Apesar de a área de Relações Internacionais ser “refratária” ao marxismo para compreender as interações entre os Estados no sistema internacional, ele “revela-se a ciência apta a decifrar os enigmas esfíngicos das relações internacionais. Ele é a ciência internacionalista por essência, aquela capaz de captar a plenitude do capitalismo, modo de produção que somente se completa em âmbito internacional”, diz Luiz Felipe Osório, autor de Imperialismo, Estado e Relações Internacionais (Campinas: Ideias & Letras, 2018), à IHU On-Line. Segundo ele, “Marx lega a lição de que entender a sociedade e a sociabilidade capitalista é alargar a lente para o mercado mundial, o que pode ser cunhado como relações internacionais em estrito senso”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o professor de Direito e Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro comenta alguns dos aspectos de sua obra e chama a atenção “para os debates derivacionistas do Estado e seus desdobramentos, iniciados na década de 1970 e alicerçados em uma nova (ou na radical) leitura de Marx (proposta a partir d’O Capital) para se chegar à compreensão da teoria materialista do imperialismo”. Nessa perspectiva, explica, é importante compreender o momento histórico pós-fordista, que se caracteriza por ser uma fase diferente das anteriores no sentido das tarefas políticas. “Se no debate pioneiro as esquerdas emergiam enquanto classe trabalhadora e, a partir do reconhecimento dessa condição, como forças revolucionárias, no debate fordista as esquerdas celebravam a vitória e a consequente chegada ao poder político, quer pela via revolucionária, quer por conciliações e eleições. No debate pós-fordista, as esquerdas amargam a derrota da Guerra Fria e a decorrente dissolução do bloco socialista, bem como a ofensiva neoliberal, demolidora do modelo de bem-estar social”, compara.
Nesse novo contexto pós-fordista, frisa, o regime de acumulação deixa de ser interno para ser internacional, e “o que se verifica é a intensificação da tendência à internacionalização das relações de produção, sendo carreada pelos Estados, e concomitantemente tragando-os para o desconhecido”. Nesse cenário, “não há que se falar em quais Estados expressam o imperialismo contemporaneamente, uma vez que todos os Estados que compõem o sistema capitalista estão imersos na mesma dinâmica do imperialismo”, conclui.
Luiz Felipe Osório é graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, mestre em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e doutor em Economia Política Internacional pela UFRJ. Atualmente leciona Direito e Relações Internacionais na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ, é pesquisador do GT CLACSO Pensamento Jurídico Crítico e pesquisador vinculado ao Laboratório de Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro – LADIH/UFRJ e ao Grupo de Pesquisa Teoria Crítica dos Direitos Humanos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que significa falar em imperialismo nos dias de hoje? Quais são os Estados que expressam o imperialismo contemporaneamente?
Luiz Felipe Osório – Falar de imperialismo hoje é falar de capitalismo, marxismo (Estado) e Relações Internacionais. O que eu faço questão de enfatizar no livro é que o imperialismo é um fenômeno que ganha especificidade teórica e histórica com o advento e, principalmente, com a expansão do modo de produção capitalista por todos os quadrantes do globo. Com o passar do tempo, ou seja, do quartel final do século XIX até nossos dias, seu rosto ganha facetas, expressões distintas, a depender do modo de desenvolvimento do capitalismo. Logo, o imperialismo é constituinte do sistema de Estados (e ao mesmo tempo por eles moldado, em meio à política dos Estados e dos capitais). Estrutura-se em meio à dinâmica de acumulação, portadora de crises, e da organização política internacional em uma multiplicidade de Estados, mantendo-se e remodelando-se ao sabor das transformações na reprodução capitalista, compreendendo um processo complexo e contraditório de valorização de capital e de luta de classes, que não pode ser entendido sem as suas características relações de forças político-sociais, que se dão particularizadas em fronteiras nacionais, como também, e principalmente, no espaço mundial.
