O que um clássico marxista nos pode ensinar sobre a adoção da IA

Fotografia: Gerd Altmann/Pixabay

Há 50 anos, metalúrgico e economista mostrou como os patrões utilizam a tecnologia para retirar poder do trabalhador, mas que, ao assumir o controle do processo de trabalho, ele poderia se libertar.

Mark Allison

Fonte: Esquerda, com Jacobin
Tradução: Luís Branco
Data original da publicação: 23/07/2023

Ainda ontem, a inteligência artificial era matéria de ficção científica; agora, lança uma sombra portentosa sobre o futuro do trabalho. Dependendo do comentador em que se acredita, a IA promete aliviar-nos dos aspetos entediantes do nosso trabalho – ou ameaça privar-nos completamente dos nossos empregos. Procurando uma perspetiva histórica, peguei no relato clássico da evolução do processo de trabalho sob o capitalismo, Trabalho e capitalismo monopolista, de Harry Braverman, de 1974.

O livro de Braverman vai mais longe, e vê mais profundamente, do que o seu subtítulo, “A degradação do trabalho no século XX“, poderia fazer crer. À semelhança do seu modelo reconhecido, a descrição de Marx da transformação do processo de produção em O Capital, Braverman faz uma investigação meticulosa da inquietação de fazer e refazer a organização do trabalho no capitalismo. Mas nunca perde de vista o impacto destas sucessivas convulsões na classe trabalhadora.

Braverman rejeitou interpretações simplistas de Marx como um determinista tecnológico. Pelo contrário, salienta que uma nova invenção apresenta sempre um conjunto de possibilidades. A curto prazo, as relações sociais dominantes determinam quais dessas possibilidades são aproveitadas e quais são ativamente excluídas. As relações de produção capitalistas exibem um “impulso incessante para aumentar e aperfeiçoar a maquinaria, por um lado, e para diminuir o trabalhador, por outro”. Esta dinâmica reflete a tendência mais ampla do capitalismo para separar a conceção da execução – o trabalho do cérebro e o trabalho da mão. O resultado é um pequeno estrato de profissionais altamente qualificados (e bem pagos), por um lado, e uma massa crescente de trabalhadores proletarizados, condenados a tarefas monótonas, por outro.

Braverman trouxe uma perspetiva singular para a sua investigação. Foi aprendiz de caldeireiro e, posteriormente, encontrou emprego na indústria do aço, ganhando a vida como artesão durante catorze anos antes de fundar um jornal, o American Socialist. (Passou o resto da sua carreira no sector editorial, dirigindo a famosa editora socialista independente Monthly Review Press até à sua morte em 1976). Apesar do rápido declínio do ofício de caldeireiro, no qual se formou, Braverman não gostou da insinuação de que as suas críticas refletiam a nostalgia de um passado antiquado: “Pelo contrário, as minhas opiniões sobre o trabalho são regidas pela nostalgia de uma época que ainda não nasceu”. Os antecedentes de Braverman no comércio, bem como o seu envolvimento de décadas no ativismo socialista, tornaram-no especialmente apto para pegar no testemunho de Marx e estender a análise de O Capital do processo de trabalho ao século XX.

A figura central da narrativa de Trabalho e Capitalismo Monopolista é Frederick Winslow Taylor (1856-1915), o excêntrico fundador do movimento de gestão científica. Desde a sua infância, Taylor mostrou sinais de uma perturbação obsessivo-compulsiva extrema, contando os seus passos e procurando formas cada vez mais eficientes de realizar as tarefas mais banais. “Estas características adequavam-no perfeitamente ao seu papel de profeta da gestão capitalista moderna”, diz Braverman, “uma vez que o que é neurótico no indivíduo é, no capitalismo, normal e socialmente desejável para o funcionamento da sociedade”.

Enquanto os trabalhadores dirigissem o processo de trabalho, defendia Taylor, nunca realizariam “um dia de trabalho razoável” – que ele definia, naturalmente, como a quantidade máxima que poderiam realizar sem ferimentos. Por isso, os capitalistas não podiam contentar-se com a posse dos meios de produção e das mercadorias que o trabalho produzia: precisavam de controlar o próprio processo de trabalho. Taylor tende a ser recordado por ter conseguido uma maior produtividade dos trabalhadores ao prescrever todos os seus movimentos de acordo com os ditames da sua “ciência”. Mas, segundo Braverman, o seu feito mais importante foi compilar sistematicamente os conhecimentos artesanais que até então pertenciam ao trabalho e transferi-los para a gestão.

Em pouco tempo, os trabalhadores ficaram a executar um trabalho de pormenor simplificado, descontextualizado do processo de produção como um todo; entretanto, a gestão gozava do monopólio do conhecimento técnico que, historicamente, tinha sido património das profissões especializadas. A contínua separação entre a conceção e a execução do trabalho, que caracteriza a produção no capitalismo, atingiu um novo patamar. Este processo repetiu-se posteriormente na gestão, criando um punhado de executivos de gabinete e um exército de assistentes administrativos desqualificados e gestores intermédios.

Trabalho e Capital Monopolista conta uma história preocupante, mas nem por isso sem esperança. Braverman identificou sinais dos limites históricos do capitalismo no facto de as novas tecnologias reunirem e automatizarem frequentemente as etapas do processo de trabalho que a divisão do trabalho tinha fragmentado. Na sua última conferência, realizada na primavera de 1975, Braverman insistiu que “os trabalhadores podem agora tornar-se mestres da tecnologia do seu processo a nível de engenharia e podem repartir entre si, de forma equitativa, as várias tarefas relacionadas com esta forma de produção que se tornou tão fácil e automática”. Liberta do trabalho penoso das tarefas repetitivas graças à automatização, uma equipa de produtores associados pode recuperar a unidade do processo de produção de que outrora gozavam os artesãos num plano superior.

A IA oferece uma possibilidade semelhante de reunir, de forma automatizada, muitas das competências e corpos de conhecimento que a divisão capitalista do trabalho pulverizou na sua busca incessante de controlo e eficiência. Se as previsões de que a IA inaugurará uma era de lazer universal são extremamente otimistas, a perspetiva de que os trabalhadores socializados possam dirigir a totalidade do processo de produção com a sua ajuda não o parece tanto.

Mas teremos de lutar por isso. O capitalismo aproveita-se habitualmente dos avanços tecnológicos despedindo trabalhadores e exigindo maior produtividade aos poucos que não elimina. Braverman informa-nos que o verbo “gerir” “significava originalmente treinar um cavalo nos seus passos, levá-lo a fazer os exercícios de manège“. A gestão sempre encarou o processo de trabalho como um local de luta, e está determinada a manter as rédeas. Se queremos que a IA melhore e não substitua ou degrade ainda mais os nossos empregos, uma leitura de Braverman indica que temos de estar preparados para levar a batalha até ao próprio processo laboral.

Mark Allison é professor de inglês na Ohio Wesleyan University.

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