O que o MST tem feito em contraponto ao agronegócio predatório no Brasil?

Fotografia: MST

Um dos princípios que norteia a atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é a coexistência entre a manutenção da biodiversidade existente no meio ambiente, a produção de alimentos saudáveis e as populações tradicionais, como indígenas, ribeirinhos e quilombolas, e suas práticas. Em outras palavras, isso significa uma interação entre o ser humano e o meio ambiente pelas vias sustentáveis de produção, além do respeito aos saberes tradicionais.  

Este princípio está na base do que se entende hoje por agroecologia, que pode se expressar de diversas formas. São exemplos a produção de alimentos sem agrotóxicos, reflorestamento, recuperação de nascentes, cultivação de sementes não transgênicas e a prática de cultivar diversas lavouras em um mesmo terreno, conhecida como policultura, o que possibilita a devolução de nutrientes variados para a terra.

Práticas agroecológicas 

Um dos projetos do MST que seguem a linha da agroecologia é a Rede de Sementes Agroecológicas BioNatur. Existente desde 1997 no sul do país, o projeto produz e comercializa sementes crioulas que podem ser cultivadas, multiplicadas, conservadas e melhoradas, diferente das sementes transgênicas e híbridas. 

“O projeto do agronegócio e da financeirização na agricultura tem nas sementes o elemento vital pra colocar em xeque não só os saberes camponeses, mas também aquilo que se materializa na semente e nos confere autonomia. Por exemplo, quando a gente compra uma semente numa loja, a gente compra os fertilizantes químicos, a modificação genética, com isso também comprando uma dívida”, afirma Kelli Maffort, da direção nacional do MST.

“Por isso, ter as próprias sementes significa ter autonomia, ter práticas de preservação massificada da semente. Isso é algo extremamente estratégico para movimentos camponeses, e o movimento sem-terra preserva bastante isso.”

Desde 2017, a BioNatur se tornou a mantenedora de uma variedade de sementes: repolho louco de verão, couve manteiga da Geórgia, abóbora BRS tortéi, rúcula cultivada, moranga de mesa, tomate bio feliciana, abobrinha de tronco redonda e abobrinha de tronco caserta, abóbora menina brasileira, moranga pataca gigante, alface quatro estações, berinjela preta comprida, couve-brócolis ramoso santana, cenoura brasília, coentro verdão, melancia crimson sweet, melão imperial, quiabo santa cruz 47 e salsa lisa.

Outro projeto ligado aos valores agroecológicos é o Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis, lançado em 2020, que estabelece o plantio de 100 milhões de árvores em 10 anos em territórios da reforma agrária e das cidades.

Com o plantio de árvores nativas e frutíferas, o MST tem o objetivo de recuperar as áreas degradadas pelo agronegócio e formar as conhecidas agroflorestas. “A gente tem feito muitos viveiros, todo um processo de recuperação de nascentes, com essas árvores que nós temos plantado, e tem um desenho desse plano para cada bioma. O projeto procura recuperar e talvez reequilibrar essa relação ser humano natureza que foi super desequilibrada”, afirma Maffort. 

Agrofloresta 

A integrante do MST afirma que o movimento está avançando cada vez mais no conceito de agrofloresta. Trata-se de uma ramificação da agroecologia que estabelece um sistema de produção no qual os cultivos agrícolas são plantados junto com espécies florestais e criações de animais. Com o cultivo de diversas espécies em um mesmo ambiente, possibilita-se a devolução também de variados nutrientes para o solo, recuperando sua fertilidade.  

“A gente pensa no quanto o solo precisa ser alimentado pelo manejo da floresta, ou seja, a gente pensa na fertilidade do solo”, afirma Maffort. O contrário ocorre nas monoculturas, que enfraquecem a fertilidade do solo ao devolver para a terra um conjunto fraco de nutrientes, muitas vezes somado aos agrotóxicos.  

Propriedade que contou com consultoria em sistemas agroflorestais. Fotografia: Alexandre Caíque

Em outras palavras, “na natureza ou numa floresta não tem só um tipo de planta. Então não tem um monocultivo de milho, por exemplo. Então, na nossa visão o milho precisa ser plantado junto com outras culturas”, explica a militante do MST.  

“Antigamente a gente tinha o solo de floresta. Quando a gente pensa o boom do café em São Paulo no século passado, foi possível porque tinha uma Mata Atlântica e por isso que nem era necessário fertilizante químico. Agora fica essa guerra do fertilizante químico, mas na realidade não precisa. O solo pode ser extremamente fértil.”  

Agroecologia enquanto sistema de valores 

Maffort reforça que o princípio da coexistência entre todas as espécies, que dá a base para agroecologia, também é transportado para as relações sociais dentro do MST.  

“A gente trabalha muito por meio da perspectiva que relações doentes não produzem alimentos saudáveis. Então lutar contra machismo, racismo, LGBTQIA+fobia e outros preconceitos faz parte da agroecologia também”, afirma.  

“A agroecologia não é só uma questão de produzir sem veneno, mas é uma relação social que a gente precisa mudar, para que a gente possa ter alimentos saudáveis e, ao mesmo tempo, relações sociais saudáveis.” 

Na prática 

No Assentamento Eli Vive, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que fica no distrito de Lerroville, a 50 quilômetros de Londrina (PR), vivem atualmente 3 mil assentados, em um terreno de 7,5 mil hectares que antes era ocupado por apenas uma pessoa.  