Desse modo, cabe enfatizar que o imperialismo não se apresenta como um mero desdobramento econômico ou político, mas é a materialização da forma política do capitalismo, como desdobramento das relações sociais concretas no terreno mundial do capital. Logo, não há que se falar em quais Estados expressam o imperialismo contemporaneamente, uma vez que todos os Estados que compõem o sistema capitalista estão imersos na mesma dinâmica do imperialismo. O que os difere é a intensidade e a margem de liberdade que têm para impor seus interesses (ou das frações de seus capitais). Os Estados centrais destacam-se tanto na violência quanto na economia política por deterem a dianteira do processo histórico do desenvolvimento econômico, destacando-se nas práticas que conformam o imperialismo.
IHU On-Line – Como o imperialismo se desenvolveu ao longo da história? Ele é fruto do capitalismo ou é possível identificá-lo antes da sociedade capitalista?
Luiz Felipe Osório – Historicamente, verificou-se a existência de formas em torno da exploração, violência e dependência, que adquiriram uma face determinada com o capitalismo, a partir da reprodução das relações de produção pelos quadrantes do globo. O conceito de imperialismo carrega consigo há séculos conteúdos e estereótipos que podem retroceder ao patamar da imprecisão teórica. Desde o resgate dos impérios da antiguidade, como o romano, passando pelos grandes poderes feudais, atravessando as monarquias absolutas modernas, até chegar à era dos impérios contemporânea, todo esse arco histórico foi e pode ser pintado aleatoriamente sob a tinta do imperialismo. Ainda que se verifique a existência de violência, opressões e explorações como condicionantes em todos os momentos, o atrelamento ao aspecto quantitativo enclausura o cientista à superfície da investigação fenomênica, perdendo a precisão da lente analítica em um espaço difuso e distinto em suas bases.
O passo científico decisivo para desvendar o real caráter do imperialismo toma a direção da compreensão dos mecanismos e da estrutura que lhe conferem especificidade, ou seja, o seu aspecto qualitativo, que permite identificar o imperialismo, a partir de certo ponto histórico, com conteúdo e forma particulares, que contrastam irremediavelmente em relação a experiências anteriores. Nesse sentido, é fulcral traçar nortes que orientem a narrativa científica.
É a partir da emergência do modo de produção capitalista, inaugurando a contemporaneidade histórica, que determinadas relações sociais e econômicas insculpiram as bases estruturais específicas do imperialismo, delineando as relações internacionais. Em modos de produção pretéritos, o que se tenta associar como imperialismo é impreciso, acontecendo em dinâmicas completamente distintas, haja vista as engrenagens centrais em nada se assemelharem. Em outras palavras, o imperialismo alicerça-se e desdobra-se em um contexto político-econômico muito específico, aquele moldado pelas relações sociais concretas dadas no terreno do capitalismo. No cerne desse construto está a forma mercantil, da qual derivam os mecanismos de operacionalização dessa sociabilidade, como a forma política estatal (na qual se insere o Estado burguês, o Estado-nação ou o Estado nacional), o qual é o ator que caracteriza nominalmente a interação dos agentes. Em outros tempos, a mercadoria até se fazia presente, mas não ocupava o núcleo das sociabilidades pretéritas. Assim, o imperialismo finca seus sustentáculos na manifestação mais plena do capitalismo, as relações internacionais, no sistema capitalista de Estados.
IHU On-Line – Entre as análises sobre a ascensão chinesa, algumas afirmam que a China representa um novo imperialismo nos nossos dias. Como você avalia esse tipo de tese? Ainda nesse sentido, a ascensão da China pode ser explicada numa perspectiva marxista? Como?
Luiz Felipe Osório – Sim, claro, eu diria até que a ferramenta teórica marxista é aquela que mais se encaixa na engrenagem da explicação sobre a China. Como todo Estado socialista do século XX, conforme algumas correntes citadas no livro, a China foi, até a mudança iniciada na década de 1970, uma economia de Estado dentro e adaptada ao capitalismo fordista, então vigente, com particularidades e divergências importantes quanto ao bloco socialista. Aliás, a experiência chinesa é brilhantemente estudada pelo Prof. Márcio Bilharinho Naves. O país, diferentemente da União Soviética, por exemplo, fez a leitura das transformações mundiais que pipocavam pelas décadas de 1970 e 1980, e conseguiu implementar uma correção de rumos, remodelando-se, escapando da crise do fordismo e colocando-se em uma posição de maior resistência à sequência de crises, própria do período seguinte, o do capitalismo pós-fordista.
