O que querem os professores do Brasil? Nós fomos ouvi-los

O desafio é posto e amplamente conhecido: escolas deterioradas, falta de material, baixos salários, insegurança, famílias ausentes e salas superlotadas. Na linha de frente do sistema educacional, professores da rede pública básica de ensino enfrentam diariamente os problemas que, num círculo vicioso, dificultam que exerçam suas atividades adequadamente, perpetuando um cenário de desgaste dos profissionais.

Inúmeros levantamentos e pesquisas feitas por instituições educacionais, além de notícias e artigos de jornais, alertam para o tema. A solução, porém, parece distante quando o problema vai tão longe quanto a própria formação do profissional que está em sala de aula.

Um relatório publicado em maio pelo Todos pela Educação (TPE) – movimento de líderes empresariais e diversos setores da sociedade brasileira em prol do ensino  – destrinchou a questão. De cara, a pesquisa chama atenção para como o debate sobre o tema tem mudado seu foco de “diplomas e certificados obtidos ao longo da carreira” para as “competências e habilidades que os professores devem ter para lecionar”. A mudança é fundamental.

Porém nas universidades, em cursos de pedagogia e licenciaturas, ainda resiste um modelo concentrado na área de pesquisa, importante para se pensar a educação, mas que não prepara os profissionais para a realidade das escolas públicas, “seja em termos de metodologias de ensino, seja em termos vocacionais”, diz o texto.

Alguns números

80%  dos alunos de pedagogia estudam em faculdades particulares.

75% dos professores da rede pública de ensino básico têm formação superior e ou continuada.

52,1% é a porcentagem dos salários de profissionais do ensino em relação às demais ocupações do setor público.

Pesquisas não escutam professores

O trabalho do TPE, que consistiu num levantamento de pesquisas nacionais e internacionais sobre o tema, também chamou atenção para o fato de que, no Brasil, faltam estudos sobre formação de professores, ou pelo menos estudos que mostrem empiricamente como as teorias pedagógicas podem melhorar a formação e a atuação dos docentes.

Faltam, também, pesquisas que ouçam os professores para saber como eles mesmos analisam sua formação e ofício. O Nexo ouviu alguns profissionais da rede pública de ensino do país para saber o que eles veem como os principais problemas enfrentados pela classe.

Além do fosso entre ensino nas universidades e realidade das escolas, muitos chamaram atenção para a desvalorização da profissão, que atrai cada vez menos estudantes devido aos baixos salários e péssimas condições de trabalho.

Para a professora de história da rede estadual de São Paulo, Maria Dolores Zetkin, a formação do docente passa pelas condições de ensino nas escolas.

“A forma mais eficaz de atacar o ensino público é dizer que a formação do professor não é boa. Você ataca o indivíduo, ataca a escola, diz que o professor que não está preparado, a escola não está bem gerida e coloca a culpa naquele que é vítima de uma política educacional inadequada”, diz.

O professor de geografia Maurício Costa de Carvalho concorda que, por melhor que seja a formação teórica, ela não é adequada às limitações concretas do cotidiano nas escolas.

Veja alguns depoimentos de professores da rede pública estadual e municipal de São Paulo e Ceará:

Educação infantil

Luzia Diel Rupp – Professora da educação infantil em escola municipal, em Campinas (SP).

“Sou professora de educação infantil, fiz pedagogia voltada para a alfabetização, e não para lidar com crianças menores, de 5, 6 anos. Minha formação não responde à demanda do meu trabalho.

É considerado que basta ser mulher para cuidar de crianças e isso sabemos que não é verdade. É preciso ter formação adequada para ser responsável por um projeto educativo para o coletivo de crianças.

Hoje a neurociência diz que uma criança de 2 anos tem grande capacidade de aprendizado e nossa formação não dá conta disso. Uma coisa é trocar fralda, outra é fazer trabalhos manuais com a criança.

Ainda é muito baixa a composição da especificidade de crianças pequenas no currículo da educação infantil. Ele ainda está muito voltado pra alfabetização das crianças. Quem se forma em pedagogia vai pensar nessa criança mais velha, sendo alfabetizada.

A escola estruturalmente já é ruim. Mas a arquitetura deveria ser pensada para a criança pequena: sem escadas, com mobiliário especial. Muitas vezes os espaços são salas de aula. A criança não é um aluno. Não precisa de lousa, precisa de colchões.

A questão não é só de formação, mas são as condições de trabalho. Para começar, há um grande número de crianças para muitos profissionais. É muito desgastante. Não existe qualidade de educação quando se tem 38 crianças de 2 anos na sua frente. Isso penaliza nosso corpo, demandamos uma força muito grande, detona coluna, braço… é desumano.

