O trabalho na limpeza urbana na pandemia

Fotografia: PMRJ/Fotos Públicas

O vírus como ameaça invisível a sujeitos invisíveis.

Gabriela Neves Delgado, Renata Queiroz Dutra e Helena Martins de Carvalho

Fonte: Jota
Data original da publicação: 23/05/2020

Em tempos da pandemia causada pela Covid-19, o reforço à essencialidade do trabalho de limpeza urbana para a dinâmica constitutiva das cidades, em seus espaços públicos e privados, nos provoca a compreendê-lo para além da superfície.

Em conversa informal, uma trabalhadora terceirizada na coleta de lixo urbano em condomínios residenciais da classe média de Brasília relata sua satisfação com a implementação do uso de máscaras nesse período de pandemia.

Em sua narrativa, entretanto, a trabalhadora não identificou o papel da máscara como equipamento de proteção individual obrigatório contra a contaminação pelo coronavírus, mas sim como um instrumento de redução do incômodo causado pelo odor do lixo: muito perceptível, concreto e próximo da realidade dos trabalhadores da limpeza urbana.

Parte significativa do sofrimento engendrado por esse tipo de trabalho, independentemente da pandemia, consiste na confusão entre o sujeito trabalhador e o lixo, enquanto objeto de trabalho.

Nesse contexto, a repulsa e a indiferença da sociedade aos seus próprios rejeitos e resíduos misturam-se à relação de invisibilidade e descrédito socialmente estabelecida com os trabalhadores da limpeza urbana. Assim, a ideia de invisibilidade se coloca não apenas como aquilo que não se pode ver, mas também como o que não se deseja ver.

O coronavírus, embora seja uma ameaça invisível, infelizmente passou a dizer respeito a toda a coletividade, de modo global: é o elemento que ameaça a vida, que faz suportar as ausências, que justifica o isolamento e a distância entre as famílias, que transforma radicalmente o cotidiano em prol da precaução contra o contágio.

Já a invisibilidade social, segundo explica Nancy Fraser, está relacionada a conceitos simbólicos do não reconhecimento no trabalho e pelo trabalho, sustentados por motivações psicossociais de caráter pré-reflexivo.

Trata-se de dinâmica excludente, materializada por injustiças culturais-valorativas presentes no mundo do trabalho, arraigada a práticas representacionais, comunicativas e interpretativas fundadas na ausência de reconhecimento social e jurídico dos trabalhadores invisibilizados[1].

Entre os efeitos nefastos da invisibilidade destacam-se a desvalorização simbólica e material do trabalho exercido, a ausência de uma identidade de classe – o que dificulta a mobilização a nível coletivo –, e a marginalização da proteção justrabalhista[2].

A experiência do real demonstra que trabalhadores da limpeza são sistematicamente invisibilizados nos espaços coletivos de convivência urbana e, sobretudo, em seus trabalhos. Apesar de experimentarem as cidades – e de cuidarem delas, porque as limpam cotidianamente –, não são reconhecidos quanto à importância e à utilidade de seu ofício.

Essa cegueira social é amparada, principalmente, no estigma do trabalho com o lixo. Pelo olhar hegemônico, é como se houvesse uma natural segmentação entre quem é de dentro e quem é de fora.

Esse estigma conforma também a própria subjetividade dos trabalhadores que laboram no segmento, sobretudo devido às constantes percepções de rejeição, não pertencimento, nojo e indiferença.

A lógica da invisibilidade ainda se projeta no lixo que é produzido nas cidades. A predominância de uma cultura de consumismo desenfreado, acrescida à cultura da obsolescência programa, impedem a formação de uma consciência ecológica que implique em diminuição do consumo, reutilização do que é consumido, reciclagem e compostagem. Impossibilitam, também, a práxis de uma consciência cidadã e de alteridade, em respeito ao outro, aquele responsável pelo trabalho e manuseio do lixo descartado.