Em suma, manteve-se uma economia dirigida pelo Estado, o que lhe garante menor vulnerabilidade ante as oscilações do mercado mundial, e soube fazer o deslocamento do regime de acumulação do eixo interno para o internacional, movimento chamado por muitos de globalização, trazendo todo um modo de regulação correspondente. E como todo país capitalista, ainda que regido por uma economia de Estado e politicamente socialista, a China imiscui-se nas estruturas do sistema capitalista de Estados e potencializa sua projeção externa. Ao, simplesmente, jogar o jogo posto, a China já entra na dinâmica do imperialismo, e dentro das diversas posições que poderia ocupar, de centro ou de periferia, por exemplo, ela está próxima do topo. O assunto é candente e complexo, despertando o interesse de grandes pesquisadores atuais no Brasil, os quais, tangenciando mais ou menos a perspectiva marxista, franqueiam ótimas análises, como Javier Vadell, Valéria Ribeiro, Elias Jabbour e Isabela Nogueira, entre outros e outras, naturalmente.
IHU On-Line – Quais são os grandes momentos históricos que fornecem as bases para compreender as leituras marxistas sobre o imperialismo? Pode nos dar alguns exemplos de leituras marxistas sobre o imperialismo?
Luiz Felipe Osório – O livro pauta-se pela sistematização em três grandes ciclos ou debates, de acordo com a trajetória capitalista, que eu chamo de pioneiro (de 1870 a 1945 e predominantemente economicista), fordista (de 1945 a 1970 e predominantemente economicista) e pós-fordista (da década de 1970 em diante, predominantemente politicista, com os devidos desdobramentos), conforme as vertentes teóricas adotadas.
Dentre os três, o primeiro é o mais marcante em função do pioneirismo em inaugurar horizontes para a discussão do Estado e das Relações Internacionais na tradição marxista. O segundo é mais um interregno de transição, no qual ainda não se tem uma ruptura, mas já se está no limiar dela. O terceiro é o atual e o mais alargado, envolvendo diversas concepções teóricas de Estado, daí a necessidade de sua sistematização e da ênfase dada no livro. Os autores que se inscrevem em cada um dos debates discutiram teoricamente em algum momento de suas obras Estado e imperialismo em meio ao desenvolvimento capitalista.
IHU On-Line – No seu livro você menciona três grandes debates sobre as contribuições marxistas para as Relações Internacionais. O que caracteriza cada um desses debates e os diferencia?
Luiz Felipe Osório – A costura que alinhará as teorias marxistas sobre Estado, a historicidade e mudanças do capitalismo e as consequentes dinâmicas sobre o conceito de imperialismo nas Relações Internacionais molda o seguinte formato. O livro estrutura-se pelo entrelaçamento de duas balizas de sistematização do pensamento sobre imperialismo, que não são estritamente coincidentes:
a) a cronológica que abarca a periodização histórica do capitalismo em três fases, desde sua gênese na transição entre os séculos XIX e XX até sua forma hodierna no século XXI, tendo em vista a transformação do capitalismo em meio à concretude das relações internacionais, indo de 1870 a 1945, de 1945 a 1970 e de 1970 até os dias atuais; e
b) a teórica que ordena as diversas perspectivas sobre imperialismo, e consequentemente sobre Estado no capitalismo, pela ênfase que o conceito confere aos aspectos econômicos (aspectos econômicos estruturais, lei do valor, seus movimentos e suas manifestações), aos políticos (questões superestruturais, luta e correlação de classes e de grupos) e à inter-relação destes dentro do espectro marxista.
O que diferencia o primeiro ciclo do segundo é o momento histórico do pós-guerra que consolida o capitalismo fordista, no centro, e expande as relações de produção capitalistas também para a periferia, para as franjas do globo, distante do epicentro europeu, e, no tocante à teoria marxista do Estado, rompe com o marxismo clássico e inaugura o marxismo ocidental. A mudança estagna as visões do imperialismo, que acabam eclipsadas, no centro do capitalismo, por um lado, e, por outro, fomenta o desenvolvimento de um pensamento autóctone e crítico na periferia sobre imperialismo.
