Mesmo neste cenário desolador [da pandemia], o capital segue aumentando seus lucros, extraídos do caos, do desemprego, da perda de renda e da degradação em que mergulha a classe trabalhadora.
Carlos Eduardo Araújo
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 09/11/2020
“O Tacão de Ferro pisará em nossas cabeças; nada resta a não ser uma revolução sangrenta da classe trabalhadora”. Jack London. O Tacão de Ferro.
“Deveriam os pobres se organizar?” Eric Hobsbawm. Mundos do Trabalho.
“Ou a classe trabalhadora é revolucionária, ou ela não é nada.” Karl Marx a Johann Baptist Von Schweitzer, 13 de fevereiro de 1865.
As desigualdades sociais fazem, tristemente, parte da história humana desde seus primórdios, com transmudações e variações decorrentes de espaço e tempo, ora apresentando-se sob a forma de uma brutal subjugação de uns sobre outros, pela escravidão ou servidão, ora sob a forma eufemística do trabalho livre, que já foi chamado de “escravidão assalariada”. Não é um determinismo naturalístico e sim um iníquo construto histórico, em proveito de uma ínfima parcela da humanidade.
Marx e Engels, em seu merecidamente famoso “O Manifesto Comunista”, publicado pela primeira vez em 1848, colocaram a questão nestes termos:
“A história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, membro das corporações e aprendiz, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em contraposição uns aos outros e envolvidos em uma luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre com a transformação revolucionária da sociedade inteira ou com o declínio conjunto das classes em conflito”. [1]
Vou me valer da Literatura para estabelecer contato com a problemática social, de exclusão e exploração, que opõem opressores a oprimidos e que assumiu novas vestes com a emergência do capitalismo. Escolho para este fim o instigante, provocador e visionário romance do escritor norte-americano Jack London (1876-1916), publicado em 1908, denominado “O Tacão de Ferro”.
London, expõe, nesta narrativa, de forma didático-literária a oposição entre capital e trabalho, revelando nua e cruamente, a escorchante espoliação a que era submetida a classe trabalhadora naqueles tempos e continua a sê-lo, hodiernamente. Este dilacerante libelo acusatório emergiu no âmago do que seria, em breve, o epicentro do capitalismo mundial, os Estados Unidos. O protagonista Ernest Everhard, um alter ego do próprio London, cuja saga revolucionária é narrada por sua esposa e copartícipe de luta, Avis Everhard, preconiza a necessidade de uma revolução libertária e sem armistício, uma luta de classes, uma “revolução sangrenta”, em face da burguesia oligarca de então, uma plutocracia denominada “Tacão de Ferro”.
Tacão de Ferro é um romance distópico e premonitório de uma revolução que mudaria a face do mundo. Anuncia, com aproximadamente dez anos de antecedência, a revolução bolchevique de outubro de 1917. Igualmente, há, no romance, um vislumbre da gênese do nazifascismo, como inferiu o revolucionário russo, Leon Trotsky, em carta de 1937, escrita em resposta a um exemplar do livro, a ele enviado, por Joan London, filha de Jack London. Vale a transcrição da apreciação crítica de Trotsky sobre o romance:
