Estima-se quase 80% das famílias brasileiras adquiriram dívidas com cartões de crédito. O trabalhador requer Educação Financeira para ter uso consciente dele.
Fernando Nogueira da Costa
Fonte: GGN
Data original da publicação: 25/07/2020
O livro Fernando Nogueira da Costa. O Trabalho: Capital Acumulado (Blog Cidadania & Cultura; julho 2020) é resultante de minha terapia ocupacional, no mês de julho, durante o distanciamento social pela pandemia. Busquei maior conhecimento de outros autores e atualização com novos fatos e dados, na minha área de especialização ou predileção: análise de sistemas macrossociais, em particular, o sistema econômico-financeiro.
Começo essa síntese da reflexão sobre “O Trabalho como Capital Acumulado” com Finanças Comportamentais. A prevenção de gente sobrevivente à base de O Trabalho, sugerida pela análise do endividamento excessivo, caso não tenha autocontrole, é deixar de usar cartão de crédito. Ele não desperta o medo de perda, de maneira tão palpável como o papel-moeda, e então facilita a compra de coisas caras e supérfluas.
Se o usar, o trabalhador necessita de Educação Financeira para aprender a fazer um uso consciente dele, sem “pagamentos a perder de vista” sobrepostos. É melhor forma de evitar o endividamento excessivo. Estima-se quase 80% das famílias brasileiras terem dívidas realizadas com cartões de crédito.
Não pode se esquecer: “parcelamento da compra sem juros” leva à sobreposição de dívidas nos meses seguintes. Compromete o planejamento de ter um orçamento adequado, depois de investir, logo após o recebimento mensal de sua renda.
Inovações na área de pagamentos eletrônicos tendem a transformar os gastos em ato prazeroso e indolor de imediato. Mas podem pesar no orçamento, em médio prazo, causando sacrifício indesejado para si e sua família.
Em lugar de tabelamento de juros é mais adequado incentivar maior competição, inclusive de lojas comerciais, no sistema de pagamentos do varejo. A experiência histórica recente demonstra o papel relevante e insuperável do capitalismo comercial, articulado com o capitalismo industrial e cada vez mais fundido com o capitalismo financeiro. Não são fases sucessivas, mas sim dimensões do complexo sistema capitalista emergente de múltiplas dimensões interativas.
A vida nesse sistema é difícil, mas é processual em termos evolutivos. Os trabalhadores necessitam aprender a lidar com a sociedade de consumo – e dita “financeirizada”. Evitar usar dinheiro eletrônico se perder o controle sobre seus gastos. Atender apenas às necessidades básicas, de acordo com o padrão comportamental e/ou cultural de sua casta. Ao lado de planejamento financeiro, o comportamento sóbrio propicia gradativo enriquecimento para manter esse padrão de vida durante sua fase de vida inativa.
Além disso, os trabalhadores manuais e intelectuais devem compreender a barganha da cooperação mútua com os capitalistas para progressivas conquistas econômico-financeiras e democráticas em termos de bem-estar social. Talvez não seja o caso de se precipitarem, seja diretamente, seja indiretamente em seus fundos de pensão, em associar-se à especulação em bolsa de valores.
No livro, apresentei fatos e dados em defesa da hipótese de dar um passo conceitual além da visão de fases do capitalismo. A metodologia transdisciplinar, analítica de diferentes níveis de realidade, do terceiro termo incluído e de um sistema complexo, permite superar essa visão.
Em lugar da dimensão temporal, enfatizo a dimensão espacial. Em um corte do processo sistêmico evolutivo, no presente, percebe-se ele emergir de interações complementares e necessárias de vários subsistemas existentes: o sistema de pagamentos, o sistema de financiamento e o sistema de gestão de riqueza. Cabe analisar cada configuração conjuntural ou transitória de maneira contínua.
São marcos institucionais referentes ao capitalismo industrial, capitalismo comercial e capitalismo financeiro. São coexistentes – e não superados.
O significado de sistema é esclarecedor. É a reunião dos elementos, concretos ou abstratos, interligados de modo a formar um todo organizado. São sistematicamente relacionados se aplicados a uma área determinada de conhecimentos ou atividades.
Sistema constitui também um modo de organização institucional ou de estruturação administrativa, política, social e econômica de um Estado. As relações de dependência entre os distintos órgãos tecem e desempenham uma função vital no organismo total.
Então, qualquer conjunto constituído por elementos ou seções componentes do sistema capitalista se inter-relacionam. Está ligado de modo a propiciar seu funcionamento como um sistema articulado de financiamentos, pagamentos e gestão de riqueza, reunindo um conjunto de elementos de acordo com uma ordem determinada.
Por isso, Educação Financeira não se reduz à transmissão de experiências bem-sucedidas vivenciadas individualmente. A visão holista, para saber onde (e como) deve ser a inserção estratégica de O Trabalho na configuração sistêmica a cada conjuntura, supera a visão do individualismo metodológico.
