O trabalho precarizado não é uma novidade – faz parte do capitalismo

As alegações de que a classe trabalhadora não existe mais sugerem que ela tenha sido substituída pelo “precariado” que não recebe um salário regular. Mas essa condição precária tem sido a experiência da maioria dos trabalhadores ao longo da história do capitalismo – e onde conseguiram emprego estável foi por causa da organização e luta dos trabalhadores.

Juan Sebastian Carbonell

Fonte: Jacobin Brasil
Tradução: Paula Alves e Rafael Grohmann
Data original da publicação: 29/04/2020

Hoje existe um amplo consenso de que o neoliberalismo está tornando o trabalho mais precário. De fato, por mais de quatro décadas, sucessivos governos nos países desenvolvidos adotaram várias medidas para flexibilizar o mercado de trabalho. Essas medidas permitem cada vez mais que as empresas usem contratos temporários. Além disso, há outras medidas que facilitam a demissão de funcionários.

Na França, por exemplo, a criação de contratos temporários data de 1972. Isso significava possibilitar a substituição de um membro da equipe por outro em casos excepcionais. No entanto, ao longo dos anos, tornou-se um instrumento de flexibilidade nas mãos dos empregadores. Quando uma empresa vê seus níveis de atividade caindo, ela pode optar por não renovar contratos temporários. Ao fazer isso,  pode se livrar de alguns de seus funcionários sem precisar entrar em um longo e arriscado processo de demissão coletiva.

Em seu famoso livro O Precariado: A Nova Classe Perigosa, Guy Standing conclui que não é mais apropriado apenas falar em uma divisão na sociedade entre trabalhadores e capitalistas. Segundo Standing, o que estamos vendo é o surgimento de um precariado sob o velho proletariado.

Tudo isso parece sugerir que a Era em que a força de trabalho da maioria das grandes empresas estava empregada em contratos sem prazos definidos acabou. Certamente, a aparência de entregadores que trabalham para Deliveroo ou Foodora, ou motoristas que trabalham para Uber ou Lyft – autônomos, em termos legais, mas dependentes dessas plataformas para seu trabalho – ilustra a fragmentação da força de trabalho assalariada e o aumento da precariedade.

Muitos estudos têm mostrado como os efeitos disso são prejudiciais para a vida das pessoas. Elas não apenas enfrentam dificuldades para satisfazer as suas necessidades imediatas – devido aos muitos períodos sem trabalho – como também lutam para se preparar para o futuro, alugar um lugar para morar e buscar educação e formação no trabalho.

É claro que a sua condição precária debilita a organização sindical. Os trabalhadores temporários são reticentes em se sindicalizar, pois temem que isso signifique que seus contratos não sejam renovados. Gradualmente, a precariedade entra nas fileiras dos próprios sindicatos: em algumas empresas, o núcleo de trabalhadores estáveis ​​é lentamente substituído por temporários. Não é que não haja conflitos envolvendo trabalhadores precários. Mas eles são relativamente raros.

Para alguns, como Standing, a precariedade também tem outros efeitos malignos – com o aumento do populismo de extrema-direita na Europa e nos Estados Unidos entre suas consequências diretas. Na falta de qualquer alternativa real, a desestabilização das classes populares os levaria a procurar bodes expiatórios entre aqueles ainda mais precários: migrantes, desempregados, pessoas LGBT e assim por diante.

No entanto, essa divisão – a separação dos trabalhadores em uma multidão de condições diferentes – não significa algo novo efetivamente. Ela existe de várias formas ao longo da história do capitalismo. Poderíamos até dizer que isso é muito funcional na dinâmica do capitalismo. Qualquer que seja o período em que olhamos, descobrimos que os trabalhadores efetivos, em regime de trabalho formal, sempre coexistiram com seus colegas temporários – e que é preciso lutar por um emprego regular. 

O permanente e o temporário

A precariedade é, em certo sentido, inerente à própria natureza dos contratos de trabalho no capitalismo. Em princípio – no nível jurídico – um trabalhador é livre para negociar o preço de sua própria força de trabalho, supostamente em pé de igualdade com seu empregador. Segundo essa concepção liberal, a relação de emprego – independentemente de assumir ou não a forma de contrato – é, portanto, uma transação comercial entre sujeitos formalmente iguais.

Naturalmente, essa igualdade na lei não se traduz em igualdade na vida real. Karl Marx fez da crítica dessa lei “burguesa” um dos temas centrais de sua obra O Capital. A lei que sustenta “a liberdade para trabalhar” – a liberdade dos trabalhadores de venderem a sua força de trabalho e a liberdade do empregador de empregar quem ele quiser – sempre é a favor do capitalista porque ele pode quebrar o contrato comercial que o vincula a seus trabalhadores a qualquer momento.