A diferença do segundo para o terceiro momento envolve a crise e desconstrução do fordismo, no centro e na periferia, e o apogeu do pós-fordismo, bem como a emergência de uma leitura radical de Marx, cunhada como novo marxismo, que fornece ferramentas para a ruptura com o economismo e o surgimento de novos paradigmas no imperialismo, como o politicismo, o parcial politicismo e o que eu denomino de plena crítica, alinhada às interpretações radicais do pensamento marxiano.
IHU On-Line – Ainda sobre os três grandes debates acerca do marxismo, você menciona diferentes autores que marcaram esses momentos, entre eles, Rudolf Hilferding, Vladimir Lênin, Paul Sweezy, Ruy Mauro Marini, Michael Hardt, Antonio Negri, Alex Callinicos, Evgeni Pachukanis, Christel Neusüss, Claudia von Braunmühl, e China Miéville. Quais autores foram mais expressivos e relevantes para a abordagem marxista no campo das Relações Internacionais?
Luiz Felipe Osório – Hierarquizar teorias em grau de importância é uma tarefa ingrata. O que eu reforçaria aqui como fundamental para o campo das Relações Internacionais poderia ser o início e o, até agora, último marco da trajetória narrada no livro. Nesse sentido, destaco o pioneirismo e a genialidade de Lênin (e seu conceito de imperialismo, especificamente no livro Imperialismo, fase superior do capitalismo), responsável por atrelar definitivamente o imperialismo à economia política (exportação de capitais, monopólios e financeirização), acompanhada da violência das guerras e das divisões territoriais à força. Há toda uma literatura que se evoca ser a dominante no estudo das Relações Internacionais que alicerça o início da verve acadêmica e científica da matéria nos estertores da Primeira Guerra Mundial. Na emergência de um novo cenário, de decadência britânica e ascendência estadunidense em um condomínio fraternal de poder que se impunha ao, então, ameaçado mundo capitalista, pós-1917. Como se, por exemplo, as discussões anteriores, notadamente as da Segunda Internacional (1889), os debates pioneiros e a polêmica entre Lênin e Kautsky sequer tivessem existido. Em função disso, vem a relevância do internacionalista voltar aos debates sobre os limites da expansão das relações capitalista e da questão nacional, dados daquele momento histórico em diante.
Além disso, jogo luzes, por fim, na concepção sobre imperialismo da teoria materialista do Estado, em torno de Joachim Hirsch, autor contemporâneo. Dentro das concepções derivacionistas do Estado (inserida na nova leitura de Marx), Hirsch consegue realizar uma interessante síntese teórica. O autor confere uma abordagem ampla que mescla a economia política marxiana e a ênfase à luta de classes para a elaboração de um viés histórico-materialista para a teoria do Estado e da forma política, diferenciando-se dentro do amplo espectro do debate derivacionista. Com a ênfase a esse autor, pontuo a relevância de trazer as Relações Internacionais para os debates sobre capitalismo, Estado e mercado mundial, iniciadas em Marx, e desenvolvidas por aqueles que partiram de suas premissas.
IHU On-Line – Por que as teorias marxistas stricto sensu não tiveram espaço nos debates teóricos das Relações Internacionais? A partir de quando tais teorias passaram a ser abordadas nos debates da área?
Luiz Felipe Osório – A área das Relações Internacionais é, por essência, refratária às teorias marxistas. Apesar de pontuais e significativas mudanças, o cenário ainda hoje continua semelhante. A realização do Colóquio Internacional Relações Internacionais e Marxismo, organizado pela UFRRJ e pela UFRJ, em 2016, e seu decorrente sucesso, foi uma sinalização interessante de que o panorama pode vir a ser alterado. A própria narrativa das Relações Internacionais enquanto ciência, além de partir de um ponto equivocado, ou seja, do fim da Primeira Guerra, e não dos debates da Segunda Internacional, e de sua decorrência, o impasse entre Lênin e Kautsky, é enviesada pela instrumentalidade das relações do poder hegemônico. Nesse exercício, cabe ao estudante e pesquisador atentar para as falácias postas pelas abstrações que cooptam essa seara científica para uma verve orgulhosamente e manifestamente ostentada como conservadora.
