o que a família com problema de dívida não tinha era riqueza. O seu endividamento para com outrem revelava a sua incapacidade de ser independente. Sendo assim, se estabeleciam relações de dependência “análogas à escravidão” entre credores e devedores. Ou seja, uma família que teve dificuldades para arcar com certas despesas que foram assumidas por outra com mais recursos poderia ter de ceder algum ou alguns de seus membros para prestar trabalho para seus credores por longos períodos de tempo (por vezes passando a obrigação de uma geração à outra). A capacidade, portanto, de gerar riqueza para si, seria usada para gerar riqueza para este outrem.
Essa escravidão, ou servidão, por dívida da antiguidade pré-imperial (os estudiosos da área usam ambos os termos) difere da escravidão greco-romana, que não se confunde com servidão. O que marca essa precisão do conceito de escravidão é que o indivíduo que então passa a ter de trabalhar para outro não o faz segundo laços de dependência um tanto comunitários. Dos gregos e romanos em diante, o indivíduo que é escravizado é objetificado total, seus laços com a comunidade de origem são rompidos! Relações de dependência cruzada inexistem! Ele é deslocado para lá e para cá a bel uso e abuso de seus “donos”. A diferença então não é mais entre iguais. Os escravos não são mais humanos, são coisas, ou instrumentuns vocales (instrumentos que falam), como os chamavam os textos do civilizado direito romano.
A escravidão moderna, do capitalismo em sua fase comercial, foi mais do mesmo, só que não. A escala do comércio foi globalizada pela primeira vez na história. O tráfico era o grande negócio, dívidas e guerras não seriam mais eficientes para satifazer a demanda, os escravos deveriam ser sistematicamente apresados mais que sequestrados. Deveriam ser levados enjaulados a milhares de quilômetros, tornando o desenraizamento total, irrecuperável. A desumanização não era mais apenas dentro da lei, mas uma animalização que perpassou, além do direito, e da economia, a religião e a cultura. A cor da pele era apenas um artifício funcional, o que não impedia, muito pelo contrário, de ser forte o suficiente para tornar a cor um “sinal de raça” e o racismo uma degradação que durou, e ainda dura, séculos após o término da escravidão. Por fim, a violência necessária à toda essa operação não foi mero acidente de percurso, foi proporcional ao esforço de desumanização.
Chegando aos nossos tempos, é bem verdade o que se diz – que o capitalismo nos objetificou e desterritorializou a todos e que o assalariamento também é uma forma de escravidão. Mas, novamente, há diferenças radicais que precisam ser notadas. É verdade que todos sejamos mercadoria, mas é inegável que vendermo-nos a nós próprios seja melhor que sermos traficados por outros. Também é verdade que nos tornamos absolutamente mobilizáveis no espaço e que nossos laços sociais se tornaram cada vez mais frouxos ou líquidos (como dizem Sennet ou Bauman). Mas não podemos deixar de lado, apesar do cinismo liberal, a questão crucial da “liberdade”. O que há de cínico na fórmula “podemos escolher pra quem vamos trabalhar” não invalida que a liberdade formal seja mesmo um bem e que de posse dela não nos tornamos objetos de posse. Isso é importante, além do mais, para que possamos ter em mente duas coisas: i) que novas formas de escravização podem estar surgindo das mudanças do próprio processo de assalariamento, pois, ao fim e ao cabo, escravidão tem a ver com restrição de liberdades e desconexão com a sociedade; e ii) que a manutenção de formas antigas de escravidão ainda habita entre nós.
E ai voltamos ao filme “7 prisioneiros”. É um absurdo que centenas de milhares de pessoas no mundo sejam ainda apresadas, sequestradas, roubadas ou, em casos mais sofisticados, iludidas e enganados para serem, como as demais, aprisionadas. Essa abjeta extração do indivíduo de seu meio, essa negação da liberdade de ir e vir e de usufruir dos direitos conquistados que regulam a exploração do trabalho, essa degradação do humano, não pode mais existir entre nós! Conviver com isso equivale a conviver com um campo de concentração na esquina de casa. Os comandantes do campo, sabemos bem, tanto podem ser militares cumprindo ordens, como libertados que só são libertados para se venderem como capitães do mato ou como traidores da classe (como os personagens centrais do filme). Mas e quem são os que assistem calados?
Nota
[1] https://www.globalslaveryindex.org/2018/findings/country-studies/brazil/ [2] Graeber, David. Dívida: Os primeiros 5000 anos. S.P.: Tres Estrelas, 2016.