Crianças pequenas precisam de relação mais de perto. Ela precisa de afeto. Se tem um conteúdo na educação infantil, afeto é um deles. Como faz isso com grande numero de crianças?”

Falta de material

Rita Cabral – Professora de educação física da rede estadual, em Jaú (SP).

“Realmente a formação é fraca. Fui formada em escola particular, no caso antes do Prouni, acabei pagando minha formação. Ela é muito teórica, fora da realidade, principalmente da realidade da escola pública. Depois que me formei, passei em concurso, ingressei numa escola e foi um choque. Não fomos preparados para isso.

Aprendi tudo no ‘vamos ver’. Recebi diploma, mas nenhuma preparação. E acho que isso acontece não apenas em minha disciplina, mas em todas. No meu primeiro dia numa escola estadual, eu tinha uma classe com 35 crianças, mas não tinha bola, não tinha nada. Te jogam lá de qualquer maneira.

Desde que comecei, a situação só piorou. A atenção dada a educação é menor, o investimento é menor, há uma falta de interesse da população em geral. Não tem mecanismo de segurança, reajustes salariais, o Estado aceita todo tipo de profissional, licenciatura não é exigência.”

Educação a distância

Mauricio Costa de Carvalho – Professor de geografia, ex-profissional da rede estadual de São Paulo.

“Programas de educação a distância em geral são pouco efetivos. Em tese é o que permite formação adequada, mas há dois problemas muito graves: a distância entre o que se diz e a prática cotidiana, no sentido de que as condições de trabalho não permitem implantar a teoria do curso, e o outro é de conteúdo, que tem a ver com a dificuldade que o professor tem de estudar, devido a sua carga horária.

 O professor de geografia Mauricio Costa de Carvalho. Foto: Arquivo Pessoal.

O professor de geografia Mauricio Costa de Carvalho. Fotografia: Arquivo Pessoal

A pior coisa que existe é na dificuldade que o professor tem para se formar são as condições de trabalho. Ele já não recebe o que deveria pela jornada, o que significaria tempo para trabalhar fora da escola (preparar aula, corrigir prova, estudar). É impossível realizar pesquisas ao mesmo tempo em que está lecionando. Não há mais bolsas para o professor reduzir sua jornada de trabalho e poder fazer pós.

A educação pública atrai cada vez menos profissionais qualificados por conta da competição e falta de salário decente. A meritocracia [incentivada com políticas de bônus] cria competição entre professores que vivem realidades desiguais. Professores de regiões mais conflituosas, mais distantes, vão ter condições de competição muito menores que professores de regiões centrais. É uma distorção que não permite que a educação seja vista de forma universal.”

Infraestrutura

Anna Karina – Professora de história da rede estadual do Ceará.

“O principal problema são os cortes na educação. No Ceará, há uma grande desqualificação no ensino. As escolas reduziram tempo de laboratório, de aulas de matemática, química. Cortaram os coordenadores pedagógicos. Agora quem elabora as provas? Os professores não têm condição de fazer isso sem o coordenador.

Tem a questão da infraestrutura nas escolas. Algumas não são reformadas há 21 anos. O ventilador pega fogo em sala de aula. O corpo de bombeiros fecharia a escola.

Cada vez mais sentimos que pessoas estão querendo entrar menos nessa categoria, pois trabalha muito, ganha pouco e não é reconhecida.”

Currículo acadêmico

Cesar Amario Onorato – Professor de matemática da rede estadual do Ceará.

“Há dois problemas que atrapalham muito nossa atividade: o primeiro é a quantidade de alunos por turma, às vezes chega a 50. Outro problema que estamos começando a ter é a interferência no currículo por parte de organizações que o empobrecem, deixam muito a desejar. Ele é muito calcado em português e matemática. Diminuem as aulas de sociologia, história, educação física, arte….

Está cada vez mais difícil para professores cursar mestrado e doutorado. Há uma série de restrições, uma quantidade mínima de profissionais pode ser liberada.

Os professores temporários ganham em média R$ 500 a menos, fazendo a mesma tarefa e exercendo as mesmas funções que os contratados.”

Atendimento especial

Fernanda Santos – Professora de SAAD – Serviço de Atendimento e Avaliação Diagnóstica da prefeitura de São Paulo.

“Dou aula há dez anos, já trabalhei em várias escolas, só uma particular. Nesse período a educação mudou bastante. Principalmente no que toca a educação especial. Na prefeitura de São Paulo, onde eu trabalho há mais tempo, não tinha esse atendimento especializado para crianças especiais e agora tem. Há uma verba específica para isso. Os professores são melhor formados para lidarem com essas crianças.

