A agenda é só uma: precarizar o emprego e reduzir os salários, expropriando os salários para que se amplie a mais-valia absoluta.
Francisco Louçã
Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 31/05/2015
O trabalho é o centro da política. Não tanto porque o trabalho determine a política, como devia, mas antes porque a política quer determinar o trabalho e toma essa como uma tarefa prioritária na engenharia social dos nossos tempos.
Repare na agenda dos parlamentos e dos governos. Rapidez na regulamentação da reforma para a terceirização, diz o presidente do Senado brasileiro, Renan Calheiros. Nova lei para despedimentos mais rápidos, diz a Comissão Europeia à Grécia. Flexibilização do “mercado de trabalho”, diz o FMI a todo o mundo. A agenda é só uma: precarizar o emprego e reduzir os salários.
Ora, o trabalho mudou e mudou muito desde o final do século XX. Mudou em dois planos. O primeiro tem sido menos notado: a força de trabalho que produz no mercado e para o mercado capitalista duplicou entre 1980 e 2000. Tratou-se de uma modificação colossal, causada pela entrada da China e dos países da ex-URSS na esfera da reprodução ampliada do capital.
Essa alteração do mapa do mundo permitiu produzir mais e mais barato, deslocando centros de produção e fluxos financeiros e embaratecendo o salário. O que criou uma pressão estrutural de desemprego permanente nas economias mais desenvolvidas, que se vai refletir também na América Latina. É assim que vamos viver nos próximos anos.
Um economista marxista, Costas Lapavitsas, chamou “expropriação salarial” a este processo, que essencialmente consiste numa ampliação da mais-valia absoluta, a exploração direta do trabalho com a transferência de valor do salários para o capital. É uma mudança que terá grandes consequências nos equilíbrios e desequilíbrios mundiais ao longo do nosso século.
O segundo plano em que as normas sociais do trabalho mudaram foi nos avanços da agenda das “reformas estruturais”, nos termos do FMI, e que consistem invariavelmente na redução do salário direto e do salário indireto (através do aumento da carga fiscal ou do custo de bens comuns, como a educação, transportes ou saúde), garantindo-se que se cria uma nova normalidade que exclui a reivindicação dos trabalhadores. Para isso, aumentar o desemprego permanente ou ameaçar os trabalhadores contratados com uma regra de terceirização é um instrumento poderoso e indispensável.
E é aí que entram Calheiros e os seus cavaleiros de alegre figura: eles querem simplesmente desarticular a proteção coletiva que é dada pelo contrato ou, simplesmente, pela existência do sindicato. Como a CUT e a DIEESE demonstraram, o trabalho terceirizado implica em média mais três horas de trabalho por semana, menos 27% de salário, maior risco de acidente mas, sobretudo, total vulnerabilidade perante o poder patronal. Assim, uma economia baseada em trabalho terceirizado é uma economia sem produtividade, sem inovação e sem competências, mas certamente de trabalho disciplinado, silencioso e temente. O admirável mundo novo que Calheiros anuncia é o regresso aos Tempos Modernos de Chaplin.
Se esta economia de pirateamento pode ou não triunfar, já veremos. Mas, precisamente porque a força de trabalho duplicou no mercado capitalista, há pelo menos alguém que sabe o que está a fazer e que não hesita em utilizar todo o arsenal de destruição social que o poder lhe entrega para as mãos. Se o movimento social e a democracia vão conseguir resistir a estes avanços, isso vai-se decidir em cada momento, como na resistência à lei da terceirização no Brasil ou a uma nova lei dos despedimentos na Grécia.
O mundo está perigoso.
Francisco Louçã, nascido em Lisboa, economista, professor universitário. Foi deputado (1999-2012). Os últimos livros que publicou foram “Os Burgueses” (Bertrand, 2014, com J. Teixeira Lopes e J. Costa) e “A Solução Novo Escudo” (Lua de Papel, 2014, com João Ferreira do Amaral).