O trabalho infantil esportivo: entre a glamourização e a barbárie

O esporte de alto rendimento deve ser caracterizado como uma das piores formas de trabalho infantil.

Arianne Figueiredo e Zéu Palmeira Sobrinho

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 29/10/2021

Alguns fatos ocorridos em 2021, durante as Olimpíadas do Japão, trouxeram à tona  reflexões que correlacionam o trabalho infantil e o esporte de alto rendimento. É nesse contexto que o presente artigo busca partilhar saberes e informações que colocam em xeque o modo como parte da sociedade glamouriza a atividade e os resultados de crianças e adolescentes em esportes hipercompetitivos.

O primeiro fato a ser destacado nos jogos olímpicos foi a participação de adolescentes, tais como a skatista maranhense Rayssa Leal e a  jogadora síria  de tênis de mesa Hend Zaza, ambas com 12 anos de idade. 

O segundo fato diz respeito ao modo como a ginasta estadunidense Simone Biles, 24 anos, desistiu de atuar em várias modalidades da competição, coincidentemente dias antes da mesma depor perante o Congresso dos EUA e denunciar a violência sexual, perpetrada por integrantes da comissão técnica, contra si e as atletas adolescentes da sua equipe.

Um terceiro fato foi a reação de duas personalidades, ante a medalha de prata obtida pela adolescente Rayssa Leal. A primeira foi do deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) que fez a defesa do trabalho infantil e a necessidade de modificação do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. A segunda foi Pedro Barros, skatista profissional desde os 13 anos, dizer que defende a idade mínima para skatistas, pois em razão de muito precocemente ter que competir em alto nível, teve a sua saúde mental afetada profundamente (GABRIEL, 2021).

Os fatos mencionados acima desafiam o enfrentamento das seguintes questões: 

  • O esporte de alto rendimento é adequado para crianças e adolescentes? 
  • A atividade esportiva de alto rendimento, para crianças e adolescentes, é uma espécie de trabalho infantil?

As indagações ora propostas devem ser enfrentadas no contexto de observância do princípio da proteção integral da criança e do adolescente, previsto no art. 227, da Constituição Federal de 1988.

A caracterização da adolescência e do esporte de rendimento

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a fase da adolescência vai dos 10 aos 20 anos incompletos. Para o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, a adolescência se inicia aos 12 aos de idade e vai até os 18 anos incompletos. Para a literatura médica, os marcos cronológicos que separam a segunda infância (crianças pré-púberes) e o início da puberdade não são rígidos porque a adolescência é mais do que um fenômeno temporal ou psíquico, é sobretudo um processo existencial e complexo que envolve alterações físicas, cognitivas, afetivas e psicossociais. 

As dificuldades para a caracterização do início ou do término da adolescência, a despeito da oscilação decorrentes dos diferentes estágios puberais, devem ser interpretadas sempre do modo mais consentâneo com a proteção do adolescente em sua relação com os esportes (PALMEIRA SOBRINHO, 2012).  

A Lei Pelé, que trata do atleta em formação, diz em seu art. 3º que o desporto pode ser reconhecido em qualquer das seguintes espécies: desporto educacional; desporto de participação; desporto de rendimento; e desporto de formação. 

O desporto de rendimento é caracterizado pela especialização esportiva que evolve intensa preparação, sob os aspectos físicos, técnicos e táticos para o desenvolvimento de habilidades e performances que possibilitem ao atleta competir com expectativa de obtenção de status, vitórias, medalhas, torneios e reconhecimentos (PALMEIRA SOBRINHO, 2019). 

No cotidiano de crianças e adolescentes, em esportes de alto rendimento, estão presentes os requisitos fundamentais do vínculo de emprego, a saber: a pessoalidade, haja vista que o atleta não pode delegar a terceiros as atividades; a continuidade, em face da preparação diferida no tempo; e a subordinação, em razão da disciplina de treinamentos, eventos, tarefas, horários, etc. O reconhecimento do vínculo de emprego é uma forma de proteção constitucional (art. 227, CF). Assim, ainda que a lei ordinária diga que no contrato de formação desportiva não há vínculo de emprego, cabe a autoridade fiscalizar e exigir que a suposta entidade formadora comprove que a prática esportiva não compromete o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente.

