“O trabalhador que disponibiliza sua moto própria, seu tempo próprio e não tem garantia nenhuma”. Entrevista com Rômolo Souza, entregador de aplicativo

Fotografia: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Seguindo a série de entrevistas com trabalhadores de aplicativos do projeto “Trabalhadores de Apps em Cena”, esta entrevista foi realizada com Rômolo Souza , presidente da Cooperativa Morada Express (Cooperativa de Trabalho de Motoentregadores e Motofretistas de Araraquara-SP). Entregador de plataforma digital em Araraquara.

Rômolo Souza. Fotografia: Arquivo Pessoal

DANIELA MURADAS ANTUNES: O trabalho em plataformas vem acompanhado de narrativa do empreendedorismo. As empresas alegam que os trabalhadores atuam por conta própria e por isso assumem o custeio dos recursos para o desenvolvimento da atividade, tais como smartphones, veículos e contratos de seguro e outras despesas, inclusive as decorrentes da depreciação. Você se percebe empresário de si mesmo ou acredita que é um trabalhador e vive de sua atividade? Você conhece ou teve notícia de composição de custos para a sua atividade? Sabe qual é o ganho que o aplicativo obtém de cada operação? 

Eu me vejo como força de trabalho, trabalhador. Até mesmo essa narrativa, ela é… empreendedorismo é uma narrativa falsa, criada por essas plataformas, quando chegou no país. Porque onde já se viu o empreendedorismo não ter autonomia de escolher o valor da sua corrida. E essa não é a realidade desses aplicativos. Quem que decide o valor do seu trabalho é o aplicativo. Então, nós somos trabalhadores, força de trabalho. E do aplicativo… o custo de cada operação deles? Eles ganham 30% de cada venda do estabelecimento e ainda uma porcentagem de nossas corridas. (…) O nosso custo? Ah, os nossos custos, cada dia que passa, eles estão encarecendo cada vez mais. Mas hoje, para ele correr as 12 horas por dia, ele tem um gasto, no mínimo, de R$ 40,00 de combustível por dia. E mais R$ 30,00 de alimentação, se ele for se alimentar pra rua. Então, só de custo que ele tem por dia é R$ 70,00.

GUILHERME LEITE GONÇALVES: Nas últimas décadas, temos observado um processo intenso de privatização e mercantilização de serviços, bens e espaços públicos e coletivos. Com isso, trabalhadoras e trabalhadores se veem cada vez mais dependentes do mercado para satisfazer necessidades básicas (transporte, saúde, habitação, educação etc.). Como a remuneração ao trabalho é cada vez mais insuficiente, a pressão por obtenção de crédito junto a bancos tem sido cada vez maior. Trabalhadoras e trabalhadores de apps têm vivenciado esta dinâmica de expropriação e endividamento? Ela tem contribuído para a aceitação de condições ainda mais precárias de trabalho? 

Sim, sim. O trabalhador, cada dia que passa, está se dividindo cada vez mais. Eu sou uma prova viva disso daí. O endividamento tá chegando em todos dia após dia. E, realmente, as condições nas quais nós estamos vivendo está forçando, cada vez mais, nós a trabalhar nessas condições, porque a gente tem que buscar uma maneira. A falta de opção, escolhas, nos força a trabalhar nessa situação, na precarização que vem proporcionando cada dia após dia.

JOSÉ RICARDO RAMALHO: A solidariedade de classe é uma das características marcantes da história dos trabalhadores e dos sindicatos no capitalismo. Como a construção dessa solidariedade se coloca para os trabalhadores de aplicativos? Como se constrói uma identidade coletiva de resistência aos mecanismos de exploração exercidos pelas empresas? 

Pra construir esse mecanismo, é necessário um diálogo bem amplo com a categoria, né. E sempre tá dialogando, conversando e mostrando o quanto é importante a consciência de classe para que eles possam entender que a narrativa que os iFood vende pra nós é uma narrativa falsa. Então, a gente precisa da união da classe e ser solidário um com outro para a gente buscar uma solução contra essa precarização.

MAGDA BARROS BIAVASCHI: Quem controla tuas atividades? Como prestas contas delas à plataforma e aos usuários do teu trabalho? Quem define o valor das corridas e o percentual retido à plataforma? Como é feito o controle do teu trabalho para fins de pagamento das atividades desenvolvidas? 

Quem controla tudo é a própria plataforma. [Presto contas] através, é tudo através da plataforma, do aplicativo. [Quem define o valor das corridas e o percentual é] a plataforma também, é tudo a plataforma. A gente não tem autonomia nenhuma pra decidir o valor da corrida. [O controle do trabalho para fins de pagamento] é feito a soma das corridas diárias e eles ficam dentro do aplicativo e todo domingo fecha. Tipo assim, segunda, você corre segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo. E, no domingo, fecha. E aí esse valor, ele é pago na quarta-feira, na próxima quarta-feira. E assim em diante.

MARIA CELESTE MARQUES: Considerando que se trata de um segmento profissional majoritariamente masculino, como você vê a possibilidade de uma maior abertura da atividade para outros gêneros? As plataformas digitais de entrega e de transporte têm fornecido alguma orientação sobre discriminação de gênero no ambiente de trabalho? 

Oh, a possibilidade, ela está sendo grande. Tanto que hoje é… antigamente, você não via muito mulheres, outras pessoas de outras orientações sexuais trabalhando. Hoje, você já vê, se tornou algo normal. Mas muito disso daí é devido às condições e à crise na qual o país vive com essa política que eles têm de liberalismo, de favorecer só o mercado, então, com o avanço da tecnologia e da precarização. Então, essa possibilidade, ela tá crescendo cada dia mais. E, sobre essas orientações aí, os aplicativos não orienta, não tem nenhuma orientação.

