Para promover a igualdade social é imperioso insistir na presença dos adolescentes na sala de aula e não no chão da fábrica, no meio do campo, na frente do semáforo vendendo doces ou na feira empurrando carrinhos.
Eleonora Bordini Coca
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 18/12/2020
Os redatores que me antecederam nessa coluna semanal do Justificando já nos situaram sobre a desconstrução de conquistas sociais no Brasil, sobretudo depois de 2016.
Cada texto aqui publicado nos ajudou a compreender o aprofundamento do nosso quadro de injustiça social. Precisamos lidar, diariamente, com notícias de abandono de políticas públicas, extinção de órgãos fiscalizadores, discursos de nova flexibilização da legislação do trabalho, entre tantos outros. Aliás, em relação a esta última, como já explicado à exaustão nessa coluna, a Lei nº 13.467/17, que abalou os pilares do direito do trabalho, até hoje não cumpriu sua promessa de criar os milhares de empregos. Ora, não se criam empregos retirando direitos! Empregos surgem com o crescimento da economia, com investimentos públicos e privados. Até quando suportaremos mentiras – ou “fake news” – para explicar a precarização de direitos duramente conquistados?
Conforme divulgado pela mídia brasileira, no dia 17/03/2019, em evento realizado em solo americano, o Presidente de República admitiu expressamente o início de um projeto de desconstrução. Esse projeto segue seu curso, sem encontrar pedras no meio caminho. A destruição da Amazônia, do Pantanal ou a morte de mais de 179 mil brasileiros por Covid-19 são resultados desse discurso colocado em prática.
Mas, hoje, eu gostaria de convidá-los a ajustar a lente da câmera e direcioná-la para um ponto específico, pouco comentado e extremamente importante desse processo descivilizatório: o trabalho infantil.
Sabemos que a Constituição Federal impede o trabalho de adolescentes com menos de 16 anos, salvo na condição de aprendizes (artigo 7o. XXXIII). Antes da Emenda 20/2018, era proibido o trabalho de menores de 14 anos. O aumento da idade mínima para 16 anos foi objeto de ADI ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria em 1999 (ADI 2096). Na visão dessa entidade sindical, o trabalho dos adolescentes com menos de 16 anos seria imprescindível à sobrevivência e ao sustento do próprio adolescente e de sua família. Diz a entidade: “é melhor manter o emprego do que ver passando fome o próprio menor e, não raras vezes, a sua família”.
A ação direta acabou de ser julgada improcedente por unanimidade pelos ministros do STF, cujo julgamento virtual se encerrou às vésperas do Dia das Crianças deste ano, ou seja, em 09/10 p.p.
Do voto do relator, Ministro Celso de Mello, trago a seguinte passagem:
“As sequelas físicas, emocionais e sociais infligidas à criança e ao adolescente em decorrência da exploração do trabalho infantil, justificam a proteção especial e prioritária destinada a esse grupo vulnerável, cabendo enfatizar que a exploração abusiva do trabalho infantojuvenil, quando atinge a população economicamente desvalida, revela toda a perversidade de suas consequências, afastando a criança e o adolescente da escola, cujo ensino traz consigo todo o encantamento do saber e o horizonte da esperança, impondo-lhes a privação da infância , em ordem a dedicarem-se , entre as piores formas de trabalho infantil , às condições insalubres da mineração, ao esgotamento físico dos serviços rurais e do trabalho doméstico, aos riscos da construção civil, aos acidentes nos abatedouros de animais, sujeitando as pequenas vítimas desse sistema impiedoso de aproveitamento da mão-de-obra infantil à necessidade de renunciar à primazia de seus direitos em favor das prioridades da classe patronal.”
O alerta do Ministro é atual! O trabalho infantil traz consequências severas, em especial, quando atinge a população “economicamente desvalida”. A despeito do avanço civilizatório constitucional e da posição da Suprema Corte, a sociedade continua tolerando e se aproveitando dos nossos cidadãos de tenra idade. O discurso em defesa do trabalho infantil é mais uma monstruosidade que perdeu a vergonha de se esconder. O lobo mau saiu detrás da árvore e não fica constrangido de engolir a vovó e a Chapeuzinho.
Em 25 de agosto p. p., o Presidente da República, num congresso promovido por uma associação de bares e restaurantes, disse: “Bons tempos, né? Onde o menor podia trabalhar. Hoje ele pode fazer tudo, menos trabalhar, inclusive cheirar (sic) um paralelepípedo de crack, sem problema algum.” Foi aplaudido pelos empresários do ramo.
Salim Matar, presidente da Localiza Hertz, em entrevista para a jornalista Leda Nagle criticou a proibição do trabalho infantil e, no fim, afirmou: “Essa lei vem prejudicar quem? Vem prejudicar exatamente aqueles que deveriam começar a trabalhar mais cedo, que não são os filhos de empresário nem de quem tem negócio” (entrevista concedida em 22 de agosto de 2020).