“O capítulo “O rugido da fera do abismo” constitui sem dúvida alguma o cerne do livro. Na época em que o romance apareceu, esse capítulo apocalíptico parecia atingir os limites da hipérbole. Todavia, os acontecimentos vindouros quase o sobrepujaram. E ainda falta muito para que a palavra derradeira da luta de classes seja dita! A “fera do abismo” é o povo: oprimido, humilhado e degenerado até o extremo. Quem se atreveria agora a falar do pessimismo do artista? Não, London era na verdade um otimista, dotado de uma visão penetrante e que se antecipava aos fatos. “Veja em que espécie de abismo a burguesia vai te lançar, se não acabares com ela!” É esse o seu pensamento. Hoje, isso parece muito mais real e grave do que há trinta anos. Porém, ainda mais surpreendente é a visão verdadeiramente profética dos métodos pelos quais o Tacão de Ferro sustentará sua dominação sobre a humanidade esmagada. London manifesta-se notavelmente livre das ilusões do reformismo pacifista. Nesse quadro do futuro, não existe um traço sequer de democracia e de progresso pacífico. Sobre a massa de despojados se erguem as castas aristocráticas do trabalho, a guarda pretoriana, uma polícia onipresente, com a oligarquia financeira no topo. Quando lemos isso, não acreditamos nos olhos: é precisamente esse o quadro do fascismo, de sua política, de suas técnicas de governo, de sua psicologia política! O fato não pode ser contestado: em 1907, Jack London já previa e descrevia o regime fascista como resultado inevitável da derrota da revolução operária”. [2]
O romance é assim sintetizado pelo biógrafo de Jack London, Alex Kershaw:
“Uma visão apocalíptica do futuro. O tacão de ferro é a história de uma oligarquia de capitalistas norte-americanos que toma o poder no momento em que uma vitória socialista parece inevitável pelas pesquisas de opinião. O livro descreve, com fortes detalhes nas notas de rodapé, a opressão do operariado por essa oligarquia entre 1912 e 1932”. [3]
London, por meio de seu texto, faz uma veemente e virulenta denúncia do sistema capitalista de produção, identificado com a exploração, o egoísmo, a opressão, a empulhação, a violência e o crime. Tais malévolos atributos são sintetizados, metaforicamente, nas palavras do protagonista, Ernest, dirigidas à sua futura esposa e companheira de lutas Avis, que pertencia à classe burguesa:
“O vestido que você usa está manchado de sangue. O alimento que você come está ensopado de sangue. O sangue de crianças pequenas e de homens fortes está escorrendo das vigas de seu telhado. Posso ouvir o barulho das gotas, ploc, ploc, ploc, todas sobre mim”. [3]
Nesta perspectiva, toda a abundante riqueza produzida pelo capitalismo, que possibilita o culto ao belo e ao supérfluo, beneficia uma ínfima e privilegiada parte da população, em detrimento de enorme parcela, para a qual, resta como quinhão na partilha, a miséria, a fome e a morte. Há, portanto, uma relação direta entre a abundância, circunscrita a poucos e a carência, reservada a muitos, como as duas faces do mesmo capitalismo.
Em ato público, o protagonista, Ernest, está face a face com a burguesia da cidade, ocasião em que expõe, em tom de provocação e denúncia:
“Nos Estados Unidos, hoje, há quinze milhões de pessoas vivendo na pobreza; e por pobreza se entende aquelas condições de vida nas quais, por falta de alimento e de abrigo adequado, o simples padrão de eficiência no trabalho não pode ser mantido. Nos Estados Unidos hoje, a despeito de toda a assim chamada legislação trabalhista, há três milhões de crianças que trabalham. Em doze anos, esse número dobrou”. [4]
Como soa atual esta passagem do romance, mais de cem anos depois. Quase toda a riqueza produzida pelo trabalho fica nas mãos dos capitalistas e as migalhas são destinadas às classes trabalhadoras, permitindo-lhe apenas uma subsistência precária e lúgubre. Enquanto a economia gerada pelo trabalho seria suficiente, se mais equanimemente distribuída, para permitir um nível digno de vida, com acesso a alimentação apropriada, saúde, educação, lazer e maior tempo livre.