NOA PIATÃ: Quantas vezes por dia você olha o celular em movimento, no trânsito, conduzindo o carro, a motocicleta ou bicicleta? 

Puxa, eu não sei nem dizer. É muitas. Ah, são muitas vezes! Eu não sei nem dizer a quantidade.

PHILIPPE OLIVEIRA DE ALMEIDA: Algumas pesquisas têm indicado que o faturamento diário de entregadores de aplicativos negros (pretos e pardos) é menor que o dos entregadores brancos. Isso se deveria a alguns fatores, como, por exemplo, obstáculos enfrentados no momento de entrar em prédios e condomínios fechados – exigência de apresentar documentos de identificação etc. –, o que “atrasaria” a entrega, e reduziria o número de “corridas”. Você já se sentiu discriminado, devido à sua cor de pele, em seu trabalho? Se sim, como aconteceu? O aplicativo te deu algum suporte, nessa situação? 

Olha, comigo nunca aconteceu isso aí não. Nunca passei por isso não e também, até então, eu não soube de relatos parecidos com isso aqui na cidade. Pode ter acontecido, mas, se aconteceu, eu não tive ciência ainda, entendeu?

RENATA QUEIROZ DUTRA: Quando observamos os diferentes comandos que recaem sobre os entregadores e os motoristas por meio dos aplicativos, podemos perceber que consumidores podem fazer exigências e avaliações do seu trabalho. Como você se sente em relação às avaliações dos consumidores pelo seu trabalho? Na sua percepção, que consequências elas geram na sua relação com a plataforma e na sua percepção do seu trabalho? 

Dependendo das avaliações, elas geram pontos negativos dentro do aplicativo. Toca menos corrida pra você. E eu não vejo de uma maneira legal, porque, talvez, muitas das vezes, o entregador tá agindo da maneira certa, da maneira correta e o consumidor, mesmo assim, acaba avaliando negativo. E isso prejudica ele dentro da plataforma. Eu me sinto é… como posso dizer a palavra certa? É… como é que eu posso dizer? Ah, é… eu não me sinto legal. Eu me sinto é… meio, como posso dizer? Meio acuado, meio é… tipo… posso fazer o quê? Ah, eu não acho legal. (…) Ah, como é que eu posso explicar isso aí? É complicado! A gente fica… ah, não sei dizer. É meio complicado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS RÔMULO: Ah, então, a cooperativa é que nem eu disse. A gente fomos vendo as injustiças que são feitas através dessas plataformas, iFood, Uber Eats e assim em diante. É… tem o trabalhador que disponibiliza sua moto própria, seu tempo próprio e não tem garantia nenhuma, seguridade nenhuma. E a gente fomos vendo essas injustiças. O trabalhador sofrendo um acidente, não tendo seguridade nenhuma, não tendo auxílio financeiro nenhum por parte desses aplicativos. A gente se organizamos e resolvemos criar uma cooperativa, por quê? Essa cooperativa, ela vai ter uma finalidade do quê? De fazer justiça social com os trabalhadores. De qual maneira? A gente montou um aplicativo igual ao iFood. Se quer pedir um lanche, você vai entrar na plataforma da cooperativa. Você vai lá, vai pedir. Lá vai ter vários estabelecimentos cadastrados, mas, porém, o quê? A corrida será 100% do entregador. E a gente vamos colocar uma taxa de 13% de cada venda do estabelecimento. Hoje eles estão pagando 30%. Tem um lugar que chega a pagar até 36% pro iFood. E esses 12%, a gente vamos garantir os direitos desses cooperados, desses entregadores. E as reservas que sobrar desses 12%, que vai fazer fundo, será revertido em benefícios pros entregadores. A gente pensa em alugar casa pra ponto de apoio, onde os entregadores puderem ter pontos estratégicos para não ficarem em rua, pra não ficar em praça, embaixo de chuva, quando chover. Ter lugar pra descansar e almoçar. Esse é o nosso objetivo. E acho que, daqui a quarenta dias, o aplicativo tá pronto. A gente já tá reformando um espaço pra gente ir lá no Terminal Rodoviário, pra onde vai ser a central. Então, esse é o nosso objetivo dentro da cooperativa. É Morada Express que chama, em Araraquara. Quem tá dando todo apoio pra gente, suporte, quem tá criando o aplicativo, pra gente, é a prefeitura local. Então, nós, da Cooperativa Morada Express, optamos por ter uma tecnologia própria. Ao contrário da Coomappa, que ela hoje, ela já tá atuando, já tá trabalhando, em funcionamento, porque eles compram um aplicativo já em forma de franquia. E esse aplicativo nosso, da Morada Express, ele tá sendo desenvolvido pela coordenadora do PT aqui da prefeitura e que será doado para nós. E, a partir do momento que tiver em funcionamento, eu tenho conversado com outros entregadores, de outras cidades, se tiver movimento com o mesmo objetivo de trabalho de cooperativismo, visando o bem-estar do trabalhador, então, o que que acontece? Mais qualidade de vida. A gente vamos disponibilizar a mesma tecnologia pra eles, que será o nosso aplicativo. Nós optamos por esse aplicativo próprio pra nós poder ter a nossa própria manutenção, sem depender de terceiros.

Fonte: GGN
Texto: Daniele Barbosa
Data original da publicação: 29/04/2022

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