A distribuição do Auxílio Emergencial no ano passado atendeu a 38 milhões de pessoas que estavam em situação de emergência, mas não faziam parte do contingente registrado nos programas sociais do governo federal. A assistência a esses “invisíveis às políticas públicas” mostra, de um lado, que o Brasil precisa ampliar as políticas de distribuição de renda, mas, de outro, que a “redistribuição se mostrou insuficiente e fica cada vez mais evidente que precisamos também fazê-la pelo lado da tributação”, defende Maria Regina Paiva Duarte, em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Segundo ela, “tributar os super-ricos é um instrumento importante e necessário para o crescimento econômico e a redução da desigualdade”. À frente do Instituto Justiça Fiscal que, juntamente com outras 70 entidades, integra a Campanha “Tributar os Super-Ricos”, Maria Regina explica, na entrevista a seguir, como o aumento dos tributos sobre as altas rendas e grandes patrimônios é fundamental para enfrentar a crise econômica, agravada pela pandemia da Covid-19. “Pensando especificamente no foco principal da Campanha Tributar os Super-Ricos, que é prover recursos de forma emergencial para combater a crise sanitária, salvar vidas, garantir emprego e renda e recuperar a atividade econômica, podemos dizer que os recursos devem ser usados para adquirir vacinas e financiar o Auxílio Emergencial, porque não haverá recuperação econômica enquanto não passar a crise sanitária”, afirma.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Maria Regina acentua que “a emissão de moeda e endividamento público, sozinhos, não resolvem o problema da concentração de renda e desigualdade, pois é necessário que venham acompanhados de políticas fiscais que garantam a distribuição da riqueza, e a maneira mais indicada de fazer isso, tanto do ponto de vista moral e da justiça, quanto do ponto de vista econômico, é tributar mais a renda, patrimônio, heranças e dividendos, que apontem para uma reforma tributária que seja progressiva e respeite o princípio da capacidade contributiva, que está na Constituição Federal de 1988”.
Defensora da instituição de uma renda básica universal, ela alerta, contudo, para os riscos da “voucherização” da economia. “Por um lado, o serviço não é mais oferecido pelo ente público; por outro lado, o governo entrega na mão do cidadão um determinado valor, uma renda, para que ele compre o serviço no mercado. Uma política de renda básica que não seria a que já citei aqui, necessária e fundamental, mas uma política focalizada na pobreza aos moldes, talvez, do que se pensava três ou mais séculos atrás. O que necessitamos é uma política universalizada, acessível a todos, especialmente aos que mais necessitam de políticas públicas”, argumenta.
Maria Regina Paiva Duarte é presidenta do Instituto Justiça Fiscal e auditora fiscal aposentada da Receita Federal. Autora de diversos artigos sobre tributação, justiça fiscal e afins, organizou em 2018, com Rosa Chieza e Claudia Cesare, o livro Educação Fiscal e Cidadania (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2018), premiado pela Associação Brasileira de Editoras Universitárias.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – É possível desenhar um programa econômico-social que compreenda redução das desigualdades e também crescimento econômico? Como a tributação dos super-ricos pode se configurar como um instrumento para esse programa?
Maria Regina Paiva Duarte – Um programa que busque o crescimento econômico, mas não inclua redução de desigualdade, certamente não seria um bom programa. Já tivemos experiências no passado, em que aumentaríamos o bolo para depois dividir. E o resultado foi mais concentração de renda, mais desigualdade.
Um país como o Brasil, que ocupa posições vexatórias em termos de concentração de renda e riqueza e desigualdade em relação aos demais países, precisa fazer políticas de distribuição de renda, investir em programas como Bolsa Família, pagamento de benefícios, programas sociais etc., como o fez a partir dos anos 2000. MXas essa redistribuição se mostrou insuficiente e fica cada vez mais evidente que precisamos também fazê-la pelo lado da tributação.
Até organizações mais tradicionais e conservadoras como o Fundo Monetário Internacional – FMI estão apontando que é necessário alterar a estrutura tributária e promover mudanças que levem a uma melhor distribuição de renda. Em 2015, a instituição mostrou que, com níveis elevados de desigualdade de renda, torna-se impossível, praticamente, as pessoas melhorarem suas condições de existência e isso restringe o crescimento econômico [1]. Em 2017, foi publicado o documento “IMF Fiscal Monitor: Tackling Inequality”, recomendando a progressividade tributária como medida para reduzir as desigualdades e evidentemente que isso gera crescimento econômico. Em 2020, em plena pandemia, o FMI defendeu a tributação progressiva para países com limitados espaços fiscais, bem como a manutenção dos investimentos públicos [2].