Como aponta David Harvey:
“Os cem maiores bilionários do mundo (tanto da China, da Rússia, da Índia, do México e da Indonésia como dos centros tradicionais de riqueza na América do norte e na Europa) juntaram US$ 240 bilhões a mais em seus cofres só em 2012 (o suficiente, calcula a Oxfam, para acabar com a pobreza mundial da noite para o dia). Em contrapartida, o bem-estar das massas estagna, na melhor das hipóteses, ou, mais provavelmente, sofre uma degradação crescente, se não catastrófica (como na Grécia e na Espanha)”. [5]
Zygmunt Bauman, em sintonia com a análise de Harvey, nos diz que:
“Um estudo recente do World Institute for Development Economists Research da Universidade das Nações Unidas relata que 1% mais rico de adultos possuía 40% dos bens globais em 2000, e que que os 10% mais ricos respondiam por 85% do total da riqueza do mundo. A metade situada na parte mais baixa da população mundial adulta possuía 1% da riqueza global. Contudo, essa é apenas uma foto instantânea do processo em curso. A cada dia, avultam-se sem parar informações ainda piores para a igualdade humana e também para a qualidade de vida de todos nós”. [6]
No prefácio que escreveu à edição francesa de 1923, republicado na edição brasileira, o consagrado escritor francês Anatole France assim define o significado da expressão, que dá título ao romance:
“Tacão de Ferro” é a expressão enérgica usada por Jack London para designar a oligarquia. {…] Expõe a luta que algum dia ocorrerá entre a oligarquia e o povo, se o destino assim o permitir. […] Previu o conjunto dos acontecimentos que se desenvolveram em nossa época. O espantoso drama ao qual nos faz assistir em espírito em O Tacão de Ferro ainda não se converteu em realidade, e não sabemos onde e quando se cumprirá a profecia do discípulo norte-americano de Marx”. [7]
Como dirá a narradora, Avis Everhard, nas páginas iniciais do romance, fazendo menção a seu marido Ernest Everhard, àquela altura já morto pelas forças da plutocracia que combaterá e denunciará:
“Não podemos falhar, pois tudo foi constituído por ele de forma por demais decisiva e segura. Maldito Tacão de Ferro! Mais cedo do que espera, será arrancado da humanidade extenuada! Quando for dado o sinal, as legiões de trabalhadores do mundo inteiro se sublevarão. Jamais terá havido algo semelhante na história do mundo. A solidariedade das massas trabalhadoras fará, pela primeira vez, estourar uma revolução internacional, que será tão vasta quanto o mundo”. [8]
No trecho do romance, reproduzido acima, percebe-se claramente os ecos do Manifesto Comunista, publicado em 1848 por Karl Marx e Friedrich Engels, o qual se encerra com a famosa conclamação: “Proletários de todos os países, uni-vos!”
A veemente crítica ao capitalismo, que emerge do romance de London, ainda hoje é tristemente atual. O cenário hodierno se agrava com o Brasil e o mundo sob uma pandemia do Covid-19, que se arrasta há meses, provocando como decorrência, mas num processo que já faz parte da lógica do Capital, a explosão do desemprego, o exacerbamento e o escancarar das desigualdades sociais, com o incremento da pobreza e da miséria. E o painel que vai se esboçando para o período pós-pandemia é de uma crise social aguda no âmago do capitalismo neoliberal.
No entanto, mesmo neste cenário desolador o capital segue aumentando seus lucros, extraídos do caos, do desemprego, da perda de renda e da degradação em que mergulha a classe trabalhadora, nestes tempos de pandemia. É o que se extrai de matéria publicada no site do Uol:
“Diferentes relatórios de organizações internacionais indicam que os milionários ficaram ainda mais ricos durante a pandemia de coronavírus. Os ligados ao setor digital e de novas tecnologias foram os mais beneficiados no período. Ao mesmo tempo, o surto de covid-19 acentua as desigualdades sociais e aumenta a pobreza no mundo, seja nos países desenvolvidos ou nos emergentes”. [9]
O capitalismo, historicamente, foi se constituído sob um campo de devastação, espoliação e morte. “O Livro Negro do Capitalismo”, publicado em 1999, faz um inventário histórico de suas mazelas:
“As devastações, no espaço de um século e meio, pelo colonialismo e o neocolonialismo, são incalculáveis, como impossível é calcular os milhões de mortos que lhe são imputáveis. Todos os grandes países europeus e os Estados Unidos são culpados. Escravatura, repressões impiedosas, torturas, expropriação, roubo das terras e dos recursos naturais pelas grandes companhias ocidentais americanas ou transnacionais ou por potentados locais a seu soldo, criação ou desmembramento artificial de países, em posição de ditaduras, monocultura substituindo as culturas tradicionais, destruição dos modos de vida e das culturas ancestrais, desmatamento e desertificação, desastres ecológicos, fome, êxodo das populações rumo às megalópoles, onde as esperam o desemprego é a miséria”. [10]
O Livro Negro do Capitalismo, publicado há vinte e um anos, continua atualíssimo, infelizmente para todos nós. Necessário que o retomemos, que nos instruamos com os dados que apresenta e os atualizemos, com a documentação que o fundamenta e sentido acusatório que o norteia. Este livro que tem sua importância renovada e sua atualidade reestabelecida nestes tempos de pandemia, pandemônio e neoliberalismo, que dizimam vidas e sonhos. O livro atualiza e confirma as teses expostas no romance de London, publicado há mais de um século:
Quais são os meios de expansão e de acumulação do capitalismo? A guerra (ou a proteção, seguindo o exemplo da máfia) a repressão, a espoliação, a exploração, a usura, a corrupção, a propaganda. [11]
Jack London foi um ávido leitor e um autodidata exemplar. Leu compulsivamente a obra dos mais importantes autores que estavam em voga no seu tempo, como Marx, Nietzsche e Darwin, travando contato com as mais inovadoras ideias que circularam no mundo, entre os fins do século XIX e início do século XX.