Hoje a maior área de Reforma Agrária em região metropolitana do Brasil, o espaço que antes era destinado ao gado para a exportação deu lugar a dezenas de lotes que produzem alimentos orgânicos para escolas, à recuperação das nascentes locais e ao reflorestamento.

“Quando a gente chegou aqui tinham três árvores, o que trouxe para a gente a missão de reflorestar. Então, em 2016 a gente começou a plantação da nossa agrofloresta. A gente tem arvores para madeira, nativas da região, como ingá, jaracatiá, uvaia, gabiroba, café, e plantas medicinais para a produção de óleos essenciais. A gente tem também as hortaliças”, afirma Jovânia Cestille, de 48 anos. 

Jovânia Cestille tem 48 anos, 23 deles dedicados ao MST. Fotografia: Vitor Shimomura

Na mesma linha, Cristiane Ferreira dos Santos, de 36 anos, afirma que o local “era uma enorme fazenda, mas só tinha uma linha de produção, e aqui dentro hoje a gente consegue ter vários produtos e dar acesso à terra a mais pessoas. Aqui, tem gente que planta cará, inhame, mandioca, batata, horta, morango, tomate, pepino.” 

Sandra Ferrer, de 47 anos, afirma que o assentamento mostrou para o Brasil que é “possível a agroecologia não só na produção. Agroecologia não é só produzir comida, é produzir ideias, vida, saúde. Nós já conseguimos proteger mais de 100 minas d’água. E com isso a gente conseguiu até trazer os passarinhos de volta. Lá no meu lote eu levanto de manhã cedo e tem passarinho. Antes não tinha. Era puro pasto”. 

Oposição ao agronegócio 

Adriana Charoux, coordenadora da campanha Agroecologia contra a Fome do Greenpeace Brasil, coloca a agroecologia e suas práticas como um ponto antagônico ao agronegócio e a esse cenário.

“Como defende Ernst Götschrnest [agricultor e pesquisador suíço], é possível plantar comida plantando florestas. Então a agroecologia é uma das questões fundamentais, por estar trabalhando consorciada em harmonia com a natureza e não tendo a natureza como um elemento a ser dominado”, afirma Charoux. 

“A agroecologia é um contraponto ao agronegócio tal como está estabelecido. O agro é abastecido por doses imensas de agrotóxicos e encerra todas as características que a gente entende como deletério e contrário a qualquer horizonte de proteção ambiental, de direitos. (…) A agroecologia é feita de forma aliada em harmonia com a natureza, de forma muito mais justa e promove a segurança alimentar.”  

Sabe-se que na contramão do desenvolvimento da agroecologia está a atuação do agronegócio. O estudo Colheita ilícita, bens coniventes, divulgado em maio de 2021 pela organização Forest Trends, mostrou que 60% das florestas tropicais de todo o mundo foram derrubadas para a produção de carne bovina, soja e óleo de palma, entre 2013 e 2019. O percentual equivale a 46,1 milhões de hectares.

De acordo com a pesquisa, “a maior parte do desmatamento ilegal” foi registrada no Brasil e na Indonésia, além de estar relacionada à produção de gado e palmeiras para a extração de óleo, soja e polpa. “O Brasil é um país que oferece risco particular; quase todo (no mínimo 95%) do desmatamento no Brasil realizado em 2019 foi ilegal”, destaca o documento.

Para se ter uma ideia, as plantações de soja representam 90% da agricultura do bioma cerrado, segundo a consultoria da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” da Universidade de São Paulo (Esalq-USP).

Entre agosto de 2020 e julho de 2021, foram destruídos 8,5 mil quilômetros quadrados de vegetação nativa, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Trata-se de 7,9% de área desmatada em 12 meses, a taxa mais alta desde 2016. 

As plantações de soja avançam sobre biomas importantes, como o cerrado, mas também sobre áreas de policultura e de alimentos comercializados internamente, o que contribui para o aumento da fome no país, segundo Kelli Maffort.  

Plantação de soja no modelo atual do agronegócio: mais commodities, menos comida. Fotografia: José Cícero/Agência Pública

Ou seja, o agronegócio escolhe por produzir alimentos que são valorados como commodities no mercado internacional e deixa, por isso, de produzir comida para o mercado interno. No estado de São Paulo, por exemplo, a soja que é vendida em dólar no exterior avança sobre as plantações feijão, encarecendo este último produto para os brasileiros.

“Obviamente que isso vai representar uma diminuição de oferta de alimentos”, afirma Maffort. “O agronegócio praticamente não produz comida, produz commodities. Quem produz comida, segundo o Censo Agropecuário de 2017 [o último do IBGE], é a agricultura familiar e camponesa. Só que esse setor não controla o comércio e a indústria de alimentos. Quem controla isso é o agronegócio”, estabelecendo para onde vai os alimentos e os preços.  

“Com a desvalorização cambial, o agronegócio prefere exportar comida, receber em dólar e, assim, deixa uma inflação para nós muito alta”, conclui Maffort.  

Na contramão, as famílias do assentamento Eli Vive doaram apenas em março cerca de 60 toneladas de legumes, grãos, panificados, frutas e lácteos para famílias em situação de vulnerabilidade social ao redor de Londrina. A doação integrou a campanha permanente do MST desde o início da pandemia, que tem levado alimentos a quem enfrenta fome neste período de crise econômica e social. 

Fonte: Brasil de Fato
Texto: Caroline Oliveira
Data original da publicação: 04/06/2022

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