O contato físico com o lixo, seja por meio do tato, da visão ou do olfato, desperta outro aspecto peculiar a essa rotina de trabalho – o nojo –, uma emoção básica que difere de outras emoções devido à sua faceta aversiva, que invoca uma forte experiência sensorial de ser colocado em perigo pelo repulsivo, de estar bem perto dele, sentir seu odor, vê-lo ou tocá-lo[3].

gestão do nojo, assim compreendida como a habilidade de administrar essa emoção básica, e que resulta em um processo de apropriação e controle da intimidade do trabalhador pelo capital[4], é uma demanda subjetiva dessa atividade, de modo que, no contexto de contato direto e permanente dos trabalhadores com o lixo, a capacidade emocional de administração do nojo torna-se um importante atributo a ser identificado na gestão estrutural do trabalho[5].

A ideia de “trabalho ou gestão das emoções” foi formulada pela socióloga Arlie Hoschshild, na década de 1980, e consiste na tentativa de mudar o grau ou a natureza daquilo que se sente[6]. A pesquisadora explica que o problema não está no trabalho emocional em si, mas no sistema subjacente de relações entre capital e trabalho que resulta no custo psicossocial dessa gestão de emoções. A questão torna-se, portanto, um problema social quando a gestão das emoções é vendida como trabalho[7].

O usuário do serviço de limpeza pública pode sentir nojo do odor do caminhão de lixo, ou do contato com substâncias e restos descartados nas ruas. O trabalhador na limpeza urbana, no entanto, precisa transmutar o sistema emocional que é inerente à sua individualidade, como dimensão de sua personalidade, de modo que sua resistência ao sentimento de nojo possa ser utilizada com valor de troca, na medida em que essa capacidade interfere diretamente na continuidade e eficácia do serviço prestado[8].

À materialidade que dá origem ao sentimento de nojo no trabalho com o lixo (papel higiênico, fraldas, absorventes e preservativos usados, alimentos em decomposição, objetos perfurocortantes, chorume, ratos e baratas), adicionam-se ameaças de danos de natureza física, química, biológica, ergonômica, e mecânica[9], já que a dinâmica do trabalho na limpeza urbana submete o trabalhador corriqueiramente a diversos riscos ocupacionais.

Entretanto, toda essa demanda subjetiva dos trabalhadores na limpeza urbana não é objeto habitual de atenção por parte da sociedade beneficiária desse serviço, tampouco do Estado, que não empreende discussões públicas em frequência e profundidade compatíveis com a problemática ecológica do descarte, acúmulo e reciclagem do lixo urbano produzido em volume absurdo por uma sociedade de consumo, que acaba por engajar, no processo de gestão do lixo, sujeitos tanto mais vulneráveis quanto maior a sua proximidade com os depósitos finais dos resíduos sólidos.

Por trás de uma cidade limpa, para além dos trabalhadores informais, estão os coletores, varredores e catadores de resíduos sólidos – e não os “lixeiros”, afinal, a função desses trabalhadores é a de limpar as cidades e não a de sujá-las… Na linha teórica de Boaventura de Sousa Santos, compreende-se que essa identificação pejorativa, que desqualifica o sentido do trabalho realizado e inferioriza aquele que o realiza, situa o trabalhador da limpeza urbana numa condição de subalternidade tida por insuperável, porque considerada natural[10].

Em mais um dos seus descortinamentos, a pandemia do coronavírus, que tem explicitado inúmeras desigualdades sociais, trabalhistas e ambientais, reclama que é preciso ver para além do que o olhar alcança. É preciso romper com as dinâmicas de “credibilidade exclusivista das práticas hegemônicas” para “transformar as ausências em presenças”[11].

Por trás do retrato do trabalho na limpeza urbana existem relações de trabalho que aprofundam os modelos de exploração capitalista hegemônicos, com a presença massiva de negros ou pardos, com parca escolaridade e baixa renda mensal[12], e que são vitais ao funcionamento de uma sociedade constituída pela divisão social do trabalho.

Na perspectiva da sociologia das ausências, e neste aspecto dialogando mais uma vez com Boaventura de Sousa Santos[13], é preciso “revelar a diversidade e multiplicidade das práticas sociais” para perceber que os trabalhadores da limpeza urbana constituem o sentido de comunidade das cidades onde vivem e trabalham.