Em fevereiro deste ano, o estudo divulgado pelo Made/USP intitulado “Como a redistribuição de renda pode ajudar na recuperação da economia? Os efeitos multiplicadores da tributação dos mais ricos para transferência aos mais pobres”, mostra que, a cada R$ 100,00 transferidos do 1% mais rico para os 30% mais pobres, é gerada uma expansão de R$ 106,70 na economia. Também afirma que uma política de proteção social financiada a partir de tributos sobre o 1% mais rico transfere R$ 125,00 para os 30% mais pobres, elevando o multiplicador da economia e gerando um impacto positivo de 2,4% no Produto Interno Bruto – PIB.
Podemos afirmar, então, que tributar os super-ricos é um instrumento importante e necessário para o crescimento econômico e a redução da desigualdade.
IHU On-Line – A senhora também integra o movimento da Campanha para Tributar os Super-Ricos. Em que consiste essa campanha e como seria essa tributação?
Maria Regina Paiva Duarte – A Campanha “Tributar os Super-Ricos”, integrada por mais de 70 entidades, visa a implementação de um conjunto de medidas para enfrentar a crise econômica, agravada pela pandemia de Covid-19, com o aumento dos tributos sobre as altas rendas, grandes patrimônios e redução para as baixas rendas e pequenas empresas. São oito propostas de lei que podem gerar arrecadação anual estimada de aproximadamente R$ 300 bilhões ao ano, onerando apenas os 0,3% mais ricos do país. Estes projetos de lei foram apresentados ao Congresso Nacional em agosto de 2020, e na fase atual da Campanha, as entidades pressionam por sua tramitação no Congresso Nacional.
Um dos eixos principais da Campanha é corrigir as distorções no Imposto de Renda da Pessoa Física – IRPF, que livra as rendas do capital. O Brasil é praticamente o único país do mundo onde as pessoas que recebem lucros, dividendos e rendimentos de aplicações financeiras são isentas do Imposto de Renda, diferentemente da imensa maioria dos trabalhadores, que tributa na fonte e faz o ajuste da declaração. É necessário, igualmente, revisar a tabela do IRPF. Outra linha importante é a ampliação dos tributos sobre as grandes riquezas, a taxação de grandes fortunas. No Brasil, a tributação sobre o patrimônio é muito baixa. As pessoas que acumularam muita riqueza, por herança ou pela distribuição isenta de lucros, são muito beneficiadas pelas isenções e, quanto mais possuem, menos imposto pagam. Os lucros remetidos para fora do país também são isentos. É um incentivo para os sócios de bancos e empresas mandarem dinheiro para o exterior ao invés de gerar empregos locais. A proposta é que os lucros remetidos ao exterior sejam também tributados no Brasil.
Imposto sobre grandes fortunas
No caso do Imposto sobre Grandes Fortunas – IGF, foi previsto na Constituição Federal desde 1988, mas até agora não foi regulamentado em lei. Na proposta da Campanha serão tributadas pessoas com patrimônio superior a R$ 10 milhões, sobre a parte que exceder esse valor. Por exemplo, se alguém tiver R$ 12 milhões de patrimônio, pagará imposto sobre R$ 2 milhões. A tributação atingiria somente os patrimônios pessoais e, portanto, não afugentaria nenhum investimento produtivo. As alíquotas propostas são pequenas, com potencial muito pequeno para gerar algum tipo de pânico. Quem tem entre R$ 10 milhões até R$ 40 milhões, pagará 0,5%. Acima de R$ 40 milhões até R$ 80 milhões, paga 1% e, acima desse valor, 1,5%. E somente 59 mil pessoas com patrimônio superior a R$ 10 milhões pagará esse tributo. Isso representa 0,028% da população. Com esse imposto, será possível arrecadar mais de R$ 40 bilhões por ano.
Tributação para empresas
E não só pessoas físicas precisam pagar mais, como prevê a Campanha. Empresas altamente lucrativas, como as do setor extrativo mineral e os bancos, podem ter elevação na alíquota da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL, o que serve tanto do ponto de vista da arrecadação como da distribuição, já que a CSLL ajuda a financiar a seguridade social. Ou seja, retira de um setor que pode contribuir mais para outro que necessita mais.
