Há um movimento das agendas de pesquisas em direção às desigualdades sociais múltiplas, ainda que não abandonando a noção de classes sociais e considerando suas dinâmicas.
Cristiano Bodart
Fonte: Café com Sociologia
Data original da publicação: 12/01/2023
O conceito de desigualdades sociais múltiplas
As desigualdades sociais múltiplas são resultantes das variadas formas de critérios e clivagens (distinção entre dois grupos segundo certos critérios) que tornam os indivíduos desiguais uns dos outros em situações diversas. Trata-se das desigualdades sociais que se manifestam no interior de uma mesma classe social; desigualdades miúdas percebidas no cotidiano. Professores e carpinteiros, ainda que possam pertencer a mesma classe social, são entre si socialmente desiguais. Profissionais da mesma área são socialmente desiguais em se tratando de salários, condições de trabalho. Por exemplo. As desigualdades deixaram de ser evidenciadas/percebidas apenas nas oposições de classes sociais para ser sentidas em situações rotineiras em que o acesso à saúde, ao lazer, à segurança, etc. são diferenciados.
As desigualdades sociais se transformaram na contemporaneidade e passam a ser percebidas intra classes sociais, no cotidiano, de forma a gerar maior incômodo ou indignação se comparado com as grandes desigualdades sociais de classe. Não que as pessoas não se incomodem com a diferença entre os super ricos e os pobres, mas as diferenças que se apresentam no dia a dia acabam ganhando centralidade na vida dos indivíduos. Também não quer dizer que as desigualdades sociais de classe foram reduzidas e perderam relevância. Ao contrário, os super ricos se tornaram ainda mais ricos nas últimas décadas.
As formas das desigualdades sociais múltiplas
Essas desigualdades sociais em uma mesma classe social se manifestam a como resultado de diversas variáveis que afetam as condições sociais, tais como raça, gênero, sexualidade, estado civil, idade, escolaridade, diploma, local de residência, salário, status de emprego, condições de trabalho, origem étnica, deficiências físicas, etc. Somos, no cotidiano, afetados de variadas formas – o que geram desigualdades sociais variadas – e cada vez mais percebemos que somos desiguais “na qualidade de” assalariado mais ou menos bem pago, protegido ou precário, diplomado ou não, jovem ou idoso, mulher ou homem, etc. (DUBET, 2020). Há uma infinidade de critérios e clivagens, em função dos quais somos mais ou menos desiguais em relação aos outros e isso tem impacto direto nas condições sociais.
Muitas das desigualdades sociais são fronteiras, por vezes, intransponíveis. Acessar um espaço público específico pode ser problema a depender de sua orientação sexual, cor, gênero, idade ou outros marcadores sociais.
A raça e o local de residência, por exemplo, são recorrentemente critérios adotados pela polícia militar para definir formas de abordagens, como demonstrou pesquisa realizada em Campinas/SP por Silva (2022).
As desigualdades sociais se multiplicam na contemporaneidade por vários fatores, dentre eles a “desestandartização dos percursos”, como destacou Dubet (2020, p. 28):
O percurso típico – estudo, trabalho, casamento, trabalho, aposentadoria – é amplamente abalado pelo longo período de acesso a um emprego estável, pelas idas e vindas entre o emprego, o desemprego e os estudos, o matrimônio tardio, as separações, os novos casamentos e as famílias recompostas, aposentadorias e velhices longas. Ora, todos esses percursos biográficos são fatores de desigualdade consideráveis; basta ver a quantidade de famílias monoparentais entre os mais pobres.
Outro fator para a multiplicação das desigualdades é a ampliação do consumo. “O consumo multiplicou os públicos, sem que esses públicos recuperassem posições de classe” (DUBET, 2020, p. 31). Os grupos sociais se multiplicaram em função de seu lazer, gostos, estilos e acesso aos bens de consumo (duráveis ou não).
Os grupos sociais são tão variados que nenhum deles configura uma classe social – embora essas desigualdades afetam diretamente suas posições de classe. As desigualdades sociais múltiplas se originam de formas variadas em um mesmo indivíduo: uma jovem pode ser beneficiada pela pouca idade na inclusão em um clube esportivo, mas ser privada de uma vaga de emprego por ser considerada inexperiente. Por ser do sexo feminino pode obter um emprego no qual poderá estar bem vestida, mas pelo mesmo motivo ter um salário menor comparado aos trabalhadores masculinos que desempenham a mesma função.
