Ao atacar as reformas liberais e prometer remover as travas do Teto de Gastos, o novo governo vai ao ponto. A política econômica deve iniciar do social e não o eleger como ferramenta de ajuste.
Nathan Caixeta
Fonte: Brasil Debate
Data original da publicação: 10/01/2023
Em artigo na Rede Brasil Atual, a professora Leda Paulani lembrou o que se esconde nos anseios sobre a “âncora fiscal”: “Aquilo que se conhece e vende como ciência econômica está coalhado de ‘verdades’, reproduzidas e repetidas ad nauseam pela mídia corporativa, sem haver o mínimo espaço para contestação.
A grita do mercado em favor do recondicionamento da âncora fiscal do Teto de Gastos é a verdade da vez, aditivada pelo ambiente que circundou a aprovação da PEC de Transição, medida que liberou do teto os recursos necessários para a continuidade das transferências de renda. Nos cabe entender por que a âncora é tão valiosa para o mercado e seus porta-vozes, os economistas acostumados à rapinagem de ocasião e os jornalistas na fronte do pelotão para defesa dos interesses do dito mercado.
O que se tem assistido é um terrorismo financeiro. Os operadores da Bolsa de Valores, confiantes no seu protagonismo na formação das expectativas, se antecipam para raspar o tacho da desordem econômica deixada por Bolsonaro. A queda livre anunciada como temor em relação ao novo governo pode ser lida, também, como especulação contra a correção das anomalias criadas pelas reformas liberais.
O governo Lula, antes mesmo de começar, parece entender que as causas da longa crise econômica e política iniciada em 2014 não foram fruto de um desencontro entre a mão que alimenta o financismo e a boca financeira que engole a reprodução das desigualdades como razão de ser de uma política econômica voltada às elites. O problema é mais embaixo.
Nem mesmo a onda bolsonarista pode conter em si os motivos da situação atual, pois os moinhos satânicos que moveram os mares para produzir o tsunami do reacionarismo golpista não foram movidos de uma situação de crise para outra pior, mas foram os ventos que mudaram. O problema está e esteve no comando que as elites exercem sobre o Estado.
Na primeira eleição de Lula, o ex-operário alcançou um lugar junto aos poderosos ao se comprometer com a âncora fiscal imposta pelo tripé macroeconômico. Caso contrário, a revoada dos capitais para fora do país que ameaçaram a sustentabilidade do câmbio e da inflação romperia sozinha a âncora, sem que nenhum centavo adicional de dívida pública fosse impresso.
Antes ainda, para sustentar a posição externa necessária para a estabilização do Plano Real, Fernando Henrique Cardoso enterrou os princípios do desenvolvimento social ao oferecer o patrimônio e o passivo públicos para os rentistas que se viam desamparados pela ausência dos ganhos inflacionários.
Lembremos, em tempo, a plataforma eleitoral oferecida pela grande mídia a Fernando Collor quando este se comprometeu com a abertura comercial e financeira, desmobilizando os marcos iniciais da Constituição Cidadã. Fato é que não se elege ou se governa sem as elites. Outro fato: as elites que governam, a política acomoda suas determinações, enquanto os economistas e a mídia patrocinam o terror em favor de seus descontentamentos.
Ao atacar as reformas liberais e prometer remover as travas do Teto de Gastos, o novo governo vai ao ponto. A política econômica deve iniciar do social e não o eleger como ferramenta de ajuste. Essa interpretação vai à contramão da ciência econômica tradicional que interpreta a sociedade como uma multidão de almas utilitárias ansiosas em expor seu mérito como troféu. A mão invisível segura de um lado da taça e o mérito segura da outra. A gentalha restante assiste aos merecedores com aspiração, servindo o banquete para um dia sentar à mesa.
A ideia de uma política voltada para a redução das desigualdades não ataca a ciência econômica como ciência, mas o moralismo charlatão que se esconde por trás das teorias. Uma prova disso pode ser obtida na carta assinada por Armínio Fraga, Pedro Malan e Edmar Bacha na Folha de S. Paulo na ocasião de anúncio da PEC de Transição. Diziam eles:
“A alta do dólar e a queda da Bolsa não são produto da ação de um grupo de especuladores mal-intencionados. A responsabilidade fiscal não é um obstáculo ao nobre anseio de responsabilidade social, para já ou o quanto antes.
O teto de gastos não tira dinheiro da educação, da saúde, da cultura, para pagar juros a banqueiros gananciosos. Não é uma conspiração para desmontar a área social.”
Os nobres economistas realmente acreditam que a questão não é ideológica ou política, mas técnica. Exatamente por isso transmitem as preocupações do mercado sobre a necessidade da âncora fiscal com o ar solene de quem corrige uma prova de colegial. Tomam a dívida e o orçamento público como base para as expectativas, ou para a confiança, como não se cansa de repetir Henrique Meirelles. O raciocínio, entretanto, esconde os princípios morais da elite: o desenvolvimento só tem sentido se comandado de cima para baixo, do banquete dos ricos para as migalhas oferecidas aos que os servem.
Não é má intenção, ou conspiração, mas o modo de ser do tal capitalismo que enfronha as ações dos homens sob ideias de justiça, esculpidas no formato patológico do narcisismo: “o outro só tem valor à medida que serve aos meus propósitos”. Por exemplo, a ideia de ancorar a tomada de expectativas no desempenho orçamentário e patrimonial do governo. Não é algo que se apresenta como realidade, mas é uma realidade construída pela expectativa de que as pessoas ajam dessa maneira.
Nenhum operador de Bolsa ou empresário faz suas contas separando as favas segundo o grau de compromisso do governo com suas ideias, mas elege suas ideias como dever do governo. E isso ainda não é má intenção. É o jeito de ser desse “troço”. O capital não aposta na possibilidade da derrota ante a realidade incerta, mas pavimenta o terreno das incertezas de modo que a rota de fuga não seja uma justificativa moral, mas uma explicação técnica: “o que o governo fez de errado”.
Nunca se trata de conspiração. O terrorismo do mercado é mais complexo. Não é o golpe do bispo que derruba o rei, mas daqueles que movimentam todas as peças do tabuleiro, nos lembrou, certa vez, Alfred Marshall. Quando o tabuleiro tomba, coloca-se a culpa no juiz.
Ainda não é má intenção. Mas é sim construção histórica. As elites não merecem o Brasil, de quem abdicam sem constrangimento. Imagine: populares subindo a rampa do planalto, direitos trabalhistas e previdenciários recompostos, dinheiro na mão de quem tem fome? Não perturba a técnica econômica, cutuca a alma de quem vê no dinheiro, no consumo, o brilho da distinção.
Não que a vista seja plácida. Ela guarda as boas intenções dos que precificam o bem comum na contramão daqueles que querem subverter a exclusividade do mérito individual. Os que dizem merecer, na verdade, odeiam a meritocracia quando ela não está marcada a seu favor.
É tenebrosa a ideia de sujeitos autônomos em relação à subsistência, que podem aspirar à realização da felicidade numa vida sem humilhações. Que vão ao pleito da universidade pública, sem estar dez passos atrás no conhecimento elementar. Que chegam aos concursos e ao mercado de trabalho, sem as barreiras de uma educação deficiente. Que podem morar dignamente e receber a mesma atenção médica da madame que não se mistura na sala de consulta do SUS e vai com hora marcada ao Sírio Libanês. Que podem exigir os direitos de igualdade, sem as marcas da cor, do gênero, da origem. Não é conspiração, nem má intenção, é o capitalismo, Sr. Doutô.
Nathan Caixeta é economista pela FACAMP, mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp e pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP (NEC/FACAMP).