O trabalho escravo é uma realidade no Brasil. E não há uma pessoa presa por isso

Entre 1996 e 2013, mais de 50 mil trabalhadores explorados em condições análogas à escravidão foram libertados no Brasil. No entanto, em 2016, não há sequer um responsável pelos crimes preso. Nenhum dos poucos condenados cumpriu pena até o fim.

Enquanto isso, a bancada ruralista questiona a atual definição de trabalho escravo do Código Penal, ainda que ela seja elogiada por órgãos nacionais, como o Ministério Público do Trabalho, e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Apesar das políticas públicas de combate ao trabalho escravo reconhecidas internacionalmente, especialistas temem que o país caminhe para um retrocesso. Os congressistas a favor da mudança do texto atual argumentam que uma definição mais específica do que é trabalho escravo vai garantir que inocentes permaneçam livres e os culpados sejam realmente punidos.

O que é considerado trabalho escravo contemporâneo

Do período colonial até o final do império, o Estado brasileiro tolerava a posse de uma pessoa por outra. Indígenas e negros trazidos da África foram as principais vítimas desse período. Os navios negreiros comercializaram pelo menos Cinco milhões de africanos com o Brasil durante esse período, entre os séculos 16 e 19.

Em 1888, com a Lei Áurea, o trabalho escravo formal se tornou ilegal. O Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão. Hoje, o que chamamos de trabalho análogo à escravidão não define apenas atividades em que o trabalhador não recebe salário ou trabalha obrigado, como era o caso das relações de exploração do Brasil colonial e imperial.

Segundo o Código Penal Brasileiro, é considerado trabalho escravo qualquer atividade cujas condições do trabalhador atentem contra a dignidade humana.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, é crime submeter o trabalhador a condições degradantes, jornada exaustiva, servidão por dívida ou qualquer tipo de trabalho forçado. Leia:

“Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador.”

Código Penal Brasileiro

O texto da lei ampara bem os trabalhadores brasileiros: não é um conceito frágil ou abrangente demais. Além disso, a Organização Internacional do Trabalho e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas consideram boa a definição usada pelo Brasil.

Reforça o aparato legal relativo ao tema o fato de que a Declaração Universal de Direitos Humanos e a Constituição Federal contém artigos que repudiam o trabalho em condições análogas à escravidão, direta ou indiretamente. Na Constituição Federal Brasileira, o artigo 1º garante a dignidade da pessoa humana e no artigo 5º diz que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.

Em 1995, o Brasil se tornou um dos primeiros países do mundo a reconhecer a existência de trabalho escravo. Desde então, até 2014, cerca de 50 mil trabalhadores em condições degradantes foram resgatados.

Qual o perfil do trabalhador escravo contemporâneo no Brasil

De acordo com a ONG Repórter Brasil, responsável pelo projeto Escravo Nem Pensar, que combate o trabalho escravo através de ações educativas, as vítimas de trabalho escravo no Brasil são pessoas em situação de extrema vulnerabilidade socioeconômica.

Em comum, muitos dos trabalhadores resgatados de situações degradantes de trabalho são analfabetos ou têm baixa educação formal, têm pouca noção de direitos humanos e trabalhistas, além de perspectivas sociais limitadas. Muitas vezes, são imigrantes em situação irregular.

Como se dá a escravidão contemporânea

Tanto nas situações de trabalho escravo urbano, em atividades terciárias como construção civil e indústria têxtil, quanto no rural, que abrange pecuária, agricultura, carvoarias e madeireiras, os trabalhadores são aliciados pelos chamados “coiotes”.

Esses indivíduos buscam cidadãos em condições vulneráveis e lhe ofertam falsas vagas de emprego. O trabalhador, muitas vezes, só descobre o problema quando chega ao local de trabalho.

Lá, o funcionário é informado que “contraiu uma dívida”, seja pelo transporte, por ferramentas de trabalho ou até por alimentação. Essas cobranças, indevidas, são descontadas do salário que o trabalhador deveria receber. Algumas vezes, o empregador também “sequestra” os documentos do empregado.

Por isso, mesmo diante de alojamento precário, alimentação ruim, falta de assistência médica, jornadas exaustivas e maus tratos, o empregado fica impedido de se demitir.

São esses os mecanismos que coíbem a liberdade desses trabalhadores. Sem dinheiro, ameaçados e sem consciência de seus direitos trabalhistas, os explorados ficam “presos” a um emprego em que enfrentam maus-tratos e péssimas condições.