É interessante ressaltar como a narrativa científica das Relações Internacionais trata suas promíscuas relações com os aparatos governamentais, gabando-se de ser uma ciência que se limita a repetir e, eventualmente, a sofisticar os discursos e posições oficiais dos Estados nacionais, quando, em verdade, ratificam estratégias de dominação, universalizando conceitos em abstrações que travestem interesses de classes sociais singulares. A partir da expansão do capitalismo pelos quadrantes do globo, a investigação científica inaugurou novos patamares, mas manteve o caráter enviesado e a aridez teórica que caracterizam o monopólio anglo-saxão antimarxista sobre sua narrativa.
O primeiro e grande debate entre realismo e liberalismo gira em torno da mesma matriz, a da racionalidade, a qual oscila entre a racionalidade (ou irracionalidade) do mercado (liberalismo) ou do Estado (realismo), alimentando um falso debate (ou debate de superfície), assim como acontece com os outros ditos grandes debates, os quais são, em última instância, desdobramentos do primeiro. Por exclusão o que não se encaixa nesse eixo é colocado no balaio das teorias críticas. A imprecisão e a incorreção desse agrupamento dificultam ainda mais o estudo alternativo. Para que a crítica não fique comprometida é fundamental extrapolar o monopólio anglo-saxão antimarxista, sem o qual não se consegue enxergar além da superfície. O pensamento único e tecnicista busca descolar-se das críticas ao apresentar-se como puro, aparentando rigor científico. As Relações Internacionais padecem do mesmo mal da especialização que contamina as ciências sociais como um todo. A falta de uma abordagem ampla que enfoque o objeto de estudo, mas a ele não se circunscreva, agregando outras áreas, é a regra e não a exceção. A inter ou multidisciplinaridade das Relações Internacionais não é a sua mácula, como pensam os puristas, ao contrário, é a sua imanência, que não se coaduna ao dogmatismo da departamentalização e consequente segregação das áreas do conhecimento.
IHU On-Line – Por que o marxismo tem estado menos presente no debate das Relações Internacionais em comparação a outras teorias como o realismo, o liberalismo e o construtivismo? Quais são os limites e, de outro lado, vantagens do marxismo em relação às outras teorias?
Luiz Felipe Osório – É sempre importante ressaltar que o marxismo não é a teoria dominante da esquerda. Dentro do que se entende por esquerda no campo político, há a fração que compartilha do marxismo. E dentro desta há uma miríade de interpretações. A polêmica é tão grande a ponto de o próprio Marx ter ironicamente afirmado que não era um marxista ou de se diferenciar entre marxistas, marxianos e marxólogos, dentre outras denominações. Sem entrar em maiores precisões, o que eu gostaria de frisar é que o espectro teórico do marxismo é amplo e plural, abarcando interpretações variadas, algumas das quais chegam a se colocar em contraposição. Logo, se poderia tranquilamente falar em os marxismos. Em outras palavras, há um vasto horizonte legado pelo pensador que pode ser explorado, o que, de pronto, já denota uma brutal diferença de densidade quanto às teorias citadas na pergunta.
O marxismo revela-se a ciência apta a decifrar os enigmas esfíngicos das relações internacionais. Ele é a ciência internacionalista por essência, aquela capaz de captar a plenitude do capitalismo, modo de produção que somente se completa em âmbito internacional. Digo isso em relação a liberalismo, realismo e construtivismo, como citado por você, não apenas pela imanente tendência à expansão do capital detectada no início dos estudos por Marx, ainda que ele tenha feito referência direta ao termo imperialismo e nem tenha realizado um estudo sistemático sobre as relações internacionais, mas, principalmente, como ele desfaz com um sopro o castelo de areia que sustenta as correntes teóricas mais populares no campo das Relações Internacionais, quando esclarece a dualidade entre despotismo e anarquia.