Para micro e pequenas empresas, o que se propõe é uma redução das alíquotas do Simples Nacional, com a isenção das parcelas de Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro para as faixas de receitas brutas de até R$ 360 mil por ano das empresas. Dependendo do tipo de atividade e do porte da empresa, isso representa uma diminuição de alíquotas de até 60%.
IHU On-Line – O reajuste das tabelas de Imposto de Renda pode ser uma alternativa para efetivar a tributação de quem ganha mais? Por quê?
Maria Regina Paiva Duarte – A tabela de alíquotas [do Imposto de Renda] precisa mudar. Isso faz parte do que chamamos de corrigir as distorções do IRPF. Não somente precisa ser corrigida e atualizada, pois desde 2015 a tabela é a mesma. Não foi corrigida e, portanto, os ganhos salariais obtidos podem estar perdidos nesta falta de reajuste. Cálculos apresentados pelo Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal – Sindifisco estimam que a defasagem está em mais de 110%, o que evidencia a necessidade de correção da tabela. Mas não só: também precisamos rever as faixas de alíquotas. Atualmente, a alíquota máxima do Imposto de Renda das pessoas físicas é de 27,5%, uma das menores do mundo. Para os rendimentos mais elevados, a proposta é de adotar alíquotas de 30% até 45%, esta última para rendimentos mensais superiores a R$ 76 mil. Essa alíquota de 45% já existia no Brasil até 1989. Com isso, pode-se aumentar o limite de isenção de dois para três salários mínimos, o que beneficiará mais de dez milhões de trabalhadoras/es.
Com essas duas propostas, seria possível aumentar a arrecadação em quase R$ 160 bilhões por ano. E com a nova tabela proposta, somente 600 mil pessoas, com rendimentos superiores a R$ 35 mil por mês (apenas 0,3% da população brasileira), pagarão mais Imposto de Renda. No outro lado, 23 milhões de trabalhadoras/es, com rendimentos baixos ou médios, pagarão menos imposto. Estima-se que essa desoneração injete mais de R$ 16 bilhões na economia, ou seja, além de justo, promove crescimento econômico.
A estratégia, trazendo um pouco da questão anterior, é combinar essa alteração na tabela de alíquotas do IRPF e a correção da tabela, com outras medidas, como acabar com a isenção do imposto de renda na distribuição de lucros e dividendos na pessoa física, terminar com a dedução de juros sobre capital próprio, ambas vigentes desde 1996, modificar a tabela de alíquotas do IRPF, instituir imposto sobre grandes fortunas, aumentar alíquotas para heranças e doações, enfim, avançar no sentido de serem aprovadas tais medidas.
IHU On-Line – Como anda a articulação para esse projeto de Tributação dos Super-Ricos em Brasília? Qual a recepção entre parlamentares e grandes setores econômicos (e empresários desses setores)?
Maria Regina Paiva Duarte – Até o momento, as propostas foram apresentadas ao Congresso Nacional, mas ainda não foram protocolizadas por nenhum partido. Estamos em tratativas para que sejam formalizadas e possam tramitar.
Importante frisar que quase todas as propostas da campanha não necessitam de emenda à Constituição, com exceção da criação da contribuição social sobre altas rendas. Existe uma emenda aglutinativa à PEC 45/2019, de número 178, que apresenta propostas semelhantes à da Campanha Tributar os Super-Ricos, mas está dentro da tramitação de uma proposta de emenda à Constituição.
Congresso conservador e a correlação de forças para alterar as leis tributárias
Precisamos levar em conta que temos um Congresso majoritariamente conservador, haja vista as últimas votações para eleição da presidência da Câmara e do Senado, a PEC do Auxílio Emergencial com seus condicionantes, indefensáveis para uma época de necessidade de expansão de gastos e investimentos públicos. Mas há brechas e frestas por onde entrar. Na votação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb, a pressão exercida trouxe resultados favoráveis ao setor da educação. Claro que não é “vida fácil”. Há muito caminho a ser percorrido. A correlação de forças, mesmo no tempo dos governos progressistas, foi insuficiente para modificar as normas legais tributárias. Será um grande desafio para a oposição parlamentar.
