Antigamente eram os ricos e privilegiados que tinham maiores riscos de morte violenta nas mãos da multidão descontrolada: hoje este lugar é ocupado pelos servidores públicos de média remuneração. A morte não é real, é simbólica, pelo fim da valorização da condição de serviço público como algo de valor.
Jorge Barcellos
Fonte: Estado de Direito
Data original da publicação: 11/10/2017
A liminar de Gilmar Mendes
O recente liminar do Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes deferido no último dia 10 e que suspende as decisões judiciais que determinam a necessidade de negociação coletiva prévia para concluir o processo de extinção de seis fundações públicas e outros órgãos do Governo de Estado beneficiam o projeto neoliberal de José Ivo Sartori. A partir de agora, consolida-se mais um passo na transformação dos servidores públicos em “bode expiatório”: sob o argumento de “urgência que o assunto requer” e “perigo de lesão grave ao orçamento estadual”, o ministro referendou o “crime perfeito”. Ele é o desmonte da máquina pública para atender interesses privados sob a proteção legal, simulacro fatal que afirma que, apesar da aparente existência de instituições democráticas, vivemos a ditadura dos regimes políticos que se colocam ao lado da iniciativa privada. Pior: um capital acumulado nas competências de servidores públicos ao longo de décadas é jogado fora, sem respeito a história de trabalho acumulada.
Como é possível que o Poder Judiciário, a quem compete proteger os direitos dos trabalhadores, possa agir na contramão dos direitos sociais básicos de servidores públicos concursados? Não é difícil lembrar outras situações em que parcela do judiciário tem servido de proteção a governantes em seus projetos de redução do estado. Esse pacto está presente não apenas nas decisões de determinados ministros, mas também nas concepções defendidas em vários estudos do Poder Judiciário, que vem incorporando a defesa de fundamentos de gestão alinhadas as políticas neoliberais. Sabemos aonde isso vai levar: a redução da máquina do estado, ao privilégio de setores econômicos, a fragilização da função pública.
Mas o que interessa no caso da liminar do Juiz é a absorção pelo poder judiciário da ideia de “bode expiatório”. Ao liberar o governador José Ivo Sartori para continuar seu projeto de redução da máquina do estado, o ministro abandona a própria sorte servidores que deveria defender. É fácil ver porque: o sentido figurado utilizado para definir a expressão “bode expiatório” é a de alguém escolhido arbitrariamente para levar a culpa de uma calamidade, crime ou qualquer evento negativo, embora não o tenha cometido. Atitude irracional que responsabiliza pessoas por algo que não cometeram, a utilização de “bodes expiatórios” é uma das mais poderosas ferramentas de propaganda política. Ao longo da história, diversos exemplos mostram sua utilidade como é o caso dos judeus durante o nazismo e que foram apontados como culpados dos problemas econômicos da Alemanha.
A origem do bode expiatório
A origem do “bode expiatório” remonta a tradição do Torá e a visão cristã. O Torá narra a história do sacrifício que era parte do ritual korban (sacrifício) no Templo de Jerusalém, tentativa do pecador em se aproximar de Deus. Dois bodes e um touro eram levados para um templo e um dos bodes era sorteado para ser queimado no sacrifício com o touro. O segundo bode era o “bode expiatório” porque o sacerdote confessava os pecados do povo de Israel e o bode os levava ao ficar ao relento na natureza. Na visão cristã o bode expiatório é encarnado por Jesus por causa de seu sacrifício pelos pecados da humanidade mas há na versão bíblica do bode que, abandonado no deserto, representa o demônio. A ideia cristã é que não existe expiação “sem derramamento de sangue” e, da mesma forma que no Torá, para que alguém expurgue seus pecados, é preciso do sangue de uma vítima inocente.
A imagem é interessante para criticar os discursos que, em nome da necessidade de modernização do serviço público, ocultam a estratégia de transformar servidores públicos honestos em bode expiatório. Por todo o lado, iniciativas de reduzir direitos adquiridos justos adquiridos pelos servidores públicos para o exercício de suas funções, reajustes salariais de categorias profissionais como professores, retirada da concessão de direitos adquiridos revelam que políticos de plantão tem interesse em alavancar suas carreiras políticas com o discurso da moralização do serviço público cuja base é a transformação do servidor em “bode expiatório”. São políticos que assumem altos cargos e vem paulatinamente revogando o direito do servidor de estudar, desapoderando chefias e recusando negociar com sindicatos pautas de reivindicações. Todas estas iniciativas pelas quais o discurso político reivindica a modernidade de gestão representam um ataque a natureza da instituição pública porque transformam o bom servidor em “bode expiatório” da sociedade.