A pandemia do coronavírus se difundiu num mundo poluído, onde há cada vez “mais pressão, mais estímulo, mais barulho, mais mídia, mais distração”[14] e mais lixo. Também encontrou um mundo fragmentado, individualista e desigual que, para se reerguer, precisa de estratégias coletivas e solidárias.

Essas estratégias, entretanto, não podem se limitar ao período da pandemia e sua desejada superação: elas precisam se transfundir como premissa do mundo pós-pandemia, que, para ser efetivamente novo, não pode aceitar voltar a ignorar aquilo que forçosamente teve de enxergar durante a crise.

Para isso, será preciso romper com a superfície e resgatar o sentido de humanidade, o que requer olhar para o outro e, sobretudo, reconhecer e valorizar o lugar e a importância do trabalho que o constitui.

Notas

[1] FRASER, Nancy. Da Redistribuição ao Reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In: SOUSA, Jessé (ed). Democracia Hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UnB, 2001, p. 250. Esse e outros conceitos trabalhados nesse artigo foram desenvolvidos, de forma autoral, na dissertação de mestrado de Helena Carvalho Martins, recentemente defendida perante o Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília: CARVALHO, Helena Martins de. A Dimensão da Saúde no Direito Fundamental ao Trabalho Digno: uma análise justrabalhista do trabalho na limpeza urbana do Distrito Federal. Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Direito. UnB. Orientadora: Gabriela Neves Delgado. 2020.

[2] CHERRY, Miriam A.; CRAIN, Marion; POSTER, Winifred R.  Introduction: conceptualizing invisible labor. In: CHERRY, Miriam A.; CRAIN, Marion; POSTER, Winifred R. (ed.). Invisible labor: hidden work in the contemporary world. Estados Unidos: University of California Press, 2016, p. 5.

[3] MILLER, William Ian. The anatomy of disgust. Cambridge, Harvard Press: 1997, p. 6-9. Em complementação, consultar: CARVALHO, Helena Martins de. A Dimensão da Saúde no Direito Fundamental ao Trabalho Digno: uma análise justrabalhista do trabalho na limpeza urbana do Distrito Federal. Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Direito. UnB. Orientadora: Gabriela Neves Delgado. 2020.

[4] CARVALHO, Helena Martins de. A Dimensão da Saúde no Direito Fundamental ao Trabalho Digno: uma análise justrabalhista do trabalho na limpeza urbana do Distrito Federal. Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Direito. UnB. Orientadora: Gabriela Neves Delgado. 2020.

[5] A respeito do tema, conferir: PADILHA, Valquíria. A demanda por trabalho emocional diante do nojo: um estudo com trabalhadores de limpeza de shopping centers. In: LIMA, Jacob Carlos (org.). Outras sociologias do trabalho: flexibilidades, emoções e mobilidades. EduFSCar, São Carlos, 2013, p.183-211.

[6] HOCHSCHILD, Arlie Russel. Managed Heart: commercialization of human feeling. Estados Unidos: University of California Press, 2003, p. 3-23.

[7] Ibidem, p. 11-12.

[8] Ibidem, p. 19.

[9] BRASIL. Ministério da Saúde. Organização Pan-Americana da Saúde no Brasil. Doenças relacionadas ao trabalho: manual de procedimentos para os Serviços de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2001.

[10] SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro 2020, 237-280. Inwww.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF. p. 248.

[11] Ibidem, p. 246.

[12] Os que sobrevivem do lixo. IPEA – Revista Desafios do Desenvolvimento. 2013. Ano 10. Edição 77. Acesso em: http://desafios.gov.br/index.php?option=com_content&view=article%id=2941:catid&Itemid=23

[13] SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro 2020, 237-280. Inwww.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF. p. 246.

[14] Minimalism: A Documentary About the Important Things. 2015. Lançamento em 2016. Direção: Matt D’Avella.

Gabriela Neves Delgado é professora Associada de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da UnB. Pesquisadora coordenadora do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania (UnB/CNPq).

Renata Queiroz Dutra é professora Adjunta de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da UnB. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania (UnB/CNPq).

Helena Martins de Carvalho é mestra em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania (UnB/CNPq). Servidora do Tribunal Superior do Trabalho.

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