Marx, n’O Capital, ao tratar das relações de produção, enfatizava a dinâmica entre anarquia e despotismo que cercava os capitais, que dentro de si são arbitrários, mas entre si são rivais em franca disputa descoordenada e sem limites espaciais. Nesse sentido, o capital somente existe em multiplicidade, coletividade; por meio da interação entre os muitos capitais as leis gerais do capitalismo se concretizam. Um único capital universal é uma contradição em termos. É característico do capitalismo, o qual se desenvolve pela competição, que é a fonte e a expressão da anarquia da produção. Logo, as relações sociais capitalistas tomam a forma dual de anarquia e despotismo. Entre muitos capitais há a anarquia; dentro de cada capital, o despotismo. Cada relação, anarquia e despotismo, é a condição uma da outra. Assim também o é entre os Estados, dentro das suas fronteiras perante seus nacionais (sujeitados a seu direito), soberano, despótico; e fora, na inter-relação com seus pares, reina a anarquia, a falta de um comando central e hierarquicamente superior.
A tendência à internacionalização e a relevância do âmbito do mercado mundial ficam patentes, quando trata do dinheiro mundial, que ao deixar a esfera interna de circulação, despe-se das vestes nacionais, adentrando o mercado mundial, ou quando argumenta basicamente que o mercado mundial constitui em geral a base e a atmosfera vital do modo de produção capitalista, sendo o pressuposto e o resultado da reprodução das relações sociais capitalistas. Essa percepção sugere que o mercado mundial não é produto da soma de vários Estados ou de suas economias nacionais, senão, é a condição por meio da qual existem as relações entre Estados. O mercado mundial apresenta-se como a forma universal de existência capitalista. Em outras palavras, é por meio do mercado mundial que a mercadoria deixa de ser nacional para ser irrepreensivelmente capitalista. Logo, o fenômeno imperialista demanda ser debatido, conforme as vertentes marxistas, em termos de desenvolvimento do capitalismo (e de suas molas mestras, cuja principal é o Estado). É fulcral ir além de análises que se limitam à identificação imediata entre imperialismo e exportações de capitais ou políticas invasivas e intervenções militares.
A prematura morte do intelectual alemão, em 1883, não impediu a fertilização de suas ideias em um século de ebulição e de consolidação da classe operária. À sua época fez brilhantes análises sobre o colonialismo britânico em locais distintos (como Irlanda e Índia), denunciando a essência dessa prática, as quais repercutiram mundialmente. Malgrado os relevantes escritos de Marx sobre política internacional, nos quais, em artigos de conjuntura, publicados em periódicos, impunha sua visão sobre as experiências ultramarinas britânicas, o pensador alemão não legou obras sistematizadas e acabadas sobre o tema. O que, para muitos, leva ao surgimento de interpretações divergentes sobre imperialismo, Estado e relações internacionais.
IHU On-Line – Quais são as contribuições de Marx para se entender o funcionamento do sistema e da sociedade capitalista?
Luiz Felipe Osório – A dinâmica internacionalizante do capital já era anunciada pelo alemão de Trier, na obra conjunta com Engels (Manifesto Comunista), em meio à realidade industrial daquele ínterim, chamando a atenção para o caráter cosmopolita imposto à produção e ao consumo em todos os países pela burguesia. Essa verve pode ser atestada desde os primeiros esboços de investigação sobre a sociabilidade capitalista. Ao longo de várias linhas de suas obras, bem como no plano de estudo que traçou, as reflexões marxianas sobre Estado e mercado mundial encontravam-se presentes. O plano originário estrutural para O Capital perfazia o caminho completo em 6 volumes, cujos três últimos seriam sobre o Estado, sobre o comércio internacional e sobre o mercado internacional e as crises. Quase dez anos depois, em 1865, Marx optou por um esquema mais enxuto e mais próximo daquele efetivamente publicado, dividido em quatro livros. O Livro I ficaria por conta do processo de produção do capital. O Livro II referente ao processo de circulação do capital. O Livro III tocante ao processo global da produção capitalista. Por fim, o Livro IV sobre história da teoria. Não obstante toda a polêmica acerca das edições e compilação post-mortem, o que se denota, por ora, é a preocupação nas reflexões marxianas com a expansão do capitalismo no espaço internacional. Desde os esboços da crítica à economia política já é possível descobrir elementos que conferem o substrato teórico necessário para as análises.
