O filme “Lincoln”, de Steven Spielberg, narra como esse presidente de forte lembrança popular lutou contra a escravidão e pela transformação dos escravos em trabalhadores. O que a obra cinematográfica não conta, porém, é que Lincoln também lutou por outra emancipação: que os escravos e os trabalhadores em geral fossem senhores não apenas de sua atividade em si, mas também do produto resultante de seu trabalho.
Vicenç Navarro
Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 21/01/2013
Originalmente publicado em espanhol no site Dominio Público em 17/01/2013
O filme “Lincoln”, produzido e dirigido por um dos diretores mais conhecidos dos EUA, Steven Spielberg, fez reviver um grande interesse pela figura de Lincoln, um dos presidentes que, como Franklin D. Roosevelt, sempre apareceu no ideário estadunidense com grande lembrança popular. Destaca-se tal figura política como o fiador da unidade dos EUA, após derrotar os confederados que aspiravam à secessão dos Estados do Sul daquele Estado federal. É também uma figura que se destaca na história dos EUA por ter abolido a escravidão e ter dado a liberdade e a cidadania aos descendentes das populações imigrantes de origem africana, ou seja, a população negra, que nos EUA se conhece como a população afro-americana.
Lincoln foi também um dos fundadores do Partido Republicano, que em suas origens foi diretamente oposto ao Partido Republicano atual – este altamente influenciado hoje por um movimento – o Tea Party – chauvinista, racista e reacionário, por trás do qual existem interesses econômicos e financeiros que querem eliminar a influência do governo federal na vida econômica, social e política do país. O Partido Republicano fundado pelo presidente Lincoln era, pelo contrário, um partido federalista, que considerou o governo federal como avalista dos Direitos Humanos. E entre eles, a emancipação dos escravos, tema central do filme “Lincoln” e para o qual o presidente deu maior expressão. Terminar com a escravidão significava que o escravo passava a ser trabalhador, dono de seu próprio trabalho.
Lincoln, inclusive antes de ser presidente, considerou outras conquistas sociais como parte também dos Direitos Humanos e, entre elas, o direito do mundo do trabalho de controlar não só a atividade em si, mas também o produto resultante dela. O direito de emancipação dos escravos transformava o escravo em uma pessoa livre assalariada, unida – segundo ele – em laços fraternais com os outros membros da classe trabalhadora, independentemente da cor da pele. Suas demandas de que o escravo deixasse de sê-lo e de que o trabalhador – tanto branco como negro – fosse o dono não só de seu trabalho, mas também do produto de seu trabalho, eram igualmente revolucionárias. A emancipação da escravidão requeria que a pessoa fosse dona do seu trabalho. A emancipação da classe trabalhadora significava que a classe trabalhadora fosse dona do produto do seu trabalho. E Lincoln demandou os dois tipos de emancipação. O segundo tipo de emancipação, entretanto, nem sequer é citado no filme “Lincoln”. Na realidade, é ignorado. E utilizo a expressão “ignorado” em lugar de “escondido” porque é totalmente possível que os autores do filme ou do livro sobre o qual se baseia nem sequer conheçam a história real de Lincoln.
A Guerra Fria no mundo cultural e inclusive acadêmico dos EUA (que continua existindo) e o enorme domínio do que ali se chama a Corporate Class (a classe dos proprietários e gestores do grande capital) sobre a vida, não só econômica, mas também cívica e cultural, explica que a história formal dos EUA que se ensina nas escolas e nas universidades seja muito distorcida, purificada de qualquer contaminação ideológica procedente do movimento operário, seja socialismo, comunismo ou anarquismo. A grande maioria dos estudantes estadunidenses, inclusive das universidades mais prestigiadas e conhecidas, não sabe que a festa de 1º de Maio, celebrada mundialmente como o Dia Internacional do Trabalho, é uma festa em homenagem aos sindicalistas estadunidenses que morreram em defesa de trabalhar oito horas por dia (em lugar de doze), vitória que transformou tal reivindicação exitosa na maioria dos países do mundo. Nos EUA, tal dia, o 1º de Maio, além de não ser festivo, é o dia da Lei e da Ordem – Law and Order Day – (ver o livro “People’s History of the U.S.”, de Howard Zinm). A história real dos EUA é muito diferente da história formal promovida pelas estruturas de poder estadunidenses.