Os servidores públicos honestos sofrem uma perseguição semelhante à caça às bruxas, que, no passado, levava suas vítimas à fogueira. As “novas bruxas” são caçadas por uma opinião pública superexcitada por veículos de comunicação dominantes com nítidas vinculações com o Capital. Elas promovem uma cultura persecutória contra bons e honestos servidores públicos, transformando-os em “bode expiatório”. Perseguições contra setores sociais como esta ocorrem sempre em períodos de crise, como a Revolução Francesa, porque nestes períodos se veem o enfraquecimento de instituições e dos discursos em defesa dos direitos. Com a crise no pais e contra o direito adquirido dentro da lei se formam multidões que agora não se reúnem mais em praça pública, mas são arregimentadas por políticos de plantão pelas redes sociais e pelos meios de comunicação ligados ao Capital movidos por interesses que nem sempre correspondem ao interesse público.
A perseguição aos servidores
A perseguição sofrida pelos servidores é semelhante as sofridas por outros grupos e povos ao longo da história. Esse processo produz vítimas que a sociedade desconhece. A primeira vítima é próprio processo de trabalho no serviço público. O sentimento da perda radical da sua natureza, o fim das regras previamente estabelecidas por consenso, faz com que o servidor reduza sua capacidade de atender a instituição pública. Essa perda das regras da natureza das instituições públicas pode ser vista em vários exemplos. Se antes, se as instituições necessitassem que seus servidores ultrapassem o horário normal de trabalho de oito horas, realizavam acordos entre chefias que garantiam que não faltariam servidores para dar conta do trabalho no horário extra expediente. Hoje, quando gestores apresentam o ponto eletrônico como “solução moderna” para o controle dos servidores das instituições públicas, a regra do jogo altera-se com a imposição de horário de registro do ponto eletrônico e a obrigação de “bater” ponto substitui a solidariedade para com o serviço. A consequência é que o servidor sente-se à vontade para não estar disponível para trabalhar quando a necessidade de serviço exigir noite a dentro.
Depois dos processos de trabalho, a segunda vítima dos processos de perseguição é sempre o servidor honesto que trabalha. Os bons pagam pelos maus porque a perseguição é indiferenciada. A perseguição modifica para pior os modos de trabalho que antes eram funcionais: a cultura institucional onde o servidor dedicado buscava qualificação para exercer sua função é substituída por um aspecto monstruoso onde as relações funcionais produzem a indiferença do servidor para com o trabalho. Não se exige mais qualidade do trabalho porque sequer os servidor é autorizado a estudar. Vejam os casos de professores que tem negado pelo Estado o direito de afastarem-se para cursar programas de mestrado e doutorado. Ou os servidores que tem por Lei direito a estudarem em instituições públicas e que de uma hora para outra, são obrigados a estudar na universidade privada.Que incentivo terá para estudar, para aprimorar-se em sua função? O efeito é a mediocrização da mentalidade de trabalho, o servidor sente-se como uma engrenagem de uma máquina, não se está mais num sistema de trocas, de uma cultura funcional, mas de relações negativas e hostis. Diz o filósofo René Girard, em sua obra clássica sobre o tema, “O bode expiatório” (Paullus, 2004) “As pessoas, sem distinção de estado ou de fortuna, são afogadas por uma tristeza mortal. Tudo se reduz a uma extrema confusão”(p.21).
A perseguição que lideranças políticas na busca incessante da cassação dos direitos dos servidores representa fonte de infelicidade para o servidor e encurvamento egoísta do político sobre si mesmo. O efeito é produzir um jogo de lutas e represálias entre os atores envolvidos que tem como consequência a crise da instituição. Quando a moralização não é real, isto é, não retira “excessos” mas “direitos”, ela produz “danos colaterais“ (Bauman): o estereótipo da moralização projeta seus efeitos produzindo o “bode expiatório”: alguém tem que pagar para que eu, o político gestor, seja julgado pela sociedade como um político de valor. E quem paga a conta é o bom servidor. O serviço público se eclipsa neste processo: é preciso distinguir as medidas que são anunciadas para a opinião pública como exemplo de moralização e que realmente produzem efeitos significativos sobre a máquina pública daquelas que ocultam em seu interior a instalação de um modelo persecutório dotado de uma lógica que une todas as medidas entre si num projeto politico cujo objetivo é alimentar os piores estereótipos sobre o serviço público em geral. Projetos que, apesar do enorme sucesso para o público sedento de sangue, ocultam no fundo um processo de desestruturação das instituições.