Para um exemplo dessa relação precária, podemos observar que na França, pelo menos até a década de 1890, todos os contratos de trabalho eram por tempo limitado. Os patrões, portanto, tinham o direito de demitir seus empregados sem que eles recebessem indenização. O que mudou a partir deste momento foi que os contratos sem prazo para acabar foram criados pela primeira vez, assim como a indenização por demissões.

Somente mais tarde, ao longo do século XX, os contratos de trabalho se associaram a um status de proteção social. Por um lado, os empregadores viram uma vantagem econômica em manter constante parte da força de trabalho. A racionalização do gerenciamento da força de trabalho poderia ser uma maneira de reduzir os custos das empresas. Portanto, era útil formar uma força de trabalho estabilizada e não ter que contratar novas pessoas constantemente.

Por outro lado, por meio de lutas poderosas, o movimento trabalhista conquistou numerosos ganhos sociais, incluindo uma relativa estabilidade no emprego. Mas, claro, isso também levou um tempo. Na França, muitas vezes considerada um centro do movimento trabalhista e do Estado de bem estar social, as medidas para proteger os trabalhadores de demissões coletivas foram introduzidas apenas na década de 1960.

Em 1966, foi estipulado que os conselhos de trabalhadores eleitos pelos funcionários deveriam ser informados e consultados sobre quaisquer planos de reestruturação das empresas e, em 1969, foram introduzidas medidas para limitar os impactos da reestruturação, tais como aposentadoria antecipada e indenização por demissão. Essas medidas procuraram orientar o empregador para soluções que não fossem demissões “diretas”.

A ideia de um emprego estável e de longo prazo é, de fato, algo relativamente novo quando analisamos a história do capitalismo como um todo. Essas medidas apenas foram possíveis devido à força do movimento trabalhista e ao forte crescimento econômico nas décadas do pós-guerra. Depois que isso acabou, os empregos estáveis ​​e de longo prazo no capitalismo pareciam um apêndice dos trabalhos temporários. Hoje, os contratos de trabalho estão cada vez menos associados à proteção social contra as forças do mercado. Os governos e empregadores usam o vocabulário da “mobilidade” e da “liberdade” individual do trabalhador para justificar reformas para flexibilizar o mercado de trabalho.

Muitas vezes, os sindicatos afirmam que os anos que seguiram o pós-guerra – conhecidos na França como “Os Trinta Gloriosos” – foram um período em que o trabalho precário era marginal. Mas o emprego era realmente tão estável na época? Os economistas Peter B. Doeringer e Michael J. Piore mostraram que as coisas eram mais complicadas e que mesmo em sociedades com altos níveis de emprego, certos setores de assalariados não são imunes à precariedade. Nesta análise, o mercado de trabalho é dividido em (pelo menos) dois segmentos, um mercado de trabalho primário e um secundário. No primeiro, os salários são mais altos e os empregos são qualificados, com relativa estabilidade. Neste último caso, pelo contrário, os empregos exigem pouca ou nenhuma habilidade, têm pouca estabilidade e estão sujeitos a uma alta taxa de rotatividade.

A barreira entre esses dois mercados é bastante sólida – e o movimento entre eles é relativamente difícil. No entanto, algumas indústrias são mais vulneráveis ​​à precariedade do que outras. Por exemplo, a indústria automobilística depende de um padrão de trabalho sazonal. Em tempos de crise, centenas de trabalhadores temporários (geralmente jovens e provenientes de famílias migrantes) podem ser demitidos da noite para o dia, apenas retornando à fábrica alguns meses depois, quando as vendas e a produção de automóveis estiverem subindo novamente. E todos, desde chefes a sindicatos e trabalhadores, estão acostumados a isso.

Da mesma forma, novas indústrias em que os sindicatos são fracos ou inexistentes, como o setor de logística, também dependem de uma força de trabalho “flutuante”. Às vezes, as condições de trabalho são tão ruins e os salários tão baixos que os empregadores sabem que ninguém ficará ali mais do que alguns meses.

Essa dualidade – alguns teóricos falam de Balcanizão, uma referência à região dos Balcãs – do mercado de trabalho significa que a estabilidade e a precariedade do emprego normalmente coexistem na economia de mercado. Não há nada fundamentalmente contraintuitivo nessa ideia. Na França, estima-se que hoje cerca de 7 milhões de pessoas pertençam ao mercado de trabalho secundário, de um total de 32 milhões de pessoas que trabalham. Sem surpresa, esses trabalhadores são frequentemente jovens, mulheres e imigrantes.