Quando conseguem escapar, voltam à condição anterior de miséria, o que os torna alvo fácil para outro trabalho na mesma condição. “Quando consegue voltar para sua terra natal, se encontra novamente em uma situação de vulnerabilidade e acaba aliciado para outro emprego em condições degradantes. Por isso, é preciso quebrar o ciclo”, explica a Repórter Brasil.

O aumento da imigração no Brasil nos últimos 15 anos aumentou o problema. Em extrema situação de vulnerabilidade social, sem amparo do Estado e contatos em uma terra longe da sua, imigrantes são alvos fáceis para os coiotes.

Onde há mais registros de trabalho escravo no país

No Brasil, o trabalho escravo é um problema tanto das regiões rurais remotas quanto das grandes cidades. O Pará é o estado com mais libertações de trabalhadores escravizados: desde 1995, mais de 12 mil deles foram libertados. Mato Grosso vem em segundo, com 5.953 libertações.

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Maranhão, Bahia, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Goiás são os outros estados que compõem o ranking. As áreas urbanas também enfrentam esse problema.  Só na cidade de São Paulo, no mesmo período, quase 500 trabalhadores foram libertados. Houve libertações em todos os estados brasileiros.

Um número maior de libertações não significa, necessariamente, que aquele estado agora tenha menos trabalhadores em condições degradantes. Medir e avaliar o tamanho do fenômeno ainda é um desafio, porque cada estado pode combater o trabalho escravo em maior ou menor medida de acordo com sua capacidade institucional e suas políticas para o tema. Logo, menos libertações podem significar apenas um investimento menor em fiscalização por parte do Ministério Público do Trabalho daquele estado.

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Nas regiões rurais, a mão de obra escrava geralmente é empregada em áreas como a pecuária, a produção de carvão, em plantações de algodão, cana-de-açúcar e soja, por exemplo. São atividades econômicas que fazem parte do início da cadeia produtiva, ou seja, acabam dando origem a produtos muito variados.

Nos centros urbanos, a indústria têxtil, a construção civil e exploração sexual são as principais atividades que concentram condições degradantes de trabalho.

Por que o trabalho escravo é um problema no Brasil

O número de trabalhadores submetidos a estas práticas ainda é alto e, a despeito da legislação existente, tem crescido nos centros urbanos. Em 2014, pela primeira vez, o número de trabalhadores libertados em áreas urbanas foi maior do que aqueles libertados em áreas rurais.

Veja os principais motivos pelos quais o trabalho escravo ainda acontece no Brasil em 2016:

Porque a cadeia produtiva incentiva esse tipo de atividade

Para o pesquisador Tiago Rangel, mestre pela USP em Sociologia e que investigou trabalho escravo na indústria têxtil em São Paulo como parte da sua tese de mestrado, as terceirizações são o problema. “Paga-se por peça produzida, não há estabilidade na demanda e todo risco relacionado à sazonalidade do setor é repassado para o elo mais fraco na cadeia: as oficinas de costura”, explica ele.

Os grandes magazines, que mandam na cadeia produtiva, são responsáveis pela demanda que gera esse tipo de trabalho na indústria têxtil. Uma alternativa é intensificar a comercialização direto desses produtores e equilibrar a flutuação de demanda, por exemplo.

Porque faltam educação, qualificação profissional e condições sociais pra trabalhadores em condições vulneráveis

A erradicação do trabalho escravo demanda políticas públicas sociais que garantam educação formal e cidadã, qualificação profissional e habitação, por exemplo. Se o trabalhador libertado voltar para a mesma situação de miséria em que se encontrava antes, tem altas chances de entrar de novo no ciclo do trabalho escravo.

Os especialistas ouvidos pelo Nexo concordam que não há políticas públicas que preveem suporte e amparo para garantir melhores condições sociais para as comunidades afetadas por trabalho escravo. Para eles, essa medida é fundamental.

Porque a fiscalização do poder público e da sociedade civil é insuficiente

Segundo especialistas ouvidos pelo Nexo, como o frei Xavier Plassat, coordenador da campanha contra o trabalho escravo da Pastoral da Terra, faltam recursos e capilaridade do Estado para que os fiscais possam chegar a tempo de fazer o flagrante depois que a denúncia é feita. Em muitos casos, os trabalhadores estão alocados em uma região remota.

