Glaucia Campregher
Entre as diversas críticas que obtive da banca na defesa de minha tese de doutorado, intitulada “Contribuição à crítica da Economia Política do Não-trabalho”[1], sem dúvida a mais interessante foi – “mas para você tudo parece ser trabalho!”. Pois é, não pude discordar. Só pude precisar, talvez melhor que na tese escrita, que trabalho para mim é toda forma de força humana organizada, seja pelo organismo individual, seja pelo coletivo, para a consecução de um fim. Em geral, se pensa que esse fim é a produção de algo mais material, alguma “coisa” que se cria a partir de outras “coisas”, daí o trabalho seria a transformação de uma matéria primeira em uma segunda. Marx é um que amplia esse fim para algo menos material. Sendo o fim algo que nos satisfaz necessidades, e sendo estas referidas ao estômago ou à fantasia, um poema é produzido por trabalho. Importante lembrar que entre os fins que se almeja produzir estão os bens-meio, ou seja, os instrumentos necessários em outras produções. As ferramentas mais simples e as máquinas mais complexas entram aqui. Mas bom lembrar que também há ferramentas tão imateriais quanto um poema, um software, por exemplo. Mas e por que falar desse meu conceito tão (justificada ou injustificadamente) amplo de trabalho aqui hoje?
Tive oportunidade uma que outra vez nesta coluna de aproximar cinema e trabalho. E o fiz não apenas a partir do trabalho como objeto de filmes, mas tendo em vista também os filmes como objetos de trabalho. Bem sei que isso não assusta o grande público, de resto acostumado a ver os filmes (e a música, o teatro, a literatura, a fotografia, etc. etc. etc.) como objetos de uma verdadeira indústria. Contudo, eu assustei a minha banca chamando o fazer político de trabalho. E não? Não se organiza a força humana, física e intelectual, de indivíduos e coletivos, para produzir algo?! Que esse algo seja uma burocracia estatal, um aparato de governança, um modus operandi para lidar com os conflitos intra e entre classes, para mim não muda nada na questão. Assim que sou uma espécie de anti Hannah Arendt! (A famosa filósofa que achou por bem separar labor – que nada criaria -, trabalho – que cria coisas a partir de outras coisas -, e ação política – que cria história). Para mim, o trabalho cria coisas, mas também ideias e relações. E o prova o capitalismo, onde não apenas uma enxada é mercadoria produzida para a troca (e para o lucro de quem organiza o trabalho alheio dos produtores de enxadas), como uma consultoria em governança pode ser contratada por uma ente público qualquer. Por suposto, o trabalho da política é bem mais complicado. Digamos que só muito mais adiante ele será produzido em escala industrial. Hoje poderíamos dizer que passamos do artesanato à manufatura. Mas olhem, com inteligência artificial e tudo, isso não vai demorar…
Pois então, se trago isso aqui hoje é que pensei em falar de um filme, fruto do trabalho dedicado de uma indústria de cinema periférica, cujo tema é o que chamo de trabalho da política. O filme em questão é “Argentina, 1985”, de Santiago Mitre. Ele trata dos processos contra oficiais das Forças Armadas argentinas que estiveram à frente da ditadura militar sendo coniventes e/ou promotores de torturas e assassinatos. A política trabalhada no filme como pano de fundo é a da normalização da vida democrática após uma ditadura. Vida esta que, no seu aspecto mais amplo, foi bem captada pelo diretor (e também roteirista ao lado de Mariano Llinás) ao explorar os dilemas triviais das famílias dos promotores públicos, em particular do promotor chefe Strassera, interpretado por Ricardo Darín. Começo por aí, porque é ao nível da vida cotidiana que há um primeiro trabalho a ser realizado, o de um luto. O trabalho de luto requer que se admita a morte, que se repasse e compreenda o que levou a ela, que se recupere (literalmente no caso em questão) os restos mortais e os destine conforme rituais de ascendentes e descendentes, por fim, que se acuse e julgue os que a perpetraram. O desejo da sociedade, não unânime, mas hegemônico, de realizar este primeiro trabalho (tão difícil que foi a primeira vez na história que se teve condições de levar a um tribunal civil os comandantes militares da ditadura recém deposta) é que pode levar ao trabalho seguinte tratado no filme, o do processo jurídico propriamente dito. O luto requer um trabalho (no sentido definido acima), em alguns momentos monetarizado, inclusive. Do meu ponto de vista, seria mesmo interessante investigar se a forte tradição psicanalítica argentina não o favoreceu.
Tradicionalmente os filmes modernos tendem a contar suas histórias tornando os indivíduos seres excepcionais que se destacam exageradamente do seu contexto. Costumo dizer que os blockbusters hollywoodianos de todos os gêneros quase nunca fogem à fórmula do “um sozinho contra todos”. Isso tem “n” razões, do forte individualismo que reina na sociedade capitalista em geral ao papel do protagonista-astro-estrela cinematográfico em particular – que é o de garantir fidelidade dos seus fãs que verão não um, mas vários filmes de seus amados. Isso atrapalha bastante ver o trabalho em ação, pois este é flagrantemente coletivo, mesmo que tenha momentos individuais. Que bom que “Argentina, 1985” soube cumprir os ditames da indústria sem cair no “um sozinho…”. O promotor do filme não é mostrado como herói solitário; ele sequer é apenas ajudado (desde pelo filho ao corpo de investigadores que institui); ele só opera porque consegue (por vezes contra seu próprio ímpeto) articular tais grupos de trabalho. Feito isso, o processo jurídico levado a cabo se inicia pela boa e velha divisão do trabalho – no filme como na vida facilitada pela diferença de idade e de pertencimento social dos agentes, no caso, os promotores- chefes. Na sequência, tem lugar uma série de inovações, algo também comum quando se trata de processos de trabalho. Jovens inexperientes são escolhidos como investigadores justamente porque isso os faria menos atemorizados e mais afoitos, o que seria desejável frente aos poderes que iriam enfrentar. Estes inovaram, por sua vez, no uso da mídia como canal de denúncia de casos e descobrimento de testemunhas. Ao final, a despeito dos obstáculos, o fim é alcançado, militares de alta patente foram levados a uma corte civil, testemunhas às centenas foram ouvidas, histórias brutais foram passadas a limpo em horário nobre de TV, e, por fim, foram julgados e sentenciados mais de 700 casos, entre eles o do ditador Jorge Rafael Videla, condenado à prisão perpétua e destituído da patente militar.
Os processos de trabalho, uma vez dominados, podem tornar todos os trabalhadores poderosos; torná-los sujeitos de suas próprias vidas. Pouco adianta participarmos inconscientemente do trabalho coletivo, na fábrica, no escritório ou na história. Os Senhores são aqueles que em todas as épocas dizem que o seu trabalho é o mais importante. Os Senhores mentem que seus bens, distinções e poderes devem ser maiores por isso. Os Subjugados por vezes desconfiam que não é assim. Mas a desconfiança sozinha não faz a consciência. Há todo um trabalho por conhecer todos os processos de trabalho. Há todo um mundo de experimentações de formas alternativas de trabalhar que precisamos instaurar. Só assim poderemos derrubar a ditadura dos Senhores das condições de trabalho. O cinema pode ajudar.
Nota
[1] Disponível em https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/238549