Como dirá seu biógrafo Alex Kershaw:
Jack era em primeiro lugar um darwinista social e só depois socialista – dos maus. Porém, acreditava sinceramente que apenas por meio da revolta aberta, seguindo o exemplo de seus companheiros russos que derramaram sangue em São Petersburgo, no Domingo Sangrento, os socialistas norte-americanos ganhariam a terra prometida. [12]
Em outra instigante e contundente passagem, em que analisa o homem Jack London, encontramos seus ecos no protagonista Ernest, diz Kershaw:
“Nas palestras, o homem que finalizava suas cartas com “Seu, para a revolução” reservava seu desprezo mais profundo para aqueles que haviam prejudicado sua infância, os patrões capitalistas e seus lacaios burgueses. Cuspiu recriminações amargas para sua plateia. “Vocês são abelhas que se aglomeram ao redor dos tachos de mel capitalistas”, esbravejou ele a um grupo de industriais. “São uns ignorantes. Sua fátua autossuficiência os deixa cegos para a revolução que está chegando com certeza, com certeza, e que com a mesma certeza irá arrancar da face do mapa vocês e seu ócio forrado de seda, empolado. Vocês são parasitas por trás do trabalho.” [13]
Como denuncia London:
“A grande força propulsora dos oligarcas é a crença de que fazem o que é direito. Não importam as exceções, nem a opressão e nem a injustiça em meio às quais o Tacão de Ferro foi concebido. Já sabemos de tudo isso. O que importa é que a força da oligarquia reside hoje no fato de que estão satisfeitos com a sua própria concepção de justiça”. [14]
Em outra passagem do romance London expõe as péssimas condições em que eram submetidos os operários e suas famílias:
“A condição do povo do abismo dava dó. A educação em escolas comuns, quando isso era possível, deixou de existir. Eles viviam como animais em grandes e esquálidos guetos operários, exasperados em meio à miséria e à degradação. Todas as suas antigas liberdades haviam desaparecido. Eram escravos do trabalho. Não havia, para eles, escolha de serviço. […] Não eram servos da gleba como os agricultores, eram servos das máquinas e servos do trabalho. […] Na verdade, é nos guetos operários que vivem as feras do abismo, feras que os próprios oligarcas criaram, mas cujo rugido eles tanto temem. E eles não permitirão que se extingam o macaco e o tigre que vivem dentro delas”. [15]
No romance há um capítulo intitulado “Comuna de Chicago”, que dialoga diretamente com a “Comuna de Paris”, de 1871, a primeira revolução operária da história e que acabou por se tornar o mais importante evento político do século XIX. A “Comuna”, que havia sido fundada no dia 18 de março, sucumbiu depois de heroicos 72 dias de resistência, naquela que ficou conhecida como a “Semana Sangrenta”, entre os dias 21 e 28 de maio de 1871, sob o tacão de ferro das oligarquias francesas.
A “Comuna de Paris” surge no contexto da guerra franco-prussiana, deflagrada por Luís Napoleão, em 19 de julho de 1870. Em apenas seis semanas a Prússia impõe uma acachapante derrota ao cognominado Napoleão III, que capitula em 04 de setembro deste ano. Ato contínuo é proclamada a República. Ocorre que, no afã de fazer face ao poderio bélico do adversário, o exército francês havia armado seus operários, transformando-os em uma “Guarda Nacional”. Com a rendição francesa, vem o armistício e as decorrentes imposições impostas pelo vencedor. Paris, sob os auspícios da Guarda Nacional, comandada pelos trabalhadores, agora é conclamada a restituir as armas ao exército. É o estopim que faz irromper o conflito e dará ensejo ao nascimento da “Comuna de Paris”. A guerra patriótica metamorfoseia-se em guerra proletária revolucionária.