Notem: o exemplo dado pelo empresário é justamente aquele que Sua Excelência, o Ministro Celso de Mello, apontou como o mais deletério. O entrevistado admite que devem trabalhar os meninos que não são os filhos de empresários. Essa visão não está restrita ao Sr. Matar, lamentavelmente. É a mesma defendida na citada ADI e propagada pelo senso comum dos senhores e senhoras de mesas bem servidas.
E angustia saber que estamos andando no escuro desde 2017, quando o IBGE parou de divulgar os dados sobre o trabalho infantil. Depois de muita pressão de entidades que lidam com o tema, o Instituto divulgou nota se comprometendo a cumprir seu papel de informar a sociedade a respeito do trabalho infantil no próximo dia 17 de dezembro, ou seja, bem próximo à publicação deste texto. Portanto, estamos trabalhando sem informações objetivas e com a desconfiança de que o trabalho infantil cresce e, provavelmente, no meio da população mais vulnerável.
A última pesquisa divulgada em 2016 realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dizia que cerca de 1,8 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos trabalhavam no Brasil naquele ano. Deste total, 54,4% (998 mil) estavam em situação de trabalho infantil, sendo 190 mil por terem de 5 a 13 anos, e outros 808 mil entre 14 e 17 anos por trabalharem sem registro na carteira.
A professora Lilia Moritz Schwarcz na excelente obra “Sobre o Autoritarismo Brasileiro”, ao abordar a desigualdade social, explica:
“São muitos os fatores que explicam a nossa desigualdade social, mas, entre eles, as políticas educacionais continuam a funcionar como um importante gatilho de reprodução das desigualdades. Atualmente, três em cada dez crianças abandonam a escola e, destas, quase a totalidade provém de áreas economicamente desfavorecidas (…)
Essa forma de desigualdade social, expressa a partir da formação escolar irregular, se aguça quando interseccionada com a dependência de renda de uma pessoa adulta com baixo nível de escolarização. Segundo especialistas, cada ano de escolaridade implica um aumento de renda da ordem de 10% a 20%. Também a qualidade da educação, medida, por exemplo, com base no nível dos docentes, tem capacidade de contribuir com cerca de 50% na renda das pessoas que possuam o mesmo nível de formação escolar” ( Schwarcz, Lilia Moritz – Sobre o autoritarismo brasileiro – 1a. Ed – São Paulo: Companhia das Letras, pg. 149).
Assim, para promover a igualdade social é imperioso insistir na presença dos adolescentes na sala de aula e não no chão da fábrica, no meio do campo, na frente do semáforo vendendo doces ou na feira empurrando carrinhos. Afinal, cada ano de escolaridade pode significar 20% de acréscimo de renda, isso sem falar no crescimento intelectual do ser humano.
É inadmissível que um país com mais 13,5 milhões de desempregados adultos insista na legitimação do trabalho infantil. Sabemos que são os adolescentes os mais facilmente explorados e mais mal remunerados (quando recebem algum salário). Essa é a verdadeira intenção camuflada pela defesa do trabalho precoce.
O site “Repórter Brasil”, em agosto deste ano, trouxe o drama dos enroladores de cigarro em Minas Gerais. Vamos olhar para Cecília (nome fictício) que : “Aos 13 anos, (…) aumentou sua carga de trabalho enrolando cigarros de palha durante a pandemia, já que fica mais tempo em casa com as aulas presenciais suspensas. ´Sinto muita dor nas costas´, reclama, enquanto trabalha sentada na calçada de sua casa, em Pitangui, a 130 quilômetros de Belo Horizonte. Sem máscara e usando uma faca para ajudá-la a enrolar, ela conta que sua família ganha R$ 100 por semana por dois mil cigarros enrolados. O valor é pago por um intermediário, que faz a ponte com as fabricantes.”.
Qual a chance de Cecília concorrer em condições de igualdade, no trabalho ou nos desafios da vida, com os outros adolescentes que completaram o ensino médio ou superior? Todos nós sabemos a resposta.
A chaga do trabalho infantil é mais uma forma de conservar nosso intolerável quadro de injustiça social. Se desejamos mesmo viver uma sociedade democrática, é indispensável cuidar das sementes, adubar as plantas, investir na formação escolar dos meninos e das meninas.
Enquanto eu escrevo esse texto, o lindo “AmarElo – É tudo para ontem” , filme do talentoso Emicida, foi lançado num canal de streaming. Entre tantas histórias maravilhosas, a película nos conta a de Lélia Gonzalez, mulher negra, intelectual, professora e antropóloga, que se recusou a trabalhar como doméstica quando tinha apenas doze anos. Lélia mudou seu próprio destino e contribuiu com seus estudos sobre as questões de raça, gênero e interseccionalidade.
Se queremos que mais Lélias floresçam entre nós, passou da hora de cuidar das Cecílias e dos Paulos, das meninas e dos meninos. E o primeiro passo é não permitir mais um descumprimento da Constituição da República.
Eleonora Bordini Coca é desembargadora do Trabalho do TRT 15a. Região e membra da AJD (Associação Juízes para Democracia).