Os impactos do esporte de alto rendimento sobre crianças e adolescentes

Os pediatras Alves e Lima (2008), considerando o estado de arte das pesquisas que tratam dos impactos do esporte de rendimentos sobre crianças e adolescentes,  destacam o seguinte:  

  • A atividade física intensa tende a inibir a produção hormonal do GH-IGF-1 em adolescentes e, em consequência, inibir o crescimento, o desenvolvimento puberal, a função reprodutiva, a mineralização óssea, a produção dos hormônios da tireóide, do pâncreas, do fígado, do hipotálamo e do trato gastroinstestinal;
  • Na busca do alto rendimento, adolescentes estão a fazer uso de anabolizantes esteróides, tornando-se suscetíveis a: tromboses (p. ex. infarto do miocárdio ou acidente vascular cerebral); o fechamento precoce das cartilagens; a masculinização nas meninas (hirsutismo, acne, hipertrofia de clitóris, etc); calvície precoce, ginecomastia, atrofia testicular, redução da espermatogênese nos meninos. (ALVES & LIMA, 2008);
  • a atividade física excessiva ou inadequada compromete a saúde e o desenvolvimento motor do adolescente, em face do maior risco de: lesões como osteocondrose e fraturas; nas meninas tende a provocar hipoestrogenismo, menarca tardia, disfunção menstrual, oligomenorréia e amenorréia.

Outros riscos são acrescentados pela literatura da educação dos esportes (SOUTO, 2002), tais como: a baixa do rendimento ou evasão escolar; o prejuízo à socialização e à convivência comunitária e familiar, em razão da rotina de treinamentos e competições; o desenvolvimento de ansiedade, pânico, medo e insegurança em face das cobranças por performances, metas ou resultados a serem alcançados. Apesar dos riscos mencionados, não tem sido incomum que agentes econômicos utilizem de meios antiéticos para cooptar profissionais, inclusive das áreas da saúde e da mídia, para a defesa da prática dos esportes competitivos como fator que traz mais efeitos positivos do que negativos para as crianças e adolescentes.

Uma das piores formas de trabalho infantil

O esporte de alto rendimento deve ser caracterizado como uma das piores formas de trabalho infantil, na medida em que envolver, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, atividades suscetíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança e do adolescente, conforme art. 3º, alínea “d”, da Convenção 182, da OIT. 

A atividade esportiva de alto rendimento tende a deixar os atletas mais suscetíveis a riscos de lesões, acidentes graves, privações, abusos físicos e psicológicos capazes de sequelar definitivamente a vida da criança e do adolescente.  

Para se assegurar à criança e ao adolescente uma prática esportiva saudável, é urgente observar as seguintes recomendações: 

a) Em nenhuma situação a prática de esporte de rendimento deve ser tolerada para  a criança, tendo em conta a incompatibilidade entre a carga de atividades que esta deve suportar e os exercícios e treinamentos envolvidos na aludida modalidade;

b) Deve ser proibida a prática desportiva que, independentemente de sua classificação formal, traga potenciais riscos ao pleno desenvolvimento das crianças e dos adolescentes;

e) Incumbe ao Estado, por meio da sua rede proteção social, estruturar-se com equipes multiprofissionais, integradas por pediatras, pedagogos, psicólogos e profissionais de educação física, para autorizar, sempre em caráter excepcional, acompanhar e monitorar as práticas esportivas realizadas por adolescentes em esportes de rendimento;

c) A prática esportiva da criança e do adolescentes, além de ser orientada pelo princípio da precaução, deve observar a aplicação do art. 227 da Constituição Federal e das Convenções 138 e 282, da OIT, sem prejuízo da aplicação de leis infraconstitucionais como o ECA, a Lei 9615/1998 e o seu regulamento da Lei Pelé, constante do Decreto 7984/2013;

d) o princípio da proteção do direito do trabalho não pode deixar de ser aplicado, quando necessário, nos casos de fraude ou ilicitude nos contratos esportivos, acarretando assim o reconhecimento do vínculo de emprego e a aplicação das normas trabalhistas;

Arianne Figueiredo é médica pediatra e diretora da Clínica da Criança, em Natal-RN.

Zéu Palmeira Sobrinho é juiz do trabalho, professor da UFRN e integrante da AJD (Associação Juízes para a Democracia).

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