A crise da sociedade e o bode expiatório
O espaço que tais gestões conquistam junto mídia burguesa acontece porque no momento em que a sociedade vive um momento de crise – crise econômica, das relações de trabalho, do recuo de direitos sociais consagrados – a tendência da sociedade é explica-la por razões morais. Diz novamente Girard a respeito: ”Todavia, mais do que reprovar a sí próprio, os indivíduos tem forçosamente a tendência de reprovar tanto a sociedade em seu conjunto, o que não os compromete com nada, como outros indivíduos que lhes parecem particularmente nocivos por razões fáceis de desvendar. Os suspeitos são acusados de crimes de um tipo particular”(p.22). Maus gestores e políticos de ocasião fazem de tudo para que este lugar de sujeitos nocivos seja ocupado no imaginário pelo servidor público e procuram em todo o lugar os indícios suscetíveis de reforçar o estereótipo persecutário sobre o qual se baseia seu projeto de administração.
Os motivos de acusação que transformam os servidores públicos em “bode expiatório” são bastante diversos. Eles se baseiam no estereótipo que toma os salários que são pagos aos servidores como equivalente da condição de servidor público, e esta, como violência à sociedade. Daí a necessidade de publicação de relações nominais salariais, excesso quando muitos órgãos já tem a divulgação por cargos, que responsabiliza o servidor pela crise do Estado, excesso que desresponsabiliza o administrador ou politico de plantão. Como nos episódios bíblicos, sempre são os mais fracos e mais desarmados que sofrem a violência da transformação em “bode expiatório”, equivalente atual as crianças prestes a serem sacrificadas. A lei imaginária que diz que o servidor não tem direito à nada deixa subentender que “o politico pode tudo”. Por esta razão, não é incomum que autoridades sequer reconheçam o direito dos servidores a serem ouvidos em suas reivindicações. Esta é a condição atualizada do “bode expiatório”: acusado por um crime que não cometeu, por sua remuneração e pela reivindicação do cumprimento de direitos produtos de Planos de Cargos e Salários. Mas pagar o salário justo não pode ser considerado um crime pela sociedade e nem seus servidores, criminosos pelos salários que recebem, ou pelos direitos a que fazem jus, simplesmente porque sem Planos de Cargos e Salários, não há serviço público; os servidores submeteram-se a um concurso público, maneira justa de terem acesso a cargos públicos e faz parte de seu contrato diversas vantagens. O que a sociedade não consegue entender e os servidores não encontram espaço para expressar – excetuando-se as páginas de SUL21 – é que o verdadeiro crime é mudar as regras, exatamente o objetivo perseguido pela politica neoliberal, a de que nenhuma categoria tenha direito algum, e se possível, que sejam todas as funções públicas terceirizadas. Precarizar as instituições públicas, o novo gozo do Capital e elemento do projeto neoliberal é que origina o ataque aos servidores, para no futuro, privatizar os serviços públicos.
O que perturba a multidão é o fato de servidores ganharem acima da média do mercado, tomando de assalto a “emoção pública” de que nos fala o filósofo Paul Virilio. O que deseja a ideologia de mercado é que nunca seja apontado que quem paga mal é o mercado, que explora a mão de obra, provocando o desvio do verdadeiro alvo de ataque. Os direitos do servidor público deveriam ser de todas as categorias, e de certa forma, sua queda progressiva já é a vitória da onda neoliberal, a iniciar pela estabilidade de emprego. Ora, como negar o direito a justa remuneração à servidores da Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde do Estado, a maioria com pós-graduação, formação colocada à disposição da instituição? Como negar o direito a justa remuneração por tempo de serviço, quando este é a experiência acumulada a serviço do trabalho? A multidão que se expressa pela opinião pública não consegue agir sobre causas legais, sempre procura a causa que “satisfaça seu apetite de violência”. A mídia burguesa constrói na opinião pública uma imagem do servidor pelo uso da sua potência, isto é, do sonho que tem a opinião pública de purificar a comunidade dos elementos que considera impuros e que a corrompem, no caso, os servidores públicos. Mas esta generalização mata os servidores públicos bons e honestos.
