O socialismo e a ‘self-made woman’

O que Ivanka Trump não sabe sobre mobilidade social.

Fonte: Carta Maior
Tradução: Clarisse Meireles
Data original da publicação: 12/03/2019

Se você for como eu, deve estar precisando de uma pausa, mesmo que breve, no assunto Donald Trump. Então, por que não falamos sobre Ivanka Trump? Recentemente, ela disse algo que teria sido notável vindo de qualquer republicano, mas que foi impressionante por ter vindo da Primeira Filha.

O assunto em discussão era a proposta, que faz parte do New Deal verde, de que o governo ofereça uma garantia de emprego. Ivanka Trump criticou a ideia, alegando que os americanos “querem trabalhar pelo que ganham” e querem viver em um país “onde há a possibilidade de mobilidade social”.

Sim, foi um caso admirável de falta de autocrítica: nada pode ser melhor do que receber lições de autoconfiança de uma herdeira cuja estratégia comercial inclui fazer negócios usando o nome do pai. Mas vamos em frente. Sabemos muito sobre mobilidade social em diferentes países, e os fatos não mostram o que os republicanos gostariam de ver.

A principal observação, baseada em um número crescente de pesquisas, é que, quando se trata de mobilidade social, os EUA são realmente excepcionais – o que apresentam, no entanto, é um desempenho excepcionalmente ruim. Os americanos cujos pais têm renda baixa são mais propensos a ter renda baixa e menos propensos a ascender à classe média ou alta do que seus pares em outros países avançados. E aqueles que nascem ricos são, de modo correspondente, mais propensos a manter sua posição.

Não é assim que gostamos de nos ver. Na verdade, há uma curiosa desconexão entre a realidade e a percepção: os americanos são muito mais propensos do que os europeus a imaginar que sua sociedade é marcada por uma alta mobilidade social, quando a realidade é que ela é consideravelmente maior para os europeus.

Muito disso parece refletir uma desinformação sistemática. Em alguns lugares, os membros hereditários da elite gabam-se de sua linhagem, mas nos EUA eles fingem que enriqueceram por esforço próprio. Por exemplo, um grande número de americanos aparentemente acredita que Donald Trump é um self-made man.

De qualquer forma, a mobilidade social excepcionalmente baixa dos EUA difere-se de sua desigualdade de renda excepcionalmente alta, embora as duas estejam quase certamente relacionadas. Entre os países avançados, há uma forte correlação negativa entre desigualdade e mobilidade, às vezes chamada de “curva Grande Gatsby“. Faz sentido. Afinal, grandes disparidades na renda dos pais tendem a se traduzir em grandes disparidades nas oportunidades dos filhos.

As pessoas parecem entender esse ponto, aliás. Muitos americanos não percebem quão desigual nossa sociedade realmente é; diante de fatos sobre a desigualdade de renda, porém, tornam-se mais propensos a acreditar que o fato de vir de uma família rica desempenha um grande papel no sucesso pessoal.

Voltando à “possibilidade de mobilidade social”: onde as pessoas de origem pobre ou modesta têm melhores chances de progredir? A resposta é: na Escandinávia, que lidera o ranking, embora o Canadá também se saia bem. A explicação é que os países nórdicos não têm apenas baixos índices de desigualdade, eles também têm governos muito maiores e redes de proteção social muito mais extensas do que nós. Em outras palavras, aquilo que os republicanos denunciam como sendo “socialismo” (é claro que não é, mas deixa para lá).

E a associação entre “socialismo” e mobilidade social não é um acidente. Pelo contrário, é exatamente o que se esperaria.

Para entender por que, basta trazer para o contexto americano, e se perguntar o que aconteceria com a mobilidade social se a ala mais à direita do Partido Republicano ou se os democratas progressistas conseguissem implementar suas agendas políticas na íntegra.

Se as figuras do Tea Party conseguissem o que querem, veríamos cortes drásticos no Medicaid, nos cupons de alimentação e em outros programas que ajudam americanos de baixa renda – o que, em muitos casos, deixaria as crianças de baixa renda sem acesso a assistência médica e nutrição adequadas. Também haveria cortes no financiamento da educação pública. No outro extremo da escala, veríamos cortes de impostos que aumentariam a renda dos ricos, e o fim do imposto sobre imóveis, permitindo que todos esses bens fossem passados para seus herdeiros.

Do lado oposto, os democratas progressistas lutam por assistência médica universal, pelo aumento da ajuda aos pobres e por programas que ofereçam financiamentos universitários gratuitos ou, pelo menos, subsidiados. Também querem criar uma ajuda para que os pais de renda média e baixa possam pagar por creches de qualidade. E propõem que estes benefícios sejam pagos com o aumento dos impostos sobre salários elevados e grandes fortunas.

Qual dessas agendas tenderia a congelar o nosso sistema de classes, tornando mais fácil para as crianças ricas permanecerem ricas e mais difícil para os filhos dos pobres escaparem da pobreza? Qual delas nos aproximaria do sonho americano, criando uma sociedade em que jovens ambiciosos dispostos a trabalhar duro teriam uma boa chance de transcender sua classe?

A sra. Trump tem toda razão em afirmar que a maioria de nós quer um país onde a mobilidade social seja possível. Mas o que precisamos fazer para garantir que sejamos esse tipo de país – as políticas associadas a altos níveis de mobilidade social em todo o mundo – é exatamente o que os republicanos denunciam como socialismo.

Paul Krugman é professor titular no City University of New York Graduate Center. Ganhou o Prêmio Nobel de 2008 em Ciências Econômicas por seu trabalho sobre comércio internacional e geografia econômica.

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