Além disso, a comissão que faz o flagrante desse tipo de crime é composta de representantes de vários estados. A medida, que tem uma boa intenção – evitar que líderes locais, que possam ter conchavo com os empregadores ilegais, atrapalhem o flagrante – acaba tornando o processo de flagrante após uma denúncia ainda mais demorado.

O número de fiscais também caiu nos últimos 20 anos. Em 1996, eram 3,5 mil auditores do Ministério Público do Trabalho. Em 2015, o Estado tinha só 2,6 mil. O quadro é pior do que parece, já que isso é só pouco mais de 30% do que a Organização Internacional de Trabalho sugere para o Brasil: de acordo com o orgão, deveríamos ter 8 mil auditores fiscais do trabalho para fiscalizar situações de trabalho escravo, por exemplo.

A lista suja do trabalho escravo, mecanismo criado em 2003 que divulga, a cada seis meses, os nomes de empresas que cometeram o crime, era um poderoso recurso para que a sociedade civil pudesse boicotar empresas que fizessem uso desse trabalho. No entanto, a lista está suspensa desde o fim de 2014, por uma decisão do Supremo Tribunal Federal.

Em 2015, a ONG Repórter Brasil divulgou uma lista de 420 empresas que foram flagradas usando mão-de-obra escrava. Entre elas, há fazendas, garimpos, carvoarias, oficinas de costura, madeireiras, obras de construção civil, em alguns casos de governos federais.

Como o trabalho escravo rural aparece em atividades primárias, como a pecuária e a agricultura, é praticamente impossível para o consumidor descobrir se uma empresa usa trabalho escravo em alguma parte de sua cadeia produtiva, especialmente sem a lista suja. Da parte da sociedade civil é preciso, portanto, cobrar das empresas um comprometimento com a erradicação de trabalhos nessas condições.

O Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo é uma dessas iniciativas: o movimento reúne empresas que assumem o compromisso de não negociar com fornecedores que explorem trabalhadores.

Porque é preciso punir exemplarmente os empregadores que submetem funcionários a essas práticas

Em tese, a pena para quem submete funcionários a condições análogas à escravidão no Brasil é de dois a oito anos de reclusão, e multa, além da pena correspondente a violência praticada contra os indivíduos, se houver.

Desde 1997, cerca de 2.500 empresários foram flagrados cometendo esse crime. No entanto, até 2016, nenhum deles cumpriu pena até o fim. Hoje, no Brasil, ninguém está preso por submeter empregados a um regime análogo à escravidão.

Os processos, muitas vezes, são arquivados ou prescrevem. “Por morosidade ou má vontade da Polícia Federal, inquéritos demoram anos antes de serem concluídos. […] Multas não são pagas, nem provavelmente cobradas. O valor das multas é irrisório […]”, enumera a Comissão Pastoral da Terra.

A impunidade é um incentivo para que criminosos sigam submetendo trabalhadores a condições desumanas de trabalho. Em 2014, o deputado Arnaldo Jordy (PPS-PA), presidente da CPI que investigou tráfico de pessoas, disse que esse era um fator decisivo na prevalência do trabalho escravo no país.

Em 2014, a Câmara dos Deputados aprovou uma Proposta de Emenda Constitucional apresentada em 1999 que determina que propriedades que forem flagradas explorando trabalhadores seriam confiscadas e encaminhadas para o Estado, para que pudessem ser usadas em reforma agrária ou ter algum uso social. A medida é uma tentativa de tornar a punição para empresários criminosos ainda mais severa.

A votação, por pressão da bancada ruralista, aconteceu apenas oito anos depois do primeiro turno. Dessa vez, a PEC passou. Mas a mesma bancada, agora, exigia que a definição de trabalho escravo fosse abrandada.

A nova definição, prevista em pelo menos três projetos de lei que estão em tramitação, só consideraria trabalho escravo uma situação em que o empregador obrigasse o empregado a trabalhar sob ameaça de violência ou com restrição de liberdade.

O Ministério Público do Trabalho é contra a mudança e organizações sociais que trabalham com o tema a consideram um retrocesso – uma campanha, a Somos Livres, é a grande aposta da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo para pressionar o congresso pela reprovação da mudança do texto. O Movimento Humanos Direitos, liderado pela classe artística, também se posicionou contra a alteração da definição.

Um levantamento da Repórter Brasil mostra os parlamentares que se ausentaram na votação da emenda.

Quando houve mudanças (ou tentativas de mudanças) significativas na lei

1995
O Brasil se tornou um dos primeiros países do mundo a reconhecer a existência de trabalho escravo diante da Organização das Nações Unidas.