O setor econômico, por várias razões, também é bastante refratário a este tipo de alteração. Em geral, as grandes federações e associações empresariais, apoiadas pela grande mídia, defendem outros tipos de medidas, que não alteram substancialmente a tributação dos mais ricos.
Não surpreende! Afinal de contas, nosso passado escravista e latifundiário fala muito do que hoje estamos vivenciando no mundo empresarial, dos conglomerados financeiros. O tipo de alterações e reformas que os setores empresariais querem é o que visa à unificação de tributos sobre consumo, sem alterar a tributação dos mais ricos.
Mesmo a alegada defesa da desoneração sobre o consumo, que onera os mais pobres, não se sustenta quando observamos a origem das propostas de alteração. Desonerar o consumo virou bandeira de quase todos os setores, incluindo o empresarial, mas a apropriação dessa bandeira por este setor, que clama por maior justiça, curiosamente deixa de propor a tributação sobre os mais ricos. E descuida da seguridade social, do federalismo. Novamente, não surpreende [3]!
IHU On-Line – Que outros desafios o Brasil tem para superar em termos de justiça fiscal?
Maria Regina Paiva Duarte – Os caminhos para uma sociedade fiscalmente mais justa passam, com certeza, pela noção de que a concentração de renda e a desigualdade não são fruto da natureza, da forma como as pessoas são ou pela vontade divina.
Um dos maiores desafios que temos, talvez o primeiro, seja vencer a disputa de narrativas em torno do tema. Os discursos hegemônicos difundem, equivocadamente, que a carga tributária brasileira é a mais alta do mundo, que pagamos muitos impostos (quando sabemos que o fardo pesa muito menos sobre os mais ricos), que seria suficiente simplificar o sistema, como se juntar impostos fosse trazer mais justiça, enfim, vários discursos que não passam de mitos.
Outro desafio importante é enfrentar a elisão e a evasão fiscal rumo aos paraísos fiscais, que bem poderíamos chamar esconderijos fisco-criminais, que fazem com que os países, neste mundo globalizado e de grande mobilidade dos capitais financeiros, percam recursos de forma expressiva. O Brasil não é uma exceção. Segundo dados da Tax Justice Network, no estudo Status of Tax Justice, publicado em 20/11/2020, o Brasil perde mais de US$ 14 milhões por ano devido a um planejamento tributário abusivo.
Precisamos também de uma administração tributária que possa dar corpo às alterações na legislação tributária que visem a maior tributação do patrimônio e da renda e que seja capaz de enfrentar e coibir estes planejamentos tributários abusivos que deslocam a base de incidência tributária para outros países, ocasionando perda de recursos. Para isso, a administração tributária deve ser fortalecida e dotada de instrumentos capazes de dar conta das alterações no mundo dos negócios. É tarefa que apresenta complexidade, a tributação justa, mas certamente será menos árdua em função dos recursos tecnológicos já disponíveis ou que venham a ser disponibilizados.
Há um desequilíbrio muito grande entre as pessoas com rendas mais altas e com as mais baixas e justamente as pessoas com maior poder econômico são as que interferem diretamente na elaboração das leis, na condução da política econômica e monetária, enfim, nos rumos do país. Outro grande desafio, portanto, é estimular o exercício de cidadania, compreendendo que há forças hegemônicas (felizmente não representa a totalidade) que buscam manter o caráter regressivo da tributação, um dos fatores preponderantes na inaceitável distribuição de renda em nosso país, injustiça fiscal e social.
IHU On-Line – Como e onde devem ser empregados os recursos gerados por essa tributação dos super-ricos?
Maria Regina Paiva Duarte – Essa pergunta poderia ser respondida por vários especialistas na área de políticas públicas, desenvolvimento econômico, planejamento estratégico, pois são tantas as necessidades do país que fica difícil escolher como e onde devem ser empregados os recursos arrecadados na tributação dos super-ricos. Seria preciso, antes de mais nada, fazer um planejamento estratégico, planos de médio e longo prazo para poder melhor definir as áreas onde seriam aplicados esses recursos.
Não só o Brasil, mas a região latino-americana como um todo, não consegue ter visão de longo prazo. E não exatamente por causa de problemas locais tão somente, mas por todo o processo constitutivo da região, marcada por desestabilização e golpes, que surgem a cada tentativa dos países de assumirem um papel soberano, interna e externamente.