Mas acho que ainda falta formação sobre os objetivos de cada ciclo da educação e como deveria ser desenvolvido os trabalhos em cada um desses ciclos.Também é necessário formação em sistemas de avaliação. Nosso sistema é muito engessado nesse sentido. Consideramos que, se a criança não sabe se expressar de determinada forma, ela não está apta. Não levamos em consideração o desenvolvimento de outras formas de habilidade. O professor precisa entender o que avaliar no aluno, entender o conceito de avaliação. Muitos ficam fechados ao conteúdo.

Quando falamos de formação de professores na faculdade, saímos imaginando uma coisa, pois ela é muito teórica, apesar dos estágios. A maior parte do que aprendi foi dando aula, durante o magistério. Se não tivesse feito, teria saído pior. Deveria haver, nas universidades, mais atividade e disciplinas práticas, em que aprendemos a fazer planos de aula, o que trabalhar com aluno, como passar o conteúdo.

Educação especial é um tema que deveria ser mais abordado, devia ser formação contínua, porque a inclusão começou há pouco tempo e ainda há muito o que se aprender sobre isso.”

Readaptação

Patricia Betto – Professora readaptada da rede estadual, em Caraguatatuba (SP).

“O problema que enfrentamos são as condições de trabalho desumanas devido às pressões das chefias por resultados esperados pelo governo, sem a devida contrapartida. Bem como  outras, como a baixa remuneração que leva o professor a cumprir duas ou até três jornadas.

A professora de geografia Patricia Betto. Foto: Facebook/divulgação.
A professora de geografia Patricia Betto. Fotografia: Divulgação/Facebook

Sou professora de geografia readaptada, o que me obrigou a me afastar do convívio direto com os alunos em sala de aula. Hoje trabalho na sala de leitura. Percebi que cheguei ao ponto que não dava mais para lecionar em sala por depressão. Um dos problemas hoje é justamente a readaptação dos professores. Ele fica doente e o governo quer que retorne para a sala de aula, por conta da falta de profissionais. Mas o professor não tem condições de voltar, ele ficou doente por causa da sala de aula. Somos muito cobrados. Se o aluno se machuca, é culpa do professor. Se ele não vai bem, repete de ano, a culpa é do professor. Ele fica sozinho com 40 adolescentes e isso frustra. Por isso o professor está adoecendo.

Eu faço tratamento com psiquiatra há 12 anos. Meu médico me conhece há 12 anos. Como um perito nomeado pelo Estado vai me dar um laudo, depois de uma conversa de 15 minutos, dizendo se eu posso voltar para a sala de aula?”

Sistema de ensino

Maria Dolores Zetkin – Professora da rede estadual, em Assis (SP).

“Se existe um projeto de sucateamento da educação, claro que envolve a precarização do professor. Condições precárias atraem profissionais menos preparados. Quem pode se preparar mais, tenta outras alternativas. Existe uma falha, mas é mais na questão de colocar futuros professores a par da realidade de escolas públicas.

Você pode ter o melhor professor, preparado, ciente da metodologia, com formação muito bem consolidada, e você não vai conseguir trabalhar na forma como a escola e o sistema de ensino estão organizados.

Há uma quantidade muito grande de professores trabalhando de forma precária. Como temporários, fazendo bico, sem os benefícios que os professores efetivos têm, como assistência médica, falta abonada. A rede necessita de professores e a necessidade é suprida com professores ‘tapa-buraco’, que é formado em Letras, mas dá aula de Artes, estudou História e ensina Geografia.

Professores vão trabalhar muito insatisfeitos. Trabalham demais, adoecem, os conflitos são muito grandes. Alunos tampouco gostam de estar ali e têm razão de não gostar: não tem quadra, não tem material esportivo, não tem espaço para arte, para atividades diferenciadas. É sentar numa carteira e assistir a aula. Ninguém aguenta isso numa época em que a juventude está a mil por hora. Alunos e professores estão cada vez mais cansados e desanimados e isso reflete na qualidade do ensino.

Não seria muito difícil melhorar, basta uma política premeditada, que preveja a jornada reduzida, que dê tempo para o professor trabalhar fora da sala de aula, preparar a aula, estudar, ter preparo intelectual. O professor não aguenta com essa jornada, chega em casa e dorme. E recebem como os profissionais mais desprivilegiados que existem. É preciso também criar condições concretas materiais dentro da escola: laboratórios, salas de informática, melhorias no espaço de prática de esporte, salas de aula, dança. Isso já melhoraria muito.”

Coordenação pedagógica

Ana Carine dos Santos de Sousa Paiva –Coordenadora pedagógica da rede municipal de Fortaleza (CE).

“A grande falha começa na esfera inicial como pedagogo. Há uma grande desarticulação entre o que é tratado com a realidade quando nos formarmos. Até pouco tempo, nem estágio em educação infantil tínhamos. Nem disciplinas que tratassem de crianças de 0 a 5 anos, área em que o pedagogo mais atua.