1997
Criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, coordenado por Auditores do Ministério do Trabalho, responsável por visitar locais denunciados e libertar trabalhadores.

2002
Aprovação da medida provisória que garante seguro desemprego para o trabalhador libertado de situação análoga à escravidão.

2003
O artigo 149 do Código Penal foi modificado para garantir a definição de ‘trabalho escravo contemporâneo’. A partir daí, trabalho forçado, servidão por dívidas, jornadas exaustiva e condições degradantes passaram a fazer parte da definição.
A Lista Suja, cadastro com nomes de empregadores que foram flagrados usando trabalho escravo, é criada.

2010
Empresas que fizeram uso de trabalho escravo ficam proibidas pelo Conselho Monetário Nacional de contratar crédito rural.

2012
Em São Paulo, a Assembleia Legislativa aprova uma lei que cassa o registro de empresas que usem trabalho escravo e proíbe sócios de abrirem outra empresa no mesmo setor por 10 anos.

2014
A PEC 81, do Trabalho Escravo, que confisca propriedades rurais e urbanas nas quais há flagrante de trabalho escravo, é aprovada.
O Supremo Tribunal Federal suspende a Lista Suja através de liminar. De acordo com o STF, a lista é inconstitucional.

2015
A Lista Suja volta a ficar acessível através de pedido via Lei de Acesso à Informação.
A Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento Desenvolvimento Rural aprova a PL do deputado Moreira Mendes (PSD-RO), que pede a mudança na definição de trabalho escravo.

2016
A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados avalia outro projeto de lei, esse do senador Romero Jucá, que também muda a definição de trabalho escravo e a torna mais branda.

Quem é contra a atual definição de trabalho escravo

Em 2014, a proposta com a nova definição foi aprovada pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural do Senado. Os termos “jornada exaustiva” e “condições degradantes de trabalho” foram retirados do texto que definem o crime. O projeto ainda está em tramitação e precisará ser votado por outras duas comissões e pelo plenário.

A Ministra da Agricultura, Katia Abreu (PMDB-TO), é a favor da mudança. De acordo com uma declaração dela de 2013, quando era senadora, uma definição mais explícita evita injustiças contra trabalhadores rurais e também contra trabalhadores que “de fato forem maltratados ou escravizados”.

Outros congressistas, como o senador Romero Jucá e Moreira Mendes(PSD-RO), concordam que a definição atual é muito vaga e subjetiva.

Contexto mundial: O trabalho escravo no resto do mundo

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, no mundo todo há 21 milhões de pessoas em situação de trabalho escravo.

O problema é mais grave na Índia, que tem 14 milhões de trabalhadores em condições degradantes – cerca de 1% da população. Paquistão, com 2,1 milhões, Nigéria, com 701 mil, Etiópia, Rússia, Tailândia, Congo, Mianmar e Bangladesh também têm números altos, entre 600 mil e 300 mil trabalhadores em condições análogas à escravidão.

O debate público: O que é dito sobre legislação e trabalho escravo

“Como [o trabalhador] não sabe que o que está sofrendo é violento e deve ser combatido, ele não se enxerga como vítima. A exploração é naturalizada pelo trabalhador que a sofre, pelas autoridades locais, pelas redes de proteção, como se isso fosse parte da realidade local.”

Natália Suzuki
Coordenadora do Escravo Nem Pensar

“O que é sumamente revoltante para alguns pode não o ser para outros, principalmente porque as condições de trabalho em geral não são lá essa maravilhas nos campos distantes, nas minas, nas florestas e nas fábricas de fundo de quintal”.

Romero Jucá
Senador

“O proprietário rural fica exposto à execração pública desde a fiscalização feita pelo agente do Ministério do Trabalho até a condenação administrativa, com seu nome incluído numa lista publicada na internet”.

Kátia Abreu
Ministra da Agricultura

“Mesmo no meu pior dia de trabalho eu sempre tive água limpa para beber, um banheiro decente para usar, eu sempre tive comida, nunca ninguém me bateu… Eu sempre fui livre. Nós não vamos permitir que os dois pilares da nossa definição de trabalho escravo, que são o trabalho em condições degradantes e as jornadas exaustivas sejam tirados do nosso código penal.”

Wagner Moura
Ator, em vídeo da Campanha “Somos Livres”

Fonte: Nexo
Texto: Ana Freitas
Data original da publicação: 12/04/2016

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