Em termos genéricos, podemos pensar que os recursos da tributação dos super-ricos devem ser usados para ampliar a participação dos pobres no orçamento, por meio da universalização verdadeira de políticas públicas de Proteção Social, considerada num sentido amplo, não apenas de saúde, assistência e previdência pública, como também de geração e preservação de empregos, de aumento do salário mínimo, de educação, moradia, transporte público etc. Ou seja, recuperar a capacidade de investimento do Estado, que vem sendo diminuída ao longo dos últimos anos, combinando política monetária e fiscal.
Agora, pensando especificamente no foco principal da Campanha Tributar os Super-Ricos, que é prover recursos de forma emergencial para combater a crise sanitária, salvar vidas, garantir emprego e renda e recuperar a atividade econômica, podemos dizer que os recursos devem ser usados para adquirir vacinas e financiar o Auxílio Emergencial, porque não haverá recuperação econômica enquanto não passar a crise sanitária.
E mesmo depois, ainda haverá um período para que possamos nos restabelecer e voltar a crescer. Por isso, é preciso investir e gastar na saúde, assim como precisamos ajudar as pequenas e médias empresas para que elas mantenham seus negócios funcionando e garantam a manutenção dos empregos. Afinal, se não houver renda, não haverá demanda e, portanto, não haverá movimentação efetiva na economia.
IHU On-Line – A situação da pandemia escancarou a necessidade de, no Brasil das desigualdades, se discutir a implementação de uma renda básica. Para a senhora, essa pode ser uma importante via para redução das desigualdades? Por quê?
Maria Regina Paiva Duarte – Sem dúvida a renda básica é importante para reduzir desigualdades. Vimos o caso do Auxílio Emergencial que, embora de caráter transitório, foi extremamente importante para amenizar a situação das pessoas mais vulneráveis na pandemia e, inclusive, frear a queda no PIB dos últimos meses. A renda básica emergencial é, portanto, positiva para as pessoas e para a economia.
Vimos que, na pandemia, a renda básica emergencial foi mandatória, pois ficar em casa não é possível para todos. É para quem pode. A sobrevivência exige um mínimo de renda, especialmente agora, com toda a emergência que decorreu da crise.
Segundo estudo publicado pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais – Cedeplar-UFMG, na discussão sobre a possibilidade de prorrogar o pagamento do Auxílio Emergencial até final do ano de 2020, se a renda básica emergencial fosse estendida para esse período, além de atenuar os impactos nas famílias mais vulneráveis, geraria impactos positivos na economia e evitaria o aprofundamento da recessão e da depressão econômica.
Interessante notar que mais de 38 milhões de pessoas, que não estavam registradas nos cadastros, puderam receber o Auxílio Emergencial e isso é significativo, pessoas que estavam em situação de emergência também, mas praticamente invisíveis às políticas públicas.
Lamentavelmente, passado um ano da pandemia, com as evidências de que o auxílio foi extremamente importante, a resistência ao seu pagamento ainda é forte. Contra a vontade do governo, o valor de R$ 600,00 para o Auxílio Emergencial foi aprovado no Congresso, mas foi interrompido no final do ano de 2020 e agora vai retornar com valor bastante diminuído e atingindo um número muito menor de pessoas.
IHU On-Line – A tributação de super-ricos poderia ser integralmente convertida no financiamento de uma renda básica? Por quê?
Maria Regina Paiva Duarte – Apesar das reações contrárias que afirmam que tributar os muito ricos não compensa, que os valores arrecadados pelo imposto sobre grandes fortunas serão muito abaixo do desejado, ou que é difícil e complicado de cobrar, que estaremos tributando duplamente o patrimônio, uma vez que a renda já foi tributada, que o dinheiro vai embora do Brasil e outras tantas falácias, é possível, sim, tributar os que estão no andar de cima.
Segundo a Revista Forbes, em 2012 tínhamos 74 bilionários com patrimônio declarado de R$ 346 bilhões; em 2019, eram 206 que detinham mais de R$ 1,2 trilhão. Um pouco mais de duas centenas de pessoas têm o que muitos milhares de brasileiros não conseguiriam ter nem vivendo muitas vidas. Se estes bilionários forem tributados conforme sua capacidade de contribuir, certamente haverá deslocamento substancial de recursos para políticas públicas de redução de desigualdade. E certamente eles não carregarão suas mansões, iates e fazendas nas costas para escapar da tributação.