Retorno da história
As acusações estereotipadas contra os servidores públicos são equivalentes as acusações que se faziam no passado contra judeus ou outros bodes expiatórios. Produto de uma busca por culpados, a opinião pública procura criminosos com corpo material, daí a insistência na divulgação nominal dos salários dos servidores, no controle físico pelo ponto eletrônico, mas ainda há uma diferença. Enquanto que os persecutores imaginavam no passado formas de envenenar realmente seus bodes expiatórios, hoje o veneno transformou-se e adequou-se a nova época da informação: o veneno agora é a mentira dita como verdade. Esta é a nova forma do veneno, o comentário malicioso com o objetivo de fascinar as massas, envenena a opinião pública contra os servidores. Lança-se a responsabilidade dos gastos excessivos na conta de servidores, altera-se frente ao público detalhes de informações processuais, dá-se interpretações generalistas sobre a realidade de servidores e graças a esse “veneno” lideranças políticas conseguem persuadir o público em geral de que servidores são nocivos para a sociedade. Diz Girard: “O veneno é, portanto, ao mesmo tempo menos mítico e também tão mítico quanto as acusações anteriores ou até o puro e simples “mau olhado”, graças ao qual se pode atribuir a qualquer individuo a responsabilidade de não importa qual desgraça”(p.25).Os servidores públicos são como as antigas bruxas: não é necessária sua presença real para o estabelecimento da prova de que são culpados. Mas esse não é o único estereótipo envolvido. Outro estereótipo apontado por Girardi é o fato de que perseguidores tendem a procurar grupos específicos como minorias étnicas e religiosas: hoje foi apenas acrescido a categoria dos servidores públicos. Estes pagam o preço por serem grupos distintos do social e o efeito é o tornar mal integrados a sociedade: com a política de estado que reduz recursos das políticas públicas os servidores não conseguem realizar seu trabalho para a sociedade.Não é a toa você vê cada vez mais médicos pagando de seu próprio bolso para terem os materiais para atenderem seus pacientes, servidores para terem material de escritório, professores para terem material escolar e outras formas com que outras categorias de servidores públicos financiam o estado. Isto tem um nome: precarização.
Os critérios dominantes do processo vitimário sempre passaram por aspectos culturais e físicos, como doença ou loucura, que determinavam o caráter persecutório. O que surpreende é reconhecer que hoje salário é o critério que polariza os perseguidores: agora não é mais a anormalidade física que serve de pretexto para perseguir alguém. A anormalidade agora é salarial, os servidores públicos devem ser perseguidos porque possuem um handicap (vantagem). Desde quando um adicional de periculosidade é considerado vantagem? O servidor está adquirindo ao longo do tempo danos em sua saúde e não tem direito a nada? É a pequeneza da sociedade, o fato de ela sentir-se a vontade para tomar medidas contra o servidor que reforça a polarização vitimaria: a opinião pública tem dificuldade de reconhecer as diferenças que a prestação de um concurso público impõe. A estabilidade decorrente é a garantia de que o servidor não será vítima de pressão porque os servidores públicos estão longe de serem os verdadeiros marginais, que são os ricos e poderosos, que tem todas as proteções e privilégios que precisam que o servidor público se corrompa para usufruir benefícios. Daí a pressão de políticos para agir ao arrepio da lei. Para isso, o que recebem os servidores públicos não está acima da média salarial considerada justa pelo Diese, que aponta que o salário mínimo real deveria estar na faixa de R$ 3.000,00 (três mil reais) enquanto que a política neoliberal deseja que tudo esteja “ao nível do mar”.
Antigamente eram os ricos e privilegiados que tinham maiores riscos de morte violenta nas mãos da multidão descontrolada: hoje este lugar é ocupado pelos servidores públicos de média remuneração. A morte não é real, é simbólica, pelo fim da valorização da condição de serviço público como algo de valor. Políticos que adotam como mote de campanha a moralização do serviço público o fazem porque buscam alimentar o imaginário popular para usufruir votos na próxima eleição. Esta política de pessoal atrai a indignação da sociedade e manipula grosseiramente os extremos frente ao poder público.A política que faz com que a sociedade se contraponha a servidores públicos honestos, que autoridades legitimamente eleitas construam uma estratégia cultural baseada na produção de violência coletiva contra servidores só pode ser considerada exemplo de má política. Das autoridades legitimas se espera agir com base na virtude. Quando uma autoridade deseja influir na multidão para que ela persiga seus servidores públicos, algo está errado. As diferenças entre empregados privados e servidores públicos podem ser legitimas e necessárias. Finaliza Girardi: ““Os estereótipos da perseguição são indissociáveis, e a maioria das línguas não os dissociam. É verdadeiro a respeito do latim e do grego, que nos obriga a recorrer sem cessar, no estudo dos estereótipos, a termos aparentados, como crise, crime, critério, critica, que remontam todos a mesma raiz, ao mesmo verbo grego krino, que significa não só julgar, distinguir, diferenciar, mas acusar e condenar uma vítima”.
Jorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.