Um banco comercial tradicional oferece empréstimos de curto prazo, garantidos ou não por bens como as habitações e os bens duráveis de consumo financiados. Em alternativa ao crédito comercial de comprar a prazo de fornecedores e vender à vista para consumidores, os empréstimos bancários tomados por empresas não-financeiras, para capital de giro, seriam honrados à medida que os bens fossem vendidos.
Os trabalhadores, em geral, fazem alavancagem financeira, entrando com parcela de capital próprio, somente nas compras a prazo de seus bens duráveis de maior valor unitário: moradias e veículos. Nestes casos, os contratos de dívida bancária costumam ter cláusula de alienação fiduciária. O devedor fiduciante transfere ao credor fiduciário a propriedade do bem pretendido para aquisição até haver o pagamento completo da dívida. A inadimplência, nesses casos, é baixa.
A situação patrimonial dos bancos comerciais é financiada pela emissão de passivos de curto prazo. São produtos bancários os depósitos à vista em conta corrente, a prazo e de poupança, além das Letras de Crédito (LCI e LCA) e as Letras Financeiras de prazo maior (dois a cinco anos), adquiridos principalmente por Pessoas Físicas. São, principalmente, trabalhadores do Varejo de Alta Renda e ricaços do Private Banking.
Surgiu a hipótese, no Estados Unidos, dada a elevação da desigualdade de riqueza, os 10% mais ricos estariam poupando e, indiretamente, financiando os gastos dos 90% mais pobres. Testei-a com dados empíricos se é pertinente ao sistema financeiro nacional. Descartei-a. Aqui, a maior parcela relativa de dívida pessoal é tomada pelos 10% mais ricos.
A administração de recursos de terceiros, via Fundos de Investimentos Financeiros, compete com a captação de funding. Recentemente, bancos brasileiros desrespeitaram a “chinese wall” (segregação entre dinheiro do banco e dinheiro dos clientes) e entupiram carteiras de fundos administrados com debêntures de empresas não-financeiras, ou seja, risco de crédito privado. Foram lançadas por eles mesmos em operações estruturadas de mercado de capitais com esforços restritos e “garantia firme” de colocação.
A sobreposição de compromisso financeiro sobre ativo real, gerador de renda, cria um novo tipo de capitalismo, onde a detenção de patrimônio precisa ser continuamente validada. Isso, para Hyman Minsky, contrasta fortemente com o estágio de capitalismo comercial, quando os ativos de capital estavam completamente detidos. Neste, qualquer falha ocasional na geração de renda de capital bruta não ameaçava a existência do empreendedor.
Aí está minha divergência com a visão faseológica de Minsky e outros autores.
Para eles, o estágio do capitalismo financeiro é bastante diferente porque um déficit dos lucros brutos coloca comportamentos divergentes dos investidores em movimento. Representa não só ameaças à firma, individualmente, mas, pode também comprometer todo o sistema, devido à dinâmica da dívida deflacionada.
Para mim, isso não é fundamentalmente distinto do ocorrido no denominado por ele de estágio do capitalismo comercial. Houve uma Grande Depressão deflacionária, logo após a Crise de 1929, e o sistema capitalista não ruiu. O nazifascismo provocou, em seguida, a Economia de Guerra. Esta buscou contrabalançar, com aumento de produtividade laboral, a destruição da riqueza. Ao “nivelar por baixo”, a desigualdade social diminuiu.
A reconstrução do pós-guerra, com intervenção estatal e socialdemocracia, propiciou uma longa Era de Desenvolvimentismo. Emergiram as castas dos trabalhadores organizados e dos sábios universitários. Durou até a estagflação dos anos 70. A Era Neoliberal, iniciada nos anos 80, levou à atual estagdesigualdade: estagnação da economia e concentração da riqueza financeira.
Mostrei, no livro, a acumulação de reservas financeiras por trabalhadores com formação universitária para a manutenção do mesmo padrão de vida durante suas aposentadorias. O planejamento da vida financeira é fundamental para se defender contra o corte de direitos na Previdência Social. A classe média incluída no segmento de clientes de Varejo de Alta Renda terá de contar com seus próprios recursos na terceira-idade. Lastreia-os, principalmente, em títulos públicos.
Ao focalizar a terceira função do sistema bancário – oferecer oportunidades de investimentos seguros, líquidos e rentáveis a seus clientes –, minha crítica aos argumentos de Hyman Minsky foi estendida a todos os analistas da chamada “financeirização”. Discordo de tratar o capitalismo financeiro como uma fase demarcada e quase artificial ou contraditória ao desenvolvimento do capitalismo industrial, tendo esse já superado o capitalismo comercial.
Apresentei argumentos em defesa da hipótese de o capitalismo ser um sistema complexo emergente de interações de todas essas dimensões representadas por subsistemas: comercial, industrial e financeira. Sistema é a categorização de um conjunto de elementos de acordo com uma ordem determinada, no caso, a ordem capitalista.
Para download do livro, clique em: Fernando Nogueira da Costa. O Trabalho: Capital Acumulado (Blog Cidadania & Cultura; julho 2020).
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-UNICAMP. Autor de “Mercados e Planejadores Imperfeitos” (2020).