As ignoradas e/ou escondidas simpatias de Lincoln
Lincoln, já quando era membro da Câmara Legislativa de seu Estado de Ilinóis, simpatizou claramente com as demandas socialistas do movimento operário, não só dos EUA, mas também mundial. Na realidade, Lincoln, tal como indiquei no começo do artigo, considerava como um Direito Humano o direito do mundo do trabalho de controlar o produto de seu trabalho, postura claramente revolucionária naquela época (e que continua sendo hoje) e que nem o filme nem a cultura dominante nos EUA lembram ou conhecem, que está convenientemente esquecida nos aparatos ideológicos do establishment estadunidense controlados pela Corporate Class. Na realidade, Lincoln considerou que a escravidão era o domínio máximo do capital sobre o mundo do trabalho e sua oposição às estruturas de poder dos Estados sulinos se devia precisamente a que percebia estas estruturas como sustentadoras de um regime econômico baseado na exploração absoluta do mundo do trabalho.
Daí que visse a abolição da escravidão como a liberação não só da população negra, mas de todo o mundo do trabalho, beneficiando também a classe trabalhadora branca, cujo racismo ele via que ia contra seus próprios interesses. Lincoln também indicou que “o mundo do trabalho antecede o capital. O capital é o fruto do trabalho, e não teria existido sem o mundo do trabalho, que o criou. O mundo do trabalho é superior ao mundo do capital e merece a maior consideração (…). Na situação atual o capital tem todo o poder e há que reverter este desequilíbrio”. Leitores dos escritos de Karl Marx, contemporâneo de Abraham Lincoln, lembrarão que algumas destas frases eram muito semelhantes às utilizadas por tal analista do capitalismo em sua análise da relação capital/trabalho sob tal sistema econômico.
Será surpresa para um grande número de leitores saber que os escritos de Karl Marx influenciaram Abraham Lincoln, tal como documenta detalhadamente John Nichols em seu excelente artículo “Reading Karl Marx with Abraham Lincoln: Utopian socialists, Germam communists and other republicans” publicado em Political Affairs (27/11/12), e do qual extraio as citações, assim como a maioria dos dados publicados neste artigo. Os escritos de Karl Marx eram conhecidos entre os grupos de intelectuais que estavam profundamente insatisfeitos com a situação política e econômica dos EUA, como era o caso de Lincoln. Karl Marx escrevia regularmente no The New York Tribune, o rotativo intelectual mais influente nos Estados Unidos daquele período. Seu diretor, Horace Greeley, se considerava um socialista e um grande admirador de Karl Marx, a quem convidou para ser colunista de tal jornal. Nas colunas de seu jornal incluiu grande número de ativistas alemães que haviam fugido das perseguições ocorridas na Alemanha daquele tempo, uma Alemanha altamente agitada, com um nascente movimento operário que questionava a ordem econômica existente. Alguns destes imigrantes alemães (conhecidos nos EUA daquele momento como os “republicanos vermelhos”) lutaram mais tarde com as tropas federais na Guerra Civil, dirigidos pelo presidente Lincoln.
Greeley e Lincoln eram amigos. Na realidade, Greeley e seu jornal apoiaram desde o princípio a carreira política de Lincoln, sendo Greeley quem lhe aconselhou a que se apresentasse à presidência do país. E toda a evidência aponta que Lincoln era um fervente leitor do The New York Tribune. Em sua campanha eleitoral para a presidência dos EUA convidou vários “republicanos vermelhos” a integrarem-se a sua equipe. Na realidade, já antes, como congressista, representante da cidadania de Springfield no Estado de Ilinóis, apoiou frequentemente os movimentos revolucionários que estavam acontecendo na Europa, e muito em especial na Hungria, assinando documentos em apoio a tais movimentos.
Lincoln, grande amigo do mundo do trabalho estadunidense e internacional
Seu conhecimento das tradições revolucionárias existentes naquele período não era casual, e sim fruto de suas simpatias com o movimento operário internacional e suas instituições. Incentivou os trabalhadores dos EUA a organizar e estabelecer sindicatos antes e durante sua presidência. Foi nomeado membro honorário de vários sindicatos. Em sua resposta aos sindicatos de Nova York afirmou “vocês entenderam melhor que ninguém que a luta para terminar com a escravidão é a luta para libertar o mundo do trabalho, para libertar todos os trabalhadores. A libertação dos escravos no Sul é parte da mesma luta pela libertação dos trabalhadores no Norte”. E, durante a campanha eleitoral, o presidente Lincoln promoveu a postura contra a escravidão afirmando explicitamente que a libertação dos escravos permitiria aos trabalhadores exigir os salários que lhes permitissem viver decentemente e com dignidade, ajudando com isso a aumentar os salários de todos os trabalhadores, tanto negros como brancos.
Marx, e também Engels, escreveram com entusiasmo sobre a campanha eleitoral de Lincoln, em um momento em que ambos estavam preparando a Primeira Internacional do Movimento Operário. Em um momento das sessões, Marx e Engels propuseram à Internacional que enviasse uma carta ao presidente Lincoln felicitando-o por sua atitude e postura. Na carta, a Primeira Internacional felicitava o povo dos EUA e seu presidente por, ao terminar com a escravidão, haver favorecido a liberação de toda a classe trabalhadora, não só estadunidense, mas também mundial.