Os temas ainda se distanciam muito da prática do chão da sala de aula. Como professora do ensino fundamental que já fui, vemos esse grande distanciamento para o que presenciamos com as crianças na rotina.

Acho que o que poderia ser feito para minimizar essas temáticas que são bem distantes da nossa realidade é escutar. Escutar sempre o que o professor tem a dizer, os problemas que estão gritando. Outro ponto seria formação em contexto, a partir de um coordenador pedagógico presente e acompanhando no dia a dia as situações que acontecem com as crianças.

Um exemplo claro disso é que os professores têm grandes dificuldades de articular na educação infantil o cuidar e o educar. Muitas vezes eles nem sabem os temas que precisam aprender, eles não param para fazer essa autorreflexão. São conteúdos que vemos na universidade de forma muito fragmentada e superficial.

É preciso dar voz e vez aos professores para falarem suas problemáticas. mas muitas vezes nem eles se atentam ao que necessitam. Por isso a importância do coordenador, que detecta esses temas.”

Os problemas apontados pelo relatório

O livro “Formação de Professores no Brasil: Diagnóstico, agenda de políticas e estratégias para a mudança”, coordenado pelo professor Fernando Luiz Abrucio (FGV/SP), faz uma revisão bibliográfica das pesquisas já feitas sobre formação de professores.

Como resultado, o levantamento identificou sete pontos que seriam os principais gargalos da questão no Brasil.

1. Integração do tripé formativo (universidades-centros formadores/redes de ensino/escolas)

O Todos Pela Educação considera que essas três estruturas institucionais são a sustentação do processo de formação docente. No entanto, elas não dialogam entre si. Como consequência, por exemplo, cursos de pedagogia se afastam cada vez mais das escolas.

2. Perfil do aluno que poderá ser futuramente professor

Estudantes de pedagogia, em sua maioria, frequentaram a educação básica em escolas públicas de forma que, segundo a pesquisa, o próprio professor tem lacunas em sua formação.

3. Currículo da Educação Básica

A falta de clareza dos currículos acadêmicos é mais um agravante. Soma-se a isso a questão do conteudismo: excessivo número de assuntos abordados, que distancia as escolas do Brasil da tendência internacional de se analisar habilidades e competências.

4. Currículo e estrutura profissional-pedagógica dos cursos de pedagogia e licenciaturas

“Mais uma vez, a distância entre teoria e prática, em particular nos cursos de pedagogia e licenciatura. Faltam nas universidades aprendizado sobre metodologias de ensino, além das competências e habilidades necessárias para exercer bem o trabalho docente. “As disciplinas didáticas e metodológicas não só são pouco valorizadas como ainda não estão integradas ao restante do curso”, diz o texto.

“Quando recebeu a tarefa de formar todos os professores, a universidade considerou mais nobre formar um pesquisador sem prestar atenção às diferentes competências exigidas para a formação do professor. Isso não quer dizer que o professor não tenha que fazer pesquisa, mas ser um pesquisador profissional e ser um professor profissional são coisas distintas.”
Depoimento dado à pesquisa

5. Educação a Distância

A pesquisa reconhece a importância da Educação a Distância (EAD) para ampliar a formação em regiões de pouco ou nenhum acesso à educação superior, porém faz críticas na forma como ela foi implantada. Entre os problemas destacados, estão a expansão desigual dos cursos, com concentração nas regiões mais desenvolvidas; a descontextualização do curso em relação à realidade local, com pouca inovação e diferenciação; o baixo número de concluintes; a necessidade de melhor tratamento e capacitação dos tutores e desenvolvimento de práticas que não fiquem restritas a estágios cumpridos apenas formalmente.

6. Profissionalização da prática docente, da formação inicial à continuada

A ideia é que o docente seja profissionalizado antes de assumir o cargo, com exercícios como estágios, mentorias e residências. Atualmente, o estágio é tido apenas como uma atividade burocrática, para cumprir créditos, e não como política de formação. Há que se levar em consideração, ainda, que muitos estudantes trabalham enquanto estudam para ser professor, e portanto não conseguem se dedicar à prática.

7. Atratividade e motivação da carreira docente

A questão da valorização do professor. O relatório cita pesquisas internacionais para mostrar o impacto positivo do aumento de salários. Diz, também, que a questão da atratividade vai além da remuneração: envolve medidas como regimes de dedicação integral nas escolas – nos quais o professor tem mais tempo para desenvolver atividades – bom clima escolar e segurança, perspectiva de avanço na carreira e bons programas de formação continuada.

Fonte: Nexo Jornal
Texto: Batriz Montesanti
Data original da publicação: 05/06/2016

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