Precariedade ao longo da história

A precariedade não é uma exceção no capitalismo, nem é nova. Diferentes formas de precariedade estão presentes ao longo da história. Na década de 1930, um contrato de trabalho nem sempre protegia o trabalhador contra a demissão no setor de vendas.

A historiadora francesa Anne-Sophie Beau observa que o Código do Trabalho na França se preocupava apenas com trabalhos manuais. Ela mostra que, até 1936, os contratos dos trabalhadores no Grand Bazar de Lyon (uma loja de departamentos) podiam ser quebrados a qualquer momento, sem aviso prévio ou indenização. Portanto, dois tipos de emprego coexistiram: os titulares, que se beneficiavam do salário de um mês mais oito dias de aviso prévio no caso de demissão, e os auxiliares, que eram pagos por dia. A precariedade foi limitada, a partir de 1936, pelos primeiros contratos coletivos, mas não desapareceu, dadas as estratégias elaboradas que os empregadores desenvolveram para contornar o direito do trabalho.

Pode-se voltar ainda mais na História e observar outras formas de precariedade. No século XIX, quando o ferro ainda era central na economia de certas aldeias, as oficinas metalúrgicas e as fazendas trabalhavam juntas. Isso estabeleceu uma divisão entre os muitos trabalhadores “externos” – geralmente camponeses empregados apenas no inverno para tarefas simples – e os trabalhadores “internos”, como ferreiros, metalúrgicos e laminadores, que se beneficiavam de um emprego por todo ano por terem um ofício.

Essa divisão entre trabalhadores permanentes e temporários esteve presente desde o início da sociedade industrial. A sociedade que nasceu da Revolução Francesa não estava dentro de um simples binarismo entre trabalhadores e patrões. Em vez disso, foi estabelecido um sistema de terceirização ou subcontratação em que um trabalhador individual contratava outros trabalhadores – frequentemente, mas não exclusivamente de sua própria família – para participar da produção. Por um lado, havia os fabricantes, com máquinas e matérias-primas, e, por outro, os trabalhadores-empreendedores, que recebiam matéria-prima e terceirizavam o trabalho para “seus” trabalhadores, o que era realizado em casa ou na fábrica.

Como nos lembra o sociólogo Claude Didry, esse sistema de terceirização existia há muito tempo – e esteve muito presente na indústria francesa de mineração até o final do século XIX. Isso é descrito no famoso romance de Émile Zola, Germinal. No início do romance, vemos um capataz (como a pessoa que terceirizava seu trabalho era chamada na indústria de carvão) contratar Étienne Lantier, a protagonista, junto com outras pessoas para trabalhar na mina. Vemos ao longo do romance como o capataz concorre com outros capatazes sobre o preço do carvão, o que, por sua vez, traz pressão sobre os trabalhadores e reduz os salários.

Plataformas Digitais

As petições e greves funcionaram para exigir a abolição da subcontratação – na França, foi oficialmente abolida pela Revolução de 1848, mas, como vimos, continuou até o início do século XX. Hoje, algumas pessoas traçam paralelos entre essa prática e os arranjos de trabalho de empresas como UberDeliveroo e Amazon. Para empregadores como esses, um contrato formal ou informal é acordado a cada atividade de trabalho (como entrega de refeições, condução de carros ou tradução) a cada dia. No passado, era o trabalhador-empreendedor que organizava o trabalho de outros trabalhadores. Hoje, esse papel é preenchido por uma plataforma digital.

O fato de a precariedade não ser um problema novo não significa que não esteja crescendo – ou que nada pode ser feito para reduzi-la. As lutas dos trabalhadores precários são muitas vezes surpreendentes em sua determinação, aparecendo onde não esperamos. Essas lutas geralmente são iniciadas sem o apoio dos sindicatos, mas depois acabam encontrando neles um apoio valioso. Na França, os motoristas do Uber primeiro se organizaram em associações profissionais antes de ingressar nos mais variados sindicatos. O mesmo se aplica aos entregadores, que se sindicalizaram após uma série de greves. Os trabalhadores precários não são uma ameaça para trabalhadores sindicalizados, ou de forma alguma são separados da classe trabalhadora. Em vez disso, eles estão ajudando a transformar o cenário do sindicalismo.

Juan Sebastian Carbonell ensina sociologia na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne.

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