Emissão de moeda e endividamento público
A emissão de moeda e endividamento público, sozinhos, não resolvem o problema da concentração de renda e desigualdade, pois é necessário que venham acompanhados de políticas fiscais que garantam a distribuição da riqueza, e a maneira mais indicada de fazer isso, tanto do ponto de vista moral e da justiça, quanto do ponto de vista econômico, é tributar mais a renda, patrimônio, heranças e dividendos, que apontem para uma reforma tributária que seja progressiva e respeite o princípio da capacidade contributiva, que está na Constituição Federal de 1988.
Fiz este preâmbulo para afirmar que é possível obter recursos tributando os super-ricos e também para caracterizar que se de um lado temos os super-ricos, de outro temos os que necessitam de renda e auxílio para se manterem. Acredito que financiar a renda básica é uma das medidas que devem ser contempladas com a tributação dos super-ricos.
IHU On-Line – Nos últimos anos, o Brasil também tem sofrido um desmonte de programas sociais que, na pandemia, passaram a ser vistos como urgentes. De que forma podemos compreender o subfinanciamento desses programas que nos levou a esse desmonte?
Maria Regina Paiva Duarte – Após a saída da presidenta Dilma do governo, em 2016, o caminho para a austeridade e a diminuição da capacidade do Estado de investir na sua população ficou mais fácil de ser percorrido. Embora a crise econômica e a recessão já estivessem instauradas desde 2015, a partir desta troca de comando no governo federal, as políticas neoliberais encontraram espaço e oportunidade para serem aplicadas de forma mais acentuada.
Subfinanciamento dos programas sociais
Então, para compreendermos o subfinanciamento dos programas sociais, é preciso analisar o que ocorreu (e vem ocorrendo) nos últimos cinco anos.
Tivemos o Teto de Gastos (Emenda Complementar 95/2016), que estabeleceu o limite, pelos 20 anos seguintes, para gastos com saúde e educação aos índices de inflação. Todos esses recursos arrecadados com a implementação das medidas propostas na Campanha Tributar os Super-Ricos, precisamos ressaltar, não poderiam ser aplicados se o teto continuar vigente.
Existem medidas paliativas para suplantar o limite imposto pelo Teto de Gastos, mas não são permanentes. Houve uma tentativa de reforma da previdência, ainda no governo Temer, aprovada no governo Bolsonaro. A reforma trabalhista foi mais um golpe sofrido pela população, que vê seus direitos sendo retirados, sendo que já tiveram sua renda diminuída, empregos precarizados e mal pagos pela própria crise econômica.
Mas o governo, em vez de fortalecer os programas sociais, quis implementar a estratégia de desmontá-los. Mesmo antes da pandemia, o governo já anunciava a transformação do Bolsa Família em Renda Brasil, que depois mudou o nome para Renda Cidadã.
Uma das propostas para financiar a Renda Cidadã era unificar programas sociais, entre eles o abono salarial e o salário-família, proposta do ministro Paulo Guedes, rechaçada pelo próprio presidente. Outra foi o anúncio do congelamento de aposentadorias por dois anos, desvinculando-as inclusive do salário mínimo, que também teve curta duração. E outra, a proposta de utilizar parte do Fundeb, a principal fonte de financiamento da educação pública, para financiamento da Renda Cidadã.
A razão para ter trazido esses exemplos é que neles está a lógica do desmonte dos programas sociais. Por um lado, retiram-se recursos do orçamento, como foi o caso da saúde em 2020. De outro, a forma proposta para financiar programas sociais e manter a população em condições de vida nunca leva em conta a tributação dos setores mais ricos, muito menos dos super-ricos.
IHU On-Line – Muitas categorias, quando falam em reforma tributária, defendem a redução de impostos para que a iniciativa privada assuma algumas obrigações do Estado. Quais os riscos de lógicas como essas?
Maria Regina Paiva Duarte – Se observarmos a lógica das propostas de reforma tributária originadas no Congresso Nacional, incluindo a apresentada pelo governo federal em julho, podemos perceber a representação dos interesses das grandes corporações, dos latifundiários, megaempreendedores e instituições do mercado financeiro. São as reformas das elites.