As análises das desigualdades sociais múltiplas
Nesse contexto de desigualdade sociais múltiplas é possível os cientistas sociais avaliar as desigualdades entre indivíduos, e grupos de indivíduos, a partir de desigualdades de rendimento, de patrimônio, de prática de lazer, de acesso à educação, tempo dedicado à família, mobilidade geográfica, segurança, saúde, meio ambiente, felicidade, expectativa de vida, etc. Para essas avaliações será necessária uma abordagem interseccional como indicado por Hertzog e Mello (2020), pois, em muitos casos, os marcadores se cruzam e se somam a depender dos percursos, locais e tempo.
As desigualdades sociais múltiplas e a indignação
Se por um lado, as desigualdades são percebidas como resultados de uma sociedade livre e meritocrática, onde os indivíduos são responsáveis por suas condições sociais, por outro, as desigualdades geradas pelo capitalismo contemporâneo têm provocado indignação, ressentimentos, frustrações por serem cotidianamente percebidas.
Cada vez mais indivíduos, motivados por suas condições desiguais se organizam em frações (os coletivos são bons exemplos) visando questionar suas posições no contexto das desigualdades múltiplas. Tal movimento acaba por desmobilizar ações que visam mudar as estruturas sociais maiores, criadoras dessas desigualdades.
É necessário estar atentos para que movimentos de extrema-direita não venham a capitanear essa indignação que surge no cotidiano, nas relações miúdas do dia a dia, potencializando o ódio aos “beneficiados” ou “culpados” por sua posição hierárquica na sociedade. Em tratando de cooptação dessa indignação, os movimentos antipetista e bolsonarista talvez sejam os exemplos mais emblemáticos de nossa realidade brasileira. Nesse contexto, infra os ataques aos povos indígenas, aos beneficiados por programas sociais, aos imigrantes, os funcionários públicos, etc. Todos esses vistos como inimigos e responsáveis pelos problemas que afetam os indignados.
Considerações finais
Estamos diante de múltiplas desigualdades criadas pelo capitalismo. Essas vem sendo percebidas pelos indivíduos em face aos demais que compartilham o mesmo cotidiano e estão incluídos na mesma classe social. A oposição não se restringe às classes sociais ou os pobres contra os super ricos. Essas desigualdades miúdas vêm gerando insatisfações que podem ser mobilizadas em direção à mudanças que visam a redução das disparidades de condições sociais ou em sentido danoso: ao ódio.
Compreender as novas figurações impostas pelo capitalismo, suas consequências e estar atento ao perigo de cooptação da indignação pela extrema-direita são tarefas difíceis, porém necessária. As desigualdades sempre foram motivos de preocupação dos cientistas sociais, tanto a sua indesejada existência, quanto seus impactos sobre a sociabilidade, a apreensão atual se volta ao direcionamento do ódio, do rancor.
Não podemos permitir que Auschwitz se repita, como denunciou Theodor W. Adorno (1995). A educação tem um papel importantíssimo nesse propósito. Infelizmente, temos presenciado na sociedade brasileira sinais claros e danosos de apropriações e direcionamentos da indignação gerada pelas desigualdades sociais múltiplas. Em tempos de redes sociais, a canalização do ódio se tornou ainda mais fácil e danosa.
Referências
ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Tradução: Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro, 3ª edição, Editora: Paz e Terra, 1995.
DUBET, François. O tempo das paixões tristes. São Paulo: Vestígio. 2020.
HERTZOG, Lucas; MELLO, Luciana Garcia de. Por uma abordagem interseccional das desigualdades: rupturas com visões hierarquizadas. Contemporânea, v. 10, n. 1 p. 229-247, jan./abr., 2020.
SILVA, Luana Barbosa da. Racismo estrutural e filtragem racial na abordagem policial a adolescentes acusados de ato infracional na cidade de Campinas/SP. Revista brasileira de segurança pública. São Paulo v. 16, n. 3, 152-179, ago/set., 2022.
Cristiano Bodart é doutor em Sociologia (USP). Docente do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).