Nas palavras de Claude Willard:
“Pela forma que nasceu, pela sua breve existência (72 dias), e sobretudo pela sua obra fecunda, a Comuna, primeira revolução operária mundial, comente um crime de lesa-majestade, de lesa-capitalismo e de lesa-ordem moral: um governo do povo, pelo povo e para o povo, com membros eleitos com mandato imperativo e revogáveis, uma verdadeira mobilização cidadã, as premissas da autogestão (posta em marcha pelos operários associados das oficinas abandonadas pelos seus patrões), os primeiros passos para a emancipação feminina, o papel dos estrangeiros (um emigrado judeu húngaro, Léo Frankel, ministro do Trabalho) …” [16]
A Comuna de Paris foi violentamente reprimida pelo exército, que estava sediado em Versalhes. Lançou-se sobre o seu próprio povo, com uma fúria e uma sanha assassina, poucas vezes vista na história. A tenacidade que lhe faltou em face do inimigo alemão, sobrepujou em face de seus compatrícios, numa inominável e colérica violência, até em então desconhecidas na França, naquelas proporções e naqueles aspectos.
Henri Dunant, fundador da Cruz Vermelha, deixa-nos este estarrecedor registro do violento massacre, que alimentados pelo ódio e pelo medo da “classe perigosa”, transformou Paris em um matadouro:
“Esta repressão implacável … terminou em terríveis cenas de estrangulamento que fizeram de Paris um depósito de caça humana. Matava-se por matar … Uma verdadeira guerra de extermínio com todos os horrores, é preciso que se diga, pois está é a verdade; e os que a ordenaram gabam-se dela e se elogiam: pensam estar cumprindo um dever sagrado; todos aqueles que pertencessem à Comuna ou que com ela simpatizassem deviam ser fuzilados. [17]
As execuções sumárias, cujos números variam entre 20.000 a 30.000, as prisões, que se fizeram aos milhares e as deportações, produziram números inimagináveis de vítimas da ferocidade dos guardiões da “ordem”, da “propriedade” e dos ‘valores da burguesia francesa”. Como ousava a plebe proletária reivindicar direitos e auto-organização? A resposta para tal insubordinação foi dada em um retumbante, violento e sangrento som da morte. O capital está sempre pronto e bem disposto a eliminar qualquer contestação de suas vítimas.
No romance de London, a Comuna de Chicago foi trucidada, igualmente, com crueldade e violência:
“A multidão estava a apenas dez metros quando as metralhadoras abriram fogo; mas diante dessa incandescente cortina de morte, nada podia sobreviver. A multidão continuava chegando, mas não podia avançar. Amontoava-se em uma enorme pilha de mortos e feridos que crescia cada vez mais. Os que estavam atrás empurravam os demais para frente, e as colunas, de fora a fora, iam se encaixando umas nas outras. Criaturas feridas, homens e mulheres, eram vomitadas sobre a crista daquela pavorosa onda e eram retorcidas até acabarem sob as rodas dos carros ou às pernas dos soldados, que aplicavam golpes de baionetas contra os desgraçados que lutavam”. [18]
O próprio London foi vítima, enquanto criança, da engrenagem capitalista que assola corpos e mentes, afligindo-lhes marcas indeléveis. Trabalhando em fábricas de conversas, cujo bafio impregnou, para sempre, suas jovens narinas, deixando uma memória nauseabunda daqueles dias em moinhos de juta, em meio a um barulho ensurdecedor, por entre fiapos, em jornadas de dez horas por dia, a dez centavos a hora, via sua infância subtraída, como registrará depois.
Não há como desprezar sua experiência de menino pobre, submetido a extenuantes horas de trabalho, em locais insalubres, em troca de tostões. Ainda no alvorecer da existência foi confrontado pela abusiva e injusta desigualdade social. Talvez tenha sido nesta quadra de sua vida, que houve o despertar de sua consciência de classe e o germinar das sementes da revolta, retratadas neste panfletário romance.