A própria PEC 45/2019 tem sua origem no Centro de Cidadania Fiscal – CCIF patrocinada por grandes empresas como Ambev, Votorantim, Natura, Telefônica, Braskem e Itaú/Unibanco. Todas grandes empresas com elevadas intenções de ajudar o governo a melhorar a “confusão tributária, o emaranhado de impostos” e, por suposto, melhorar seus ambientes de negócios.
A intenção revelada nestas reformas é que efetivamente sejam passadas para a iniciativa privada parte das obrigações estatais, pois o Estado, na opinião das grandes empresas, é ineficiente, gastador e deveria se concentrar apenas em alguns setores específicos. Assim, as empresas privadas podem então oferecer o serviço a quem possa pagar por ele.
Voucherização da economia
É preciso adicionar mais um elemento: o risco do que chamamos de “voucherização” da economia. Por um lado, o serviço não é mais oferecido pelo ente público; por outro lado, o governo entrega na mão do cidadão um determinado valor, uma renda, para que ele compre o serviço no mercado. Uma política de renda básica que não seria a que já citei aqui, necessária e fundamental, mas uma política focalizada na pobreza aos moldes, talvez, do que se pensava três ou mais séculos atrás. O que necessitamos é uma política universalizada, acessível a todos, especialmente aos que mais necessitam de políticas públicas.
Mas a pandemia veio para mostrar, se ainda restavam dúvidas, o que significa o Serviço Único de Saúde – SUS, que é público e universal. Sem ele, a desastrosa gestão da pandemia pelo governo federal seria ainda pior. Várias vezes o fim da pandemia foi anunciado, a retomada da economia logo ali, e isso não ocorreu.
Ainda estamos em momento de extrema gravidade. O que vimos acontecer ao longo de 2020 e o que aconteceu em Manaus no início de 2021, poderia ter sido evitado ou minorado. Não foi, mas se não tivéssemos o SUS, teria sido ainda pior.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Maria Regina Paiva Duarte – É preciso ter claro que não mudaremos a situação vexatória do Brasil nos níveis de desigualdade e concentração de renda se a sociedade não se mobilizar para aprovar medidas mais justas do ponto de vista tributário e fiscal. Embora tenha suas especificidades técnicas e graus de dificuldade, a escolha do sistema tributário de um país é uma escolha política. E a sociedade, quando da CF de 1988, escolheu um Estado de bem-estar social e ele precisa ser financiado para ser materializado. E esse financiamento decorre, principalmente, da tributação.
Somente uma forte mobilização popular, que agregue os diversos segmentos sociais, especialmente dos trabalhadores, pode alterar a correlação de forças no Congresso Nacional e nos governos para aprovar projetos de lei como os da Campanha Tributar os Super-Ricos.
Acredito que podemos sensibilizar a sociedade mostrando que de fato, no Brasil, os super-ricos pagam muito pouco imposto. E aqui falo de pessoas com renda e patrimônio expressivos e que, historicamente foram subtributadas e pouco contribuíram para o desenvolvimento da nação. Gosto muito da expressão utilizada pela antropóloga argentina Rita Segato para caracterizar a situação de desigualdade atual. Para ela, desigualdade é uma palavra que já é insuficiente e por isso, para expressar a tremenda concentração de renda e riqueza em mãos de tão poucas pessoas, nos diz que estamos vivendo a era da “dueñidade”. Pois este é um mundo de donos.
Se perguntarmos, como fez a Oxfam Brasil em pesquisa recente, se os mais ricos deveriam pagar mais impostos, tenho certeza de que a maioria responderia que sim. Foi o caso desta pesquisa, mais de 70% respondeu que sim. Agora, se considerarmos o cenário da pandemia, em que 42 bilionários brasileiros aumentaram tremendamente suas fortunas enquanto milhares perderam emprego e renda e pequenos e médios negócios fecharam, tenho convicção de que este percentual aumentaria, pois está tão evidente que a tributação é injusta que não há outra saída a não ser tributar os super-ricos.
Notas:
[1] INTERNATIONAL MONETARY FUND. Causes and Consequences of Income Inequality: A Global Perspective. Strategy, Policy, and Review Departament, jun 2015. (Nota da entrevistada) [2] INTERNATIONAL MONETARY FUND. Fiscal Monitor. IMF Fiscal Monitor: Policies for the Recovery. (Nota da entrevistada) [3] Escrevi um artigo sobre isso. (Nota da entrevistada)Fonte: IJF, com IHU On-Line
Texto: João Vitor Santos
Data original da publicação: 16/03/2021