Em meio ao contexto histórico e estrutural da heterogeneidade entre países que predomina no sistema internacional, nada melhor do que evocar a concretude da totalidade social dos fenômenos sociais para apreender sua essência. Como a visão de Marx é focada na anatomia da sociedade capitalista, o marco temporal só pode ser a contemporaneidade, a consolidação e o espraiamento do modo de produção capitalista pelo mundo. É somente no capitalismo que o imperialismo adquire especificidade, tornando-se elemento estrutural, sem o qual não se consegue compreender plenamente a essência das relações internacionais. Ademais, as relações sociais concretas que florescem no terreno do modo de produção são pautadas pelo conflito, pelo antagonismo, pela dialética (na luta de classes sociais, entre capital e trabalho, no caso específico). Não há uniformidade, harmonia ou abstração para o plano das ideias, é na realidade insculpida pelo modo de produção que se desdobram práticas sociais que não obedecem a uma racionalidade dirigida ou a um comando, mas que intensificam ainda mais a desigualdade e o confronto.
Para além do método científico, Marx lega a lição de que entender a sociedade e a sociabilidade capitalista é alargar a lente para o mercado mundial, o que pode ser cunhado como relações internacionais em estrito senso. Discutir o capitalismo sem perpassar as relações internacionais seria como tocar o violino com apenas uma das mãos. Ou seja, a plenitude do objeto somente é captada quando se volta o foco para as relações travadas também no exterior entre classes, capitais e Estados.
IHU On-Line – Em que consiste sua proposta de uma reflexão marxista sobre o imperialismo na atualidade pós-fordista?
Luiz Felipe Osório – O momento histórico pós-fordista, para além das implicações teóricas que carrega, é uma fase diferente das anteriores no sentido das tarefas políticas. Se no debate pioneiro as esquerdas emergiam enquanto classe trabalhadora e, a partir do reconhecimento dessa condição, como forças revolucionárias, no debate fordista as esquerdas celebravam a vitória e a consequente chegada ao poder político, quer pela via revolucionária, quer por conciliações e eleições. No debate pós-fordista, as esquerdas amargam a derrota da Guerra Fria e a decorrente dissolução do bloco socialista, bem como a ofensiva neoliberal, demolidora do modelo de bem-estar social.
As teorias acompanham a radicalidade das lutas, como se verifica no livro. Ainda no momento atual, passadas as brumas da entropia, a acentuação das contradições, guerras e crises conclama as esquerdas para sua tarefa de transformação. O capitalismo pós-fordista direciona o foco necessariamente para o cenário internacional. As principais mudanças em relação ao fordismo estão no deslocamento do regime de acumulação que deixa de ser interno para ser internacional, bem como seu correspondente modo de regulação que se desprende dos laços estatais para as organizações e tratados internacionais. O que não significa um panorama totalmente novo, mas somente corrobora a leitura estrutural feita por Marx. Hoje, o que se verifica é a intensificação da tendência à internacionalização das relações de produção, sendo carreada pelos Estados, e concomitantemente tragando-os para o desconhecido.
Não fortuitamente, o ínterim que vivemos impulsiona a retomada da posição central do conceito de imperialismo. Se no ciclo pioneiro, ele foi nuclear, e no fordista ficou eclipsado ante outras questões, no pós-fordista ele resgata seu lugar de destaque, conjugando uma miríade de novas interpretações com atualizações das já existentes. Logo, é premente revisitar o conceito de imperialismo, retomando sua grandeza, o que não é uma tarefa simples, mas demanda a assunção de uma postura teórica e prática, que impulsione o leitor para a fuga do conforto das certezas.
O que proponho é chamar a atenção das esquerdas para os debates derivacionistas do Estado e seus desdobramentos, iniciados na década de 1970 e alicerçados em uma nova (ou na radical) leitura de Marx (proposta a partir d’O Capital) para se chegar à compreensão da teoria materialista do imperialismo.