É triste constatar que décadas depois, no Brasil, muitos trabalhadores ainda continuavam sujeitos às péssimas condições de trabalho a que foi submetido London, na sua infância, em fins do século XIX. Em uma tese de Doutorado, com forte teor de denúncia social e legal, Denison Silvan registra que:
“Como inferido inicialmente, a questão que presidiu este estudo resultou no reconhecimento de que a superexploração predatória do trabalho rural na Amazônia esteve presente na atividade econômica da juta à custa de sangue, suor e sofrimento dos trabalhadores, muitos dos quais até hoje convivem com doenças e sequelas causadas pelas condições penosas, insalubres e perigosas desse tipo de trabalho. Muito além de mensuração confiável, constatamos que alguns juteiros tombaram durante a lida nos jutais devido à letalidade das condições de trabalho e muitos outros tiveram suas vidas encurtadas pelo mesmo motivo”. [19]
Como nos informa seu biógrafo Alex Kershaw:
“O que movia a vida de Jack London era, acima de tudo, a esperança de que um dia a pobreza e a injustiça social diminuíssem; de que o meio ambiente não continuasse a ser considerado um recurso a ser infinitamente explorado; de que o humanismo, um dia, triunfasse. Jack London incorporou a promessa do socialismo. Pôs em evidência os males do capitalismo e a dizimação da força de trabalho por conta de fins lucrativos cruéis. Em alguns de seus discursos mais veementes, ele mostrou o quanto as pessoas são descartáveis no processo de acumulação de riquezas de uma elite governante. Seu último suspiro foi em defesa do oprimido. Ele trabalhou para intensificar a consciência de classe mais do que qualquer outro escritor de seu tempo”. [20]
Infelizmente parece ainda distante a utopia igualitária, de uma sociedade mais justa. E tudo se agrava, terrivelmente, com a ascensão de uma boçal extrema direita ao poder, a qual aposta no acirramento das mazelas do capital. Como constata David Harvey:
“Na medida em que essas formas especulativas têm sustentado um imenso crescimento na desigualdade social e na distribuição de riquezas e poder, de modo que um oligarquia emergente – o infame 1% (que, na verdade, é mais infame ainda 0,1%) – agora controla efetivamente as alavancas de toda a riqueza e todo o poder do mundo, então isso também define linhas claras de lutas de classes cruciais para o futuro bem-estar da massa da humanidade”. [21]
Notas:
[1] Daniel Aarão Reis Filho (org.). O Manifesto Comunista 150 anos depois. Contraponto, 1998.
[2] Jack London. O Tacão de Ferro. Boitempo, 2003.
[3] Alex Kershaw. Jack London. Saraiva, 2013.
[4] Jack London. O Tacão de Ferro. Boitempo, 2003.
[5] David Harvey. 17 contradições e o fim do capitalismo. Boitempo Editorial, 2016.
[6] Zygmunt Bauman. A Riqueza de Poucos Beneficia Todos Nós? Zahar, 2015.
[7] Jack London. O Tacão de Ferro. Boitempo, 2003.
[8] Jack London. O Tacão de Ferro. Boitempo, 2003.
[9] Por que ricos ficaram mais ricos e pobreza explodiu na pandemia. Uol. Economia. 30/09/2020.
[10] Gilles Perrault (Org.). O Livro Negro do Capitalismo. Record, 1999.
[11] Gilles Perrault (Org.). O Livro Negro do Capitalismo. Record, 1999.
[12] Alex Kershaw. Jack London. Saraiva, 2013.
[13] Alex Kershaw. Jack London. Saraiva, 2013.
[14] Jack London. O Tacão de Ferro. Boitempo, 2003.
[15] Jack London. O Tacão de Ferro. Boitempo, 2003.
[16] Gilles Perrault (Org.). O Livro Negro do Capitalismo. Record, 1999.
[17] Gilles Perrault (Org.). O Livro Negro do Capitalismo. Record, 1999.
[18] Jack London. O Tacão de Ferro. Boitempo, 2003.
[19] Denison Silvan. Trabalhadores da Juta na Amazônia: trajetórias de luta, suor e sofrimento. Tese (Doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia) – Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do Amazonas. 2018.
[20] Alex Kershaw. Jack London. Saraiva, 2013.
[21] David Harvey. 17 contradições e o fim do capitalismo. Boitempo Editorial, 2016.
Carlos Eduardo Araújo é mestre em Teoria do Direito – PUC (MG).