O presidente Lincoln respondeu, agradecendo a nota e dizendo que valorizava o apoio dos trabalhadores do mundo a suas políticas, em um tom cordial, que certamente criou grande alarme entre os establishments econômicos, financeiros e políticos de ambos os lados do Atlântico. Estava claro, a nível internacional, que, como afirmou mais tarde o dirigente socialista estadunidense Eugene Victor Debs, em sua própria campanha eleitoral, “Lincoln havia sido um revolucionário e que, por paradoxal que pudesse parecer, o Partido Republicando havia tido, em suas origens, uma tonalidade vermelha”.
A revolução democrática que Lincoln começou e que nunca se desenvolveu
Não é preciso dizer que nenhum destes dados aparece no filme “Lincoln”, nem são amplamente conhecidos nos EUA. Mas, como bem afirmam John Nichols e Robin Blackburn (outro autor que escreveu extensamente sobre Lincoln e Marx), para entender Lincoln tem que se entender o período e o contexto nos quais ele viveu. Lincoln não era um marxista (termo sobreutilizado na literatura historiográfica e que o próprio Marx denunciou) e não era sua intenção eliminar o capitalismo, mas corrigir o enorme desequilíbrio existente nele, entre o capital e o trabalho. Mas, não há dúvida de que foi altamente influenciado por Marx e outros pensadores socialistas, com os quais compartilhou seus desejos imediatos, claramente simpatizando com eles, levando sua postura a altos níveis de radicalismo em seu compromisso democrático. É uma tergiversação histórica ignorar tais fatos, como faz o filme “Lincoln”.
Não resta dúvida que Lincoln foi uma personalidade complexa, com muitos altos e baixos. Mas as simpatias estão escritas e bem definidas em seus discursos. E mais, os intensos debates que aconteciam nas esquerdas europeias se reproduziam também nos círculos progressistas dos EUA. Na realidade, a maior influência sobre Lincoln foi a dos socialistas utópicos alemães, muitos dos quais se refugiaram em Ilinóis fugindo da repressão europeia.
O comunalismo que caracterizou tais socialistas influenciou a concepção democrática de Lincoln, interpretando democracia como a governança das instituições políticas por parte do povo, no qual as classes populares eram a maioria. Sua famosa expressão (que se converteu no esplêndido slogan democrático mais conhecido no mundo – “Democracy for the people, of the people and by the people”) claramente afirma a impossibilidade de haver uma democracia do povo e para o povo sem que seja realizada e levada a cabo pelo próprio povo. Daí vem a libertação dos escravos e do mundo do trabalho como elementos essenciais de tal democratização. Seu conceito de igualdade levava inevitavelmente a um conflito com o domínio de tais instituições políticas pelo capital. E a realidade existente hoje nos EUA e que detalho em meu artigo “O que não se disse nos meios de comunicação sobre as eleições nos EUA” (Público, 13/11/12) é uma prova disso. Hoje, a Corporate Class controla as instituições políticas do país.
Últimas observações e um pedido
Repito que nenhuma destas realidades aparece no filme. Spielberg não é, afinal, nenhum Pontecorvo e o clima intelectual estadunidense ainda está estancado na Guerra Fria que lhe empobrece intelectualmente. “Socialismo” continua sendo uma palavra mal vista nos círculos do establishment cultural daquele país. E, na terra de Lincoln, aquele projeto democrático que ele sonhou nunca se realizou devido a enorme influência do poder do capital sobre as instituições democráticas, influência que diminuiu enormemente a expressão democrática naquele país. E o paradoxo brutal da história é que o Partido Republicano se tenha convertido no instrumento político mais agressivo hoje existente a serviço do capital.
Certamente, agradeceria que todas as pessoas que achem este artigo interessante o distribuam amplamente, incluindo, em sua distribuição, os críticos de cinema, que em sua promoção do filme, seguramente não dirão nada do outro Lincoln desconhecido em seu próprio país (e em muitos outros). Um dos fundadores do movimento revolucionário democrático nem sequer é reconhecido como tal. Sua emancipação dos escravos é uma grande vitória que deve ser celebrada. Mas Lincoln foi muito além. E disto nem se fala.
Vicenç Navarro (Barcelona, 1937) é cientista social. Foi professor catedrático da Universidade de Barcelona e hoje dá aulas nas universidades Pompeu Fabra e Johns Hopkins. Por sua luta contra o franquismo, viveu anos exilado na Suécia.