O capitalismo constitui-se em sua forma mais desenvolvida no sistema internacional. O mercado mundial é o âmbito de manifestação mais alargada do capitalismo. É a arena que capta os fenômenos capitalistas por completo. É a base e a atmosfera de vida do modo de produção capitalista. Nessa seara, o Estado capitalista não surge isoladamente, mas em coletivo, enquanto um sistema de Estados, sendo essa multiplicidade um traço estrutural do capitalismo. O espaço geográfico do capital não é o das fronteiras estatais, senão o internacional.
Com efeito, a forma política capitalista toma molde de Estado-nação, em um ambiente de múltiplos atores congêneres. Logo, a discussão sobre a forma política capitalista toca o Estado enquanto aparato de dominação de classe e como aparato de competição entre segmentos ou frações das burguesias. O Estado no capitalismo é moldado na lógica do capital (em uma relação factual, contraditória), sendo despótico em relação a seus sujeitos (nacionais), e competitivo, e imerso na anarquia, em meio a seus rivais (congêneres estatais). Essa forma política concreta expressa que o Estado capitalista não está acima e fora das relações capitalistas de produção, mas é decorrência direta delas. O capitalismo é anarquicamente ingovernável (não há um centro nevrálgico de comando que guie seus rumos). Nenhum centro ou instituição irá controlá-lo. Suas generalidades são resultados das relações anárquicas de competição entre os capitais em disputa. Logo, a totalidade social capitalista do sistema internacional é lastreada na violência, no conflito, na concorrência e nos antagonismos. O imperialismo concretiza-se e imiscui-se nas relações internacionais pela hierarquização dos espaços políticos e econômicos pelo mundo.
Portanto, destaco no livro que o imperialismo somente pode ser debatido por um viés atento à estrutura e à dinâmica do capitalismo global e do sistema de Estados. Para que não se incorra no deslize de generalizar situações históricas específicas ou aspectos meramente empíricos, é preciso entender que as conjunturas mutáveis que influenciaram nas concepções expostas estão alicerçadas em bases estruturais. É com fulcro nessa concepção materialista que se pode derivar as categorias que são próprias e inerentes ao âmbito internacional, como seus dois elementos estruturais: a acumulação capitalista, portadora de crises e contradições; e a forma política específica do capitalismo, a organização política em uma coletividade de Estados, individualizados e particularizados, que se põem em relação de concorrência permanente.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Luiz Felipe Osório – O título Imperialismo, Estado e Relações Internacionais, apesar de parecer demasiadamente amplo, e de fato o é, ilustra três elementos essenciais para a plena compreensão da nossa realidade, o terreno das relações de produções que cotidianamente pisamos e por elas somos levados. A intenção é demonstrar que o campo científico das Relações Internacionais é muito mais amplo e impuro do que pensam seus artífices mais conhecidos. Muito antes de perder-se em generalizações e imprecisões do que é multi ou interdisciplinar, o estudo das relações internacionais é o que permite atingir a plenitude do capitalismo e poder olhar sem maiores turvações o seu real caráter.
A ideia do livro é muito mais fomentar e resgatar debates do que trazer soluções prontas e acabadas. A tentativa de sistematização e organização do amplo universo de interpretações do imperialismo pautou-se por critérios previamente escolhidos e apontando direções, não se arrogando, contudo, exaustiva. Antes, é um passo ante a longa caminhada que se deve trilhar. O estudo do conceito-chave em meio às diversas abordagens e às transformações históricas fornece alternativas teóricas para impulsionar o motor da história. A caminhada é rumo à superação da miséria cotidiana e ao estabelecimento de novos horizontes de mundo. Assim, vale a incursão na radicalidade e na genialidade das teorias do imperialismo, esquecidas e estigmatizadas da ascendência até o apogeu neoliberal, para que se possa desfazer o nó górdio do capitalismo e, assim, desmontar a peça estruturante de sua engrenagem.
Fonte: IHU On-Line
Texto: Patricia Fachin e Wagner Fernandes de Azevedo